sexta-feira, 29 de maio de 2009

Epitáfio - (Pelo sim, pelo não...)

Ao diabo que me carregue


Aqui jaz...

Vaticinei num blogue desta praça que haveria de ter uma pedra, num pedaço de terra, com uma frase de um outro que começasse por "Aqui jaz...". Como não chego à conclusão se seria o artigo do blogue, ou uma sua frase, a começar assim para ser alvo da escolha, resolvi deitar mãos à obra - que não quero que me falte nada - e, visto não ter encontrado uma coisa ou outra que começassem dessa maneira, criar para meu alívio, bem como dos que me procedam, o tal texto que salvará de mais esse embaraço a minha imagem pós-féretro.

Tenho a perfeita noção de que a morte de alguém é sempre um problema dos outros, já o referi e volto a repeti-lo. Daí que se preocupem com os quilos que peso, que exigirão esforços mais intensos para pôr a tal caixa em ombros. E se há coisa que me causa calafrios é imaginá-los a lançar-me anátemas, para além de algum desassossego que a minha ausência mais alargada lhes possa causar.

Alguns ficarão logo com aquela ideia preconcebida "sacana, não me pagou", esses podem descansar que pagarei, logo que os volte a ver; outros que não cheguei a retribuir o jantar que me ofereceram... que não se inquietem, se tiverem barriga enchê-la-emos, assim não me falte a memória. Haverá ainda os que não conterão um suspiro, sentido e profundo, não de pesar mas de alívio.

Sabe sempre bem ver chegar o dia que põe fim a um continuado autoflagelo psicológico e persistente tenacidade, empregues em tentar desbravar, aclarar e esclarecer, esta mente absolutamente embrutecida. E ter levado com as visitas e telefonemas intempestivos, de quando em quando, tantas vezes a interromper momentos de grande elevação e beleza, também não terá sido agradável. Lamento.

Nada encontro de mais coerente que deixar perdida no meio do ciberespaço, quiçá ad aeternum, a resolução final de uma vida. Aqui onde a terra acaba e o mar começa, onde ninguém encontra e ninguém conhece, onde ninguém critica e as vozes de burro não chegam ao céu. Aqui, dizia eu, terei de encontrar a solução para este engulho.

Mais fácil seria guardar a frase que, a meu gosto, alguém dissesse com sinceridade nesse último dia; nesse em que vestido com as vestes domingueiras, sapatos novos, daqueles 3 ou 4 números acima, que ninguém compra, e por isso saem a preço de ocasião; já privado de enfeites, maquilhado a preceito, a esconder o tom esverdeado da pele, penteado a brilhantina, coberto de aroma floral, com o guardanapo enfiado dentro da boca e o algodão nas narinas, como para não sentir do aposento o cheiro a parafina; a tal frase que me ficou de infância, quando a li ao Samuel Langhorne Clemens (nickname Mark Twain) - (30 de Novembro de 1835 – 21 de Abril de 1910), e me tem acompanhado ao longo da vida, como que num saquinho de relíquias, que é esta: "Olha... Está vivo!"... e respectivas consequências.

Mas não é isso que se pede. E de pedidos também serei acanhado:

Não quero ir de burro. A viola podem deixá-la no saco, a menos que a leve alguém mais hábil do que eu terei sido. Lembram-se de como saíam sempre que a ia buscar?... Pois agora serei eu que a não quero! Não vá algum faltar e dizer-se por aí que fez lá tanta falta como isso.

Sei que não haverão lágrimas, a maioria de vós nem gosta de cebola, mas espero que não se alarvem em estrondosas gargalhadas, que não quero acordar e ver-me naqueles preparos, ou para ali fechado no caixote (sei lá quando vos daria a parvoeira), e faltar-me para ali o ar e ver-me possivelmente aflito. Fora isso espero que se divirtam, que passem um dia muito bom e que se lembrem principalmente que vos terei deixado livres de uma quantidade de problemas, que tenderiam a aumentar com o avanço da idade.

Ah! Não se esqueçam de pagar ao gajo que cravar na lápide esta frase que entretanto me ocorre, no seguimento das palavras com que comecei o texto:

"...aquele que um dia prometeu que, quando lá chegasse, O convenceria que Ele não existe. Oxalá esteja a ser, também nisso, mal sucedido."




Quanto ao testamento, é muito mais fácil. Basta seguir a moda. Não vejo como não deixar tudo à nora.





(Ainda pensei nesta: "Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος", mas, além de não ser minha, achei-a demasiado rebuscada.)

P.S.: Texto sujeito a alterações, consoante prazo a conceder por entidade indeterminada.




© CybeRider - 2009

terça-feira, 26 de maio de 2009

Bisca lambida

E nisto estamos no meio do jogo.

E vamos à procura de mais e mais.

Deixamos de temer o risco. O importante é abrir o quadro e marcar, marcar, marcar... Voltamos... Já mostraram o resultado? Não?... Bolas!... Passa mais uma hora...

Voltámos para outros campos onde já tínhamos estado. Novidades? Humm... Então?... Está tudo na mesma?...

Voltamos ao nosso campo. Não mostram nada... Suspenso de resultados. Outra vez... Então?... Não vem ninguém?... E o que tive de pensar... Que chatice... Fiz algum erro... Deixa ver outra vez... Sim... É... Está tudo certo... É aguardar. Alguém há-de vir... E está tão giro!!! Vá lá! Não me façam isso!...

Criamos um novo jogo. Agora é mais complexo, aguardamos o resultado das nossa apostas prévias, mas temos de estar atentos ao nosso campo também. Há que dar resposta, contra-atacar, tudo a tempo. Não podemos baixar os braços!

De repente surge o primeiro... Batota! Então não tenho os resultados lá e apareces-me aqui? Não! Penso... Mas não digo nada... Vou à luta. Assim... Isso... (Que gozo!... É... Pois, isso mesmo!)

Já está! Pimba!...

E aqui deste lado? Boa! YES!!!!!... Pois... Isso mesmo! Ena!... Que fixe! (Já venho...)

Ahhh pá! Nunca me teria lembrado disso!!! Vá... beijos...

Ora, fecho esta... Abro... Aqui!

Olha!... Não está mal!... Mas já vi melhor... Vi melhor?... Fiz melhor!!!

Mas ninguém disse nada... Não importa... Isto é mesmo assim. Uns dias ganha-se, outros perde-se. É igual para todos... Esquece... Vamos a outra...

Olha... Aqui... Não tinha visto esta... Que calinada!... E não vi... Apago? Não... Vou gozar com isto!... Pois, assim já ninguém nota... Boa! Até parece que foi de propósito!

Volto lá... Ah! Assim está bem, ora... pois claro. Já sabia!... Isso também eu queria! Ná! Nada disso... Não! Eu não disse isso!... Calúnias!... Já vais ver...

"Obrigado"?... O tanas!

"Anónimo"... Pois, assim é fácil. Vai-te lixar!

Acrescento... Não, não é isso! Deixa ver... (Apago a linha toda).

Pois... Talvez assim. Vá!

Fico à espera. Mais um dia...


É assim, a mecânica da blogosfera.

Depois há toda uma panóplia de sentimentos que podemos misturar ou tentar demonstrar, e compreender, ideias mais ou menos arrojadas... Trazem colorido à festa.


É um desporto violento, não aconselhável aos mais frágeis.


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Nunca mais!

Evito a expressão "nunca mais".

Se por um lado me daria a tranquilidade de melhorar o mundo à minha volta sem intervenções intempestivas, por outro lado priva-me de voltar a lugares que, não sendo perfeitos, me ensinam o caminho para a tranquilidade.

O "nunca" é o obstáculo maior de vencer. Se por um lado nos livra das atracções mais perigosas e de aventuras desmioladas, por outro é a barreira aos sonhos que pressupomos inalcançáveis.

Por isso me custa a sair. É uma palavra que tenho de mastigar, tomar-lhe o paladar, como quem degusta um manjar exótico.

Já o "mais", sinónimo de adição, proliferação, virtualmente abundância, podendo ser de evitar quando nos referimos ao pernicioso, é capaz de uma atracção quase irreflectida. Quando nos perguntam "queres mais?" raramente nos surge a imagem de um malefício, a menos que tenhamos atingido o ponto de saciedade, o que para muitas situações é em si um objectivo por cumprir.

Quem nos quer mal não nos costuma colocar a questão, que surge na continuação de um acto. O mal é algo que se distribui, normalmente sem perguntas directas e que se pressupõe, à partida, intrinsecamente aceite pelos contemplados.

Quando se juntam as duas é que adquirem contornos verdadeiramente maquiavélicos:

"Nunca mais" é um ponto sem retorno. Um autêntico mergulho no infinito, perdem-se os limites, abandonam-se referências, para passarmos a dedicar todas as nossas energias numa inacção que não terá fim à vista. Todos os meios ao nosso alcance servirão para ajudar à causa, ainda que isso nos traga tristeza e depressão.

O abandono de um vício é por isso algo que considero incomensuravelmente difícil. Registar, de forma indelével, que algo que dá prazer tem de ser, por vontade própria, abandonado para sempre, provoca decerto uma angústia atroz que só poderei conceber por uma força superior de razão. Esta "razão" mais não é que a racionalidade a que deveríamos apelar quando nos socorremos do nosso bom-senso.


Nessa medida, se já me custa articular a palavra "nunca", a expressão "nunca mais" tem para mim o peso de uma "palavra de honra" à antiga. Utilizá-la significa a aquisição de certezas absolutas que já referi não ter, como tal e por via das dúvidas, prefiro esquecer-me de que existe.

E não deixa de ser caricato que acabe, assim, por concluir que o que me impede de utilizar essa expressão seja mesmo a falta de senso, que nunca mais tenho...


© CybeRider - 2009

terça-feira, 19 de maio de 2009

Gritos

À minha primeira paixão


É o Grito que nos liga a voz à alma.

Não há atalho mais curto. Alegrias, tristezas, espantos, medos, dor, prazer, todos são identificáveis por gritos, diferentes num todo, únicos em si.

Basta um grito para sabermos com que emoção estamos a lidar. E sabemo-lo melhor ainda se for nosso.

E não falo dos gritos de libertação. Que importam, mas são exteriorizados de outra forma. Refiro-me a esse som que emitimos, quando o coração não nos sustém o ar nos pulmões e o liberta, através das nossas cordas vocais de forma incontinente.

Arrisco que não haverá melhor registo do espírito, nem maior forma de arte que o pinte.

Na sua maioria incontroláveis e por isso sinceros, há os que soltamos a sós, os que partilhamos a dois, e os que publicamos ao vivo para uma multidão ouvir.

Destes últimos recordo um dos primeiros, senão mesmo o primeiro, da minha vida.

Transporto-me para uma distância deveras grande no tempo. Recordo um amplo ginásio, um sarau, muita gente a assistir - que naquele tempo a televisão era um objecto raríssimo e passava-se o tempo de outras maneiras.

Havia mesmo muitas crianças que, enfiadas nos seus uniformezinhos de brancura imaculada, calçãozinho e camisolita, com o emblema da filarmónica da freguesia bordado a pontos de amor pelas mãos maternas, tentavam orgulhosamente brilhar pelo meio dos colchões de espuma, trampolins, espaldares, barras assimétricas, enfim toda a parafrenália própria de um ginásio que se preze.

A festa teria início com a apresentação de uma corrida à volta do recinto com umas tropelias pré-combinadas executadas pela classe mais jovem. Teríamos de executar umas rodas, umas cambalhotas, enfim, o habitual, que já se me desvaneceu na precisão dos pormenores.

Mas houve um detalhe que sublimava a importância de tudo o que tivéssemos de fazer. Se de facto deveríamos ter começado com o que estava combinado, começámos antes com o meu grito de descontentamento, de injustiça, de direito roubado, de desilusão com o mundo.

Foi um momento alto. Todos os olhos se centraram em mim. O meu protagonismo não condizia com os meus pequeníssimos cinco anos. Procuravam perceber o significado daquele grito lancinante, que rapidamente se transformou num pranto de revolta.

A razão era porém bastante simples. Na formatura final tinham-me colocado junto a outra menina que não era a Ana Maria. De forma alguma aquele sarau teria início sem que eu pudesse brilhar ao lado da maior estrela do firmamento daquela noite, e aquela surpresa que me reservaram por mera ignorância do maior sentimento que um coração pode sentir, e que era o meu, levou ao meu boicote.

Incrédulo o professor dirigiu-se a mim, recordo o olhar nervoso da minha mãe, e limitei-me a apontar o dedo, para a criatura mais bela que alguma vez vira, e a dizer baixinho com os olhos rasos de lágrimas:

- Só vou se for com a Ana Maria...

E foi feita a minha vontade.

Já não me recordo se fiz bem as rodas e as cambalhotas. Recordo-me que foi uma noite muito feliz.
Foi também, talvez, a maior humilhação por que passei em público. Mas valeu a pena!


Tenho ainda, muitas vezes, vontade de gritar sozinho perante uma multidão. Talvez não saiba depois explicar tão bem o motivo do meu pranto.



Mas do que tenho mesmo receio, é que não me façam a vontade.


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Os cães do Adelino

O Adelino podia ter sido um amigo.

Para onde fossemos poderia ter sido um prazer tê-lo com o grupo.

Pois podia, mas tinha uma rara habilidade: a de se esquivar sempre a pagar a conta...

Vestia bem e falava melhor, tinha aquele dom inato de liderança que fazia dele o detentor de uma clarividência e de um poder obscuro sobre o seu semelhante.

Os cravanços do Adelino, sempre com a promessa de que aquilo era tudo por conta dele, que logo nos ressarciria, eram de certo modo um investimento no nosso futuro. Sempre cheio de projectos promissores e infalíveis, contava-nos as façanhas de uma vida política e social precoce, onde cada um de nós ainda viria a encaixar na perfeição logo que organizássemos e completássemos os planos que ele tinha reservado para um futuro bastante próximo.

Ao princípio nem se estranhava. Na nossa boa fé de jovens, estudantes e foliões, queríamos era a diversão e nem reparávamos a naturalidade com que a carteira do Adelino tinha ficado algures pelo Mundo, sempre que o final da noite acontecia.

O Noronha, de família abastada, era o mais sacrificado. Desde os combinados do Galeto, aos gin-tónicos do Tropicália, sorvidos aos acordes da viola ao vivo, aos jantares na Trindade ou na Portugália, às "girafas" na Nova América, ao táxi do Cais do Sodré ao Lumiar; quando já ninguém se descosia, o Noronha salvava a situação. Que até lhe calhava de caminho... Que morava em Linda-a-Velha, pois...

Era por isso o preferido, desde que estivesse presente, caso contrário sê-lo-ia aquele que mostrasse estar mais abonado, ou que tivesse alguma gasolina para umas voltas à vontade do freguês.

Encontrei o Noronha uns anos mais tarde. Não terminou o curso, estava desempregado, nunca tirou a carta de condução, e calculo que o dinheiro para o táxi se deve ter acabado. Tratei-o como amigo que fora e dei-lhe o número de telefone, mas percebi que se passava um bocado das ideias, não sei se houve reciprocidade de pensamentos, que dali nunca mais nos vimos.

Os outros comparsas daqueles convívios também se perderam nas vielas do tempo. Ninguém me trouxe notícias do Adelino, mas se bem o conheço a esta hora deve estar bem colocado numa empresa de topo, rodeado de amigos que ainda não repararam que a carteira deles é a medida da sua amizade.


O Adelino tinha dois cães, pequenitos e simpáticos que se fartavam de abanar a cauda sempre que o viam, mas isso é outro conto.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 12 de maio de 2009

Espelho meu

Aperto-a entre os dedos. Dói! Só a mim.

Do lado de lá a imitação quase perfeita do meu gesto. Não fosse estar tudo invertido...

A dor, que é só minha, faz-me pensar quantos dias irão passar até que ele, o do lado de lá, deixe de ter a mancha vermelha. Deste lado só sinto a dor. Deste lado não vejo a mancha, que só conheço porque ele me diz que sim, está lá, de onde lhe tirei a borbulha. Mas é a mancha dele que me preocupa. É a dele que vão ver, não a minha.

Sei por onde ando quando não o vejo, mas dele não sei. Apenas que está sempre prestável para me servir, apesar de me olhar como igual. Idiota, esse mero escravo insolente!

Não é meu irmão, no entanto nascemos juntos, eu de uma mãe, ele de um fenómeno da natureza, e fazemos tudo em simultâneo, suponho...

Além da irreverência do olhar, que não reconheço a mais ninguém, o pior são-lhe os caprichos. Quando aparece com outra ruga, lá me verte os sinais do tempo. Zás! Fica-me logo a indelével tatuagem, como um destino.

Mas sempre ao contrário. Se levanto o braço esquerdo, ele levanta o direito, e todos os vice-versas. As concretizações são porém as mesmas. Quando me barbeio, também ele muda de aspecto, e os dentes ficam-lhe lavados como os meus. O cheiro do after-shave, esse é só meu. Que o dele é inodoro independentemente da marca. Já tentei perfumá-lo, e ele a mim, por isso sei. Nesse dia fiquei a perder...

Recordo-me da primeira vez que me vi projectado num painel, e lembro-me de como me pareci estranho. Nunca me tinha visto a cirandar pela rua. Uma fotografia não é a mesma coisa... Falta-lhe aquela força anímica que nos altera a forma em cada hiato.

Concluí que afinal era o inverso do que me imaginara. Porque aquela outra imagem, que pensava corresponder-me, afinal não era a minha. Como pude andar enganado, por ele, tanto tempo?...

E no entanto há coisas que são transmitidas com rigor e clareza, a tristeza de um olhar, aquele brilho de outro num dia de festa. Mas posso estar a interpretar mal, e aquela rara forma de olhar que me parece, ocasionalmente, de estima pode estar a ser devolvida cheia de rancor e ódio, sei lá o que lhe estará a passar pela cabeça, afinal não é tudo ao inverso?...

E até que ponto essa inversão de sentidos de um olhar cara a cara não me irá afectar para todo o resto do dia? Aquele olhar de esperança, que lanço, não me estará a ser devolvido carregado de derrota e desprezo?...

Por isso sinto algum alívio por saber que aquela criatura vil, a quem não leio os pensamentos nem consigo arrancar confissões, que me enche de mazelas, partirá comigo se um dia eu tiver de partir.

É a sério! Prometo que o levo!


Mas não sem lhe perguntar:

Espelho, espelho meu, há alguém aí que goste mais de mim do que eu?

© CybeRider - 2009

sexta-feira, 8 de maio de 2009

O imortal

Tenho sentido uma preocupação que varre o Mundo.

Uns queixam-se da falta de tempo, outros que os abismos se lhes abrem a cada passo, outros que parecem adivinhar que a sua hora é certa. E eu, que até já me ia curando destas paranóias, e acreditando que isso não passam de boatos sem fundamento, acabo por me sentir envolvido por esta negritude.

A imortalidade porém é que me causa estranheza.

Que me dizem ser alcançável. Ou por feitos notáveis, ou pela descendência que alguns por cá deixamos, ou por índices elevados de popularidade.

Se afinal tudo o que começa terá de acabar, se dizem que um dia esta esfera se vai esborrachar contra o Sol, se de facto essa estrela vai esgotar todo o hidrogénio que nos ilumina e deixar este cantinho do Universo às escuras, então de que nos serviria a imortalidade?

Para ficarmos a pairar no espaço?... Ou criarmos uma imobiliária nas cinzas, iluminada a candeias de azeite? O que quer que restasse não seria com certeza um final feliz.

Daí que me seja mais pertinente pensar no que devamos fazer para prolongar a nossa memória junto dos que nos são iguais e, desse modo, dar melhor sentido à nossa vida.

Vem-me à ideia que há várias formas de o fazer: ou por feitos notáveis, ou pela descendência que alguns por cá deixamos, ou por índices elevados de popularidade. Pois... Mas não é isto. É que estas formas aplicam-se ao colectivo. E de facto são muitas vezes os actos mais simples que deixam as melhores marcas.

É claro que a humanidade agradece os feitos de todos os grandes nomes de todas as ciências e artes mas eu, este ser minúsculo e indiferenciado, recordo também muitas vezes pequenas coisas que não passaram de breves momentos, alguns antigos, do meu dia-a-dia.

E este é o tipo de marca que gostaria de deixar.

Gostava de poder saber, sem manigâncias, jogos de influências e golpes publicitários, que marca é que incognitamente deixei naqueles que se cruzaram comigo.

Tenho de facto uma ideia do meu índice de popularidade, maior ou menor, entre a minha família, os meus amigos, os meus colegas de trabalho ou outros que comigo interagem diariamente.

Mas qual é o meu coeficiente de penetração na sociedade? Nessa selva imensa onde, com os nossos olhares mais cinzentos, nos encontramos uns com os outros todos os dias?

Recordo uma situação que me aconteceu, haverá sete, oito, talvez mais, anos - que parece que foi ontem:

Estava a estacionar um automóvel num espaço apertadíssimo à esquerda da faixa de rodagem.

Esperava começar a ouvir soar as buzinas dos impacientes que se acumulavam à retaguarda, quando de súbito me apercebo de um carro branco parado ao lado do meu, ambos de vidros abertos, comecei a levantar o meu escudo pessoal contra os "anjinho", "saiu-te na farinha Amparo" e piropos que tais, quando me apercebo que o condutor, sem se incomodar por atrasar um bocadinho mais a fila, me gesticulava até que ponto ainda me poderia aproximar das viaturas já estacionadas.

Incrédulo, porque a besta que há em mim nunca me teria, até aquela data, levado a igualar aquela atitude, segui as instruções, e recordo que só tive acção para levantar o braço em agradecimento. Recordo também que, já recuperado, me arrependi de não ter saído a correr do carro para perguntar aquele sujeito quem ele era, e dar-lhe um abraço fraterno, e fazê-lo notar que, anos que eu viva, nunca esquecerei aquele gesto.

E isto para mim é a imortalidade.

E tenho pena que ele nunca venha a saber, por mim, que a atingiu.


© CybeRider - 2009

domingo, 3 de maio de 2009

Mãe... Quem és tu?...

Dedicado aos que nunca foram filhos da mãe


Que as há de toda a grandeza.

As boas, as más, as carinhosas, as mais distantes, as cuidadosas, as descuidadas, as que nos amam, as que nos odeiam, as que nos amparam, as cultas e as iletradas, as que nos matam, as bonitas por fora e feias por dentro, e as que, por mais feias que sejam por fora, serão sempre lindas para nós.

Há ainda mães que são melhores que muitos pais. Há os pais que são mães também.

E há aquelas que vivem connosco para sempre. Que nos acompanham cada dia, como se fosse o seu, lá longe ou mais perto. As que nos transportam na boca em cada palpite do coração, em cada expiração. As que nos seguem, as que nos perseguem, as que nos telefonam e as que nos esquecem.

As que os nossos pais amaram ou amam. As que amam ou amaram os nossos pais. As que nunca amaram ninguém. As que nunca foram amadas.

Há ainda as que nos abandonam num ninho de cucos, para crescermos entre os outros, cientes de que esse futuro incerto é o melhor para nós.

Há as que rebentam as entranhas para nos deitar ao Mundo e as que sem sofrer uma dor nos amam mais do que aquelas.

Que dia é este?

Será o dia de pensar naquela mulher que nos ama e que vimos maltratada, mas que nos culpamos de não ter protegido, porque o agressor foi um pai que nos ama também?

Ou antes o dia em que aquela mulher, que nos ama, empunhou a faca para retalhar esse homem, que não conseguimos odiar, pelo bem que nos quer, mas que a traiu vezes sem fim?

Ou só daquelas que passaram fome para que tivéssemos uma sopa para comer?

Das que nos pariram em consciência, ou das outras que aprenderam a aceitar que somos mais do que aquele acidente?

Ou será apenas das que num acto natural nos deram a vida?

Será o dia de lembrar a mulher que nos criou, mas que abandonámos à sua sorte quando a trocámos pela outra, mãe dos nossos filhos? A que chorou todas as lágrimas nesse dia sem saber se de felicidade ou tristeza?

Ou daquela outra que tudo ensinou à sua menina e a vê partir para todos os erros e injustiças para os quais ela própria, um dia, partiu também?


Mãe...

Quem a tem saberá... Que há só uma!

Para esses, este dia é tão igual ao de ontem como ao de amanhã.


É em todos os outros que penso. Que neste dia celebraram uma das maiores tristezas que alguém poderá sentir.


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 1 de maio de 2009

O 1º. de Maio

Entre algumas coisas que resolvi fazer hoje estava a ideia de ler alguma coisa alusiva ao 1º. de Maio.

Apetecia-me assim como que... Enfim, blogosfera...

Fazer zapping na internet não é exactamente o mesmo que estar sentado no sofá com a botoneira na mão a passar imagens, claro que não.

E fartei-me de ler coisas avulsas sobre o que bastantes escreveram acerca do 1º. de Maio.

Mas ninguém escreveu exactamente sobre o 1º. de Maio. E foi simplesmente por isso que resolvi escrever este pequeno texto. Com a certeza de que serei o único.

É que o 1º. de Maio, embora não me tivesse apercebido disso no 1º. de Abril (aliás, não poderia ser a mesma coisa), o 1º. de Maio como dizia, é este!

Pois... Este que estou a escrever agora, aqui, e que já sei de antemão e felizmente que poucos se sacrificarão a ler. Este é efectivamente, e sem dúvida nenhuma, o 1º. de Maio. Poderia lançá-lo hoje, amanhã ou noutro dia qualquer, que isso não faria absolutamente diferença nenhuma, desde que atirado para o futuro. Logo que não escrevesse nada antes deste, ele seria sem dúvida alguma, e sempre, o 1º. de Maio.


Claro que por esta altura já adivinho os bocejos, as reclamações, os impropérios que me estarão a lançar. Que não tenho mais nada que fazer, mas que perca de tempo, que raio de disparate, que pareço um puto a brincar com as bolinhas...

O que é certo é que este simples facto, de este ser o 1º. de Maio, me faz também recordar que este não só é o 1º. de Maio como é o meu primeiro 1º. de Maio. O que torna tudo ainda mais interessante, e se o tivesse escrito ontem ou noutro dia qualquer anterior, nunca teria sido o 1º. de Maio, condição que só se verifica a partir de hoje e também se nada surgir antes deste.

Como boa coisa, que é, traz consigo prazo de validade. Só conseguirei mantê-lo como o 1º. de Maio se o deitar ao Mundo até dia 31 deste mês às 23H59, depois disso tornar-se-ia o 1º. de Junho, não importa bem como. Não vou claramente deixar que isso aconteça.

Aliás se não cumprisse o prazo seria uma previsão sem sentido ou uma mentira descarada, consoante o tivesse elaborado antes de hoje ou depois do tal 31 aquelas horas. O que não seria de algum modo agradável.

E antes que aconteça para aí alguma vou é livrar-me dele, antes que se perca em abono de alguma coisa mais premente, e para que possa passar rapidamente ao segundo de Maio que será com certeza de outro interesse.


E nem sei bem porquê mas achei isto absolutamente fantástico. É que ainda por cima não como caracóis.


© CybeRider - 2009