sábado, 25 de abril de 2009

O meu primeiro cravo vermelho

- Acorda pá! Anda ver a guerra!

Mas não era. Era a satisfação e o nervosismo do meu pai, ainda sem perceber bem o que estava a acontecer, mas já na expectativa de que as coisas nunca mais seriam as mesmas. Nem a BBC de Londres que ouvia baixinho e com a recomendação do "nunca fales disto a ninguém..." o poderiam ter preparado para tudo o que iria mudar naquele dia.

Muito se escreveu, muito se fotografou, muito se falou. Mas esta perspectiva ninguém teve.

Porque é a minha.

Recordo as imagens a preto e branco na Tv. E ficou-me para sempre a memória de um homem que vi pela primeira vez nesse dia, o capitão Salgueiro Maia. E para mim a revolução só aconteceu porque na Rua do Arsenal este homem, que era um revoltoso, teve o sangue frio de ficar frente à mira de um atirador que, à ordem de um oficial para que disparasse, não obedeceu.

Vem-me no entanto à ideia que o nome desse atirador eu nunca o soube...

Talvez esta tenha sido a primeira injustiça de Abril. E talvez seja por isso que a nossa democracia afinal seja como é, onde o protagonismo de alguns deixa no anonimato os verdadeiros autores dos feitos dignos de nota.

O 25 de Abril de 1974, como factor que rapidamente se compreendeu ser de importância fulcral para o futuro do país, foi também o momento de mencionar demasiados nomes, desde os intervenientes heróicos, aos derrotados, aos que estiveram presos do antigo regime. Alguns desapontaram mais tarde, outros nem tanto.

Não nos lembramos muitas vezes que aqueles soldados, ao contrário dos do meu tempo, estavam absolutamente preparados e treinados para matar, essa era a sua função. E se ainda pelos anos oitenta, já sem guerra, o respeito por qualquer ordem de um oficial era inquestionável, como comprovei pessoalmente por obrigação que me foi infligida, penso que naquela altura o seria ainda mais.

E quanto mais penso nisto, menos compreendo por que motivo ficou esse para a história como um fraco se foi afinal o que fez toda a diferença. Era apenas uma gatilhada legítima e não teríamos provavelmente tido a nossa festa. Os diários teriam parangonas menos vibrantes, um traidor teria sido abatido e a honra do convento teria sido reposta.

A esse atirador que por uma aparente falta de coragem em cumprir uma ordem de execução, transporta talvez ainda o peso da injustiça, a esse como digo, atiro o meu primeiro cravo vermelho.

Ao Salgueiro Maia, atiro o segundo.

Aos outros desse dia... Que agradeçam a boleia que estes dois lhes deram.


Eu era um puto, que dali a poucos anos iria para África matar turras. Tinha a cabeça feita para isso, fazia parte de crescer homem. Abençoado atirador, que ou me salvou a mim ou aos que me estariam destinados.

Quanto aos cravos... Só nesse dia lhes conheci verdadeiramente o nome, e a cor.


© CybeRider - 2009

2 comentários:

Caçador disse...

Está muito bem visto, genialmente. Por acaso hoje a olhar para a televisão ao calhas, estava a passar o filme do costume da menina Medeiros precisamente nessa cena, e eu fiquei a olhar fixamente para o tipo que não dispara, ao contrário do costume que é dar mais atenção aos outros 2, até porque são actores mais importantes... sei lá, foi assim um momento.
E que tu muito bem apanhaste. O gajo que não fica na história, o soldado desconhecido, se calhar o verdadeiro herói daquela fita...

Começas a contar as tuas memórias desse dia, eu faço o mesmo no meu blogue branco... há coisas parecidas, o que é normal, parece-me. Vai lá ver.

Olha, deixo-te com um abraço.

CybeRider disse...

Caçador, também não é assim tanto, então o rapazito nem tinha galões dourados, podia lá ter ficado a brilhar na história...

Mas de tão tapados que estávamas nem se notou, pois não? Há sempre uma vedeta que ajudamos a pôr no pedestal, quem carrega com ela fica sempre esquecido.

E é pena...

Mas olha, o abraço dá-me ânimo. Encostei-me a esta parede a pensar se ia levar uma pedrada ou se vinha um amigo buscar-me. Até agora vieste tu, ainda bem...