- Um cafézinho? - Perguntei.
- Não... Obrigado. Deixei de beber café.
Podíamos ter terminado a conversa por ali. Na aldeia estas poucas palavras envolveriam já os bons-dias, e toda a parafernália de objectos linguísticos, trejeitos, modulações, questões tolas sobre a saúde e menções honrosas ao lindo dia, que usamos na cidade para comunicar a nossa satisfação em partilhar um momento com um conhecido.
O Albertino era electricista, daqueles que o são agora e daqui a pouco serventes de pedreiro também. Já o conhecia e tinha-o em boa conta, nem tanto aos colegas que a vida dura lhe atravessava no caminho. Desses conhecia alguns de ginjeira, de quem, pela fiança do pobre Albertino, tinha até eu algumas ginjas a haver. Mas isso não era de sua culpa; mais da minha, crédulo e paternalista como nos fazemos quando chegamos, mundanos e batidos, à pacatez de uma pequena aldeia meio esquecida pelo tempo e pelos ares.
Dizia eu que podíamos ter terminado a conversa por ali. Mas o Albertino abriu a mão espessa e forrada a gesso, como se quisesse reflectir todo o brilho daquela alvura nos meus olhos e prosseguiu:
- Não sabia beber café! Tive de deixar de o beber...
E pendurou-me assim, a seco, aquela frase no estendal do juízo.
Por momentos olhei-o sem perceber exactamente se era deficiência do meu ouvido, ou do processamento da minha ideia, imaginei aquelas mãos brancas, como que roubadas a alguma estátua de jardim, e providas de movimento por algum desígnio divino, a agarrarem tão atabalhoadamente a pequena xícara que nem o líquido lhe conseguisse chegar à boca.
Finalmente a mão aberta resultou. Percebi, ao fim de alguns segundos, o tesouro que ele afinal me oferecia. Deixei de lhe ver a barba por fazer de três dias, deixei de lhe sentir o forte cheiro a trabalho intenso dentro da camisa de quadrados azuis e linhas brancas, com uma ponta a pender de fora das calças, perdi-lhe os dentes sarrentos; vi a pureza de um verdadeiro espírito prenhe.
Tingi a minha mão na dele, paguei já nem sei bem o quê, e fiz-me à vida.
Pensei em tudo o que, de facto, não sei fazer; mas que pensava que sabia até aquela altura!
Na forma alarve como me lambuzo de tanto do que gosto sempre que posso; dos pratos de comida; do vinho com que os rego; do tabaco; do descanso; do trabalho; do telefone; da água fresca nos dias de sol; dos serões com os amigos, sempre em exagero, até nos fartarmos e estarmos quase a cair, de sono até, às vezes; dos trajectos em automóvel; menos dos passeios a pé; das horas em frente ao computador; sei lá o que me passou pela cabeça...
E as palavras?...
E o sexo?... Meu deus!...
Tanto para me conter!
Poderia até ter tido eu a ideia longínqua e a ambição de que alguma vez pudesse achar-me possuidor de algo a ensinar ao Albertino. Que vã presunção!
Saí dali muito, mas muito, mais ciente da dimensão da minha ignorância e, por paradoxo fundamental, muito mais sábio.
Na realidade, não trocámos muitas palavras.
Foram exclusivamente as suficientes.
© CybeRider - 2010