Aqui jaz...
Vaticinei num blogue desta praça que haveria de ter uma pedra, num pedaço de terra, com uma frase de um outro que começasse por "Aqui jaz...". Como não chego à conclusão se seria o artigo do blogue, ou uma sua frase, a começar assim para ser alvo da escolha, resolvi deitar mãos à obra - que não quero que me falte nada - e, visto não ter encontrado uma coisa ou outra que começassem dessa maneira, criar para meu alívio, bem como dos que me procedam, o tal texto que salvará de mais esse embaraço a minha imagem pós-féretro.
Tenho a perfeita noção de que a morte de alguém é sempre um problema dos outros, já o referi e volto a repeti-lo. Daí que se preocupem com os quilos que peso, que exigirão esforços mais intensos para pôr a tal caixa em ombros. E se há coisa que me causa calafrios é imaginá-los a lançar-me anátemas, para além de algum desassossego que a minha ausência mais alargada lhes possa causar.
Alguns ficarão logo com aquela ideia preconcebida "sacana, não me pagou", esses podem descansar que pagarei, logo que os volte a ver; outros que não cheguei a retribuir o jantar que me ofereceram... que não se inquietem, se tiverem barriga enchê-la-emos, assim não me falte a memória. Haverá ainda os que não conterão um suspiro, sentido e profundo, não de pesar mas de alívio.
Sabe sempre bem ver chegar o dia que põe fim a um continuado autoflagelo psicológico e persistente tenacidade, empregues em tentar desbravar, aclarar e esclarecer, esta mente absolutamente embrutecida. E ter levado com as visitas e telefonemas intempestivos, de quando em quando, tantas vezes a interromper momentos de grande elevação e beleza, também não terá sido agradável. Lamento.
Nada encontro de mais coerente que deixar perdida no meio do ciberespaço, quiçá ad aeternum, a resolução final de uma vida. Aqui onde a terra acaba e o mar começa, onde ninguém encontra e ninguém conhece, onde ninguém critica e as vozes de burro não chegam ao céu. Aqui, dizia eu, terei de encontrar a solução para este engulho.
Mais fácil seria guardar a frase que, a meu gosto, alguém dissesse com sinceridade nesse último dia; nesse em que vestido com as vestes domingueiras, sapatos novos, daqueles 3 ou 4 números acima, que ninguém compra, e por isso saem a preço de ocasião; já privado de enfeites, maquilhado a preceito, a esconder o tom esverdeado da pele, penteado a brilhantina, coberto de aroma floral, com o guardanapo enfiado dentro da boca e o algodão nas narinas, como para não sentir do aposento o cheiro a parafina; a tal frase que me ficou de infância, quando a li ao Samuel Langhorne Clemens (nickname Mark Twain) - (30 de Novembro de 1835 – 21 de Abril de 1910), e me tem acompanhado ao longo da vida, como que num saquinho de relíquias, que é esta: "Olha... Está vivo!"... e respectivas consequências.
Mas não é isso que se pede. E de pedidos também serei acanhado:
Não quero ir de burro. A viola podem deixá-la no saco, a menos que a leve alguém mais hábil do que eu terei sido. Lembram-se de como saíam sempre que a ia buscar?... Pois agora serei eu que a não quero! Não vá algum faltar e dizer-se por aí que fez lá tanta falta como isso.
Sei que não haverão lágrimas, a maioria de vós nem gosta de cebola, mas espero que não se alarvem em estrondosas gargalhadas, que não quero acordar e ver-me naqueles preparos, ou para ali fechado no caixote (sei lá quando vos daria a parvoeira), e faltar-me para ali o ar e ver-me possivelmente aflito. Fora isso espero que se divirtam, que passem um dia muito bom e que se lembrem principalmente que vos terei deixado livres de uma quantidade de problemas, que tenderiam a aumentar com o avanço da idade.
Ah! Não se esqueçam de pagar ao gajo que cravar na lápide esta frase que entretanto me ocorre, no seguimento das palavras com que comecei o texto:
"...aquele que um dia prometeu que, quando lá chegasse, O convenceria que Ele não existe. Oxalá esteja a ser, também nisso, mal sucedido."
Quanto ao testamento, é muito mais fácil. Basta seguir a moda. Não vejo como não deixar tudo à nora.
(Ainda pensei nesta: "Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος", mas, além de não ser minha, achei-a demasiado rebuscada.)
P.S.: Texto sujeito a alterações, consoante prazo a conceder por entidade indeterminada.
© CybeRider - 2009