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terça-feira, 9 de março de 2021

O GATO

in memoriam, 28/8/1934 - 15/11/2019


A minha mãe tinha um gato.

Era um gato especial porque lhe fora oferecido. Eu nunca tinha visto um gato oferecido que não fosse de loiça. Este era de carne e osso. Igual a qualquer outro naquela sua individualidade. Os gatos são individualmente iguais a quaisquer outros, como nós, afinal. Para a minha mãe, eu e o gato, éramos também iguais a quaisquer outros, filhos ou gatos, que pudesse ter tido. E ela nunca teve outro filho, mas gatos teve muitos. Amou-nos a todos à sua maneira, tal como a amámos a ela, à nossa.

Um dia ligou-me muito aflita porque lhe morrera a gata que lhe sobrara. E ela tivera muitas, até ter ficado para sempre sozinha com aquela. Restara-lhe do companheiro com quem vivera, derradeiramente, dez anos. Antes tinham tido em coabitação vários gatos, mas ele morreu-lhe à mesa da sala de jantar e ela ficou só, com a gata. Quando ele morreu não foi a minha mãe que me ligou, foi uma amiga. Ouvi-a em fundo, dolorosamente em pranto, à medida que a amiga me ia relatando como os serviços de emergência médica não o tinham podido salvar. Caíra fulminado, e ali ficou, estendido no tapete, durante horas. Arrepiou-me.

Quando a gata morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi a tantos quilómetros de distância. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dela, da minha única mãe. Foi a amiga do relato quem lhe ofereceu o gato. Quem, em seu perfeito juízo, oferece um gato quase novo, para sempre, a uma senhora idosa que mal dá conta de si? Uma amiga, claro.

A minha mãe ficou só, com o gato. O único filho partira para sempre de casa há mais de trinta anos e vivia a muitos quilómetros, sem lhe poder acudir.

Quando a minha mãe morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dele, do gato. Quando nos vimos não sabíamos que iríamos ter de ficar um com o outro, para sempre. Eu era alérgico a gatos e ele, calculo, que não soubesse se seria alérgico a mim. Para ele, ela saiu e voltei eu, que ele nunca vira. Para mim, ela saiu e voltei eu, que nunca o tinha visto.

Agora tenho um gato, mas a minha mãe, que me teve mas que já quase não me tinha, não tenho eu. Fiquei assim órfão para sempre, já quase velhinho. É natural que nem o gato nem eu fiquemos um com o outro por mais outra metade de uma vida, da minha se tivermos muito tempo, da dele se a ceifeira vier com mais pressa para levar um ou outro. Mas ficaremos juntos para sempre, assim como mães e filhos se têm, ainda que à distância de muitos quilómetros.

Como é efémero o sempre, tal qual o ter das coisas.


© CybeRider 2021

quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Dos mártires que tonificam

Antes de poder chorar os mortos temos de lutar pela liberdade dos vivos, não por vingança mas por justiça, ainda que esta saiba normalmente a pouco, principalmente quando é a própria a calar a boca dos que se atrevem e a fazer temer por enquanto, a quem quiser criá-lo, que possa existir neste país um Charlie, hebdo ou não.



Imagem da net

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Maricas

Estávamos em 1967.

Um Verão escaldante. O Chico dos retratos tinha o cavalo de cartão pintado e a máquina de fole para caçar veraneantes e eu era um dos putos que descalços esvoaçavam entre os calhaus da terra batida que formava a zona de acesso à praia da Caparica. Tisnados como tições, por passarmos ali as manhãs como lagartos, divertíamo-nos entre banhos com correrias, gritarias ou a dar chutos na bola. Não sabíamos jogar à bola; brincávamos à bola, que não é a mesma coisa. Um dos putos que brincava comigo era o filho do cabo-de-mar de serviço à praia naquele dia. Recordo o momento como se fosse hoje e até do nome dele me lembro, mas evito a menção porque agora, ao fim de quase quarenta e sete anos, já lhe posso perdoar. O referido agente aproximou-se de nós quando eu mostrava um tesouro aos meus amigos, um pedaço de papel amarrotado que me retirou suavemente das mãos. Um cromo do Eusébio, que me tinha saído, se bem recordo, num rebuçado; no tempo em que os rebuçados davam cromos. Olhou para o cromo e para mim e com um sorriso malicioso perguntou-me que raio de maricas era eu para andar com uma fotografia de um homem enfiada nos calções. Perante a chacota dos outros mariolas resolvi conter o "cabrão" que nos saía com facilidade, talvez com receio da chapada que não se faria esperar e, furioso, arranquei-lhe o papel das mãos.

A vergonha não durou tanto que não andássemos dali a pouco aos pontapés à bola outra vez, mas as palavras nunca as esqueci. Não me chamaram maricas muito mais vezes, ao longo dos anos fui trocando o cromo do Eusébio por fotos de namoradas, e ele deixou de jogar à bola, coisa que eu nunca cheguei a aprender. Mas de quando em vez, lá aparecia o Eusébio na televisão e lá me lembrava daquele fatídico dia em que tinha sido maricas por andar com uma fotografia do meu ídolo na algibeira. Talvez por isso não idolatrei muito mais ícones pela vida fora. Talvez também porque não conheci ao meu primeiro ídolo outras referências, que as teria, mas também por sentir que o Eusébio valeu por si próprio, como eu gostaria de valer por mim. Aprendi assim a viver com essa mariquice, essa e a de me comover com a grandiosidade das coisas mais simples.

Por isso tenho dado por mim surpreendido com alguma comoção que tenho sentido ao ouvir as palavras mais simples nos testemunhos dos amigos do Eusébio. Talvez mariquices dum país em que, de tanto nos fazermos fortes, aguentamos como titãs outras coisas de que qualquer maricas se queixaria em pranto.

Há um Eusébio em cada português, menos ágil, mas ainda assim campeão de resistência à adversidade.

Hoje porém a maioria é de maricas como eu.


© CybeRider - 2014

terça-feira, 19 de março de 2013

Uma verdade conveniente

Que pode um aprendiz dizer sobre a vida?

Tenho vindo a descobrir a significância das coisas insignificantes. A minha última epifania é que nascemos de coisas ordinárias, um saco de supermercado, uma bilha de água, às vezes dum pneu furado. Dirão que não. Que nascemos de uma mãe e de um pai, mas essa constatação é já a da natureza a formatar o disparate, mera tentativa de dar nexo ao caos.

A insignificância do nosso início é tão notória que nem sabemos ao certo como viemos cá parar, e no entanto temos o arrojo de achar que devemos estar destinados a algo sublime. E nisto arrisco se haverá alguma situação em que não tenha sido o acaso a colocar a nossa génese em factos absolutamente inocentes e imperceptíveis. Recuo décadas, avanço quilómetros para outras latitudes, e vem-me à ideia o casamento por conveniência, instituição venerada que entretanto tem caído em desuso, apenas para verificar que não. Mesmo aí teria de haver algo de casuístico e diminuto a colocar certas pessoas em incerto trilho.

Esta é a grande diferença entre nós e os outros animais. Por mais que observe os pássaros, os cães ou os peixes, não encontro tamanha variedade de razões tão pueris, para o enlace de dois seres num destino comum, o do nascimento de um filho.

Caso curioso é o daqueles miúdos que nasceram de um porta-chaves. O caso é tão óbvio, e tão embaraçoso de divulgar, que ainda não tive coragem de o revelar ao progenitor que mo contou com a maior naturalidade, sem compreender que me estava a lançar a chave do segredo da existência de uma boa parte da humanidade, eventualmente de toda desde que nos passámos indevidamente a apropriar do termo "racionais".

Contava-me que conheceu a actual companheira, a mãe dos filhos, numa noite, numa festa de estudantes, num bar algures por Amesterdão. O facto de ele, de ascendência inglesa, nascido na África do Sul, estar a estudar na Holanda é, a meu ver, absolutamente irrelevante para a minha conclusão. Facto importante é que no final da noite se prontificou a dar boleia a uns amigos da ocasião que foi distribuindo, pelos diversos destinos, na sua carripana. Como ele mesmo diz, nunca mais a teria visto se não fosse o facto de no dia seguinte ter encontrado, caído entre os bancos dianteiros do carro, este referido porta-chaves, o mesmo que eu lhe entregava agora, por ter encontrado caído entre os bancos dianteiros do meu. Objecto insignificante, uma pequena bota em couro, agora velho e seboso, com uma argola de metal meio corroído e meia dúzia de chaves tilintantes. Só depois veio o romance, talvez do sorriso grato dela e do olhar mais atento dele, conjecturas derivadas exclusivamente do meu pensamento.

Não fora isso e hoje, Dia do Pai eu, que não sei de onde nasci, estaria a relatar outra história, muito menos interessante, de um outro filho que nasceu de um enorme urso de peluche. Para mim muito mais complicada de aceitar e de contar, e no entanto também verídica e naturalmente conveniente.

© CybeRider - 2013

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Ponto Cardeal


in memoriam, 07/7/1931 - 21/12/2011

É nos dias de chuva que vejo melhor ao longe. Espreito pelo cristal onde as gotas se vão comendo umas às outras e vejo Cacilhas ali a trezentos quilómetros.

Nunca fui muito paciente. Para mim uma nau faz-se num dia. Por isso aquela que comprei em mil pedaços de pau dentro de uma caixa bonita, um sonho que tinha desde criança, ficou por acabar. Comecei a juntar umas coisas com as outras, já preparado para a colocar naquele oceano imenso, o suporte de mogno com uma chapinha amarela, e ficou nem meia nau. Iria quando muito de Cacilhas ao Ginjal, e soçobraria deixando-me numa aflição sem colete salva-vidas que, como confirmei, não vinha no pacote. Vem-me à ideia que podia tentar manobrá-la na direcção oposta, até à Lisnave, talvez não conseguisse chegar lá inteira mas, lá, haveria de aparecer algum operário de mãos ferrugentas que com um sorriso ma tirava das minhas e me construía uma a sério, num só dia, apenas para me ver inclinar a cabeça para ele, até lá acima, com um sorriso de orelha a orelha e no olhar aquele brilho espantado que só as crianças têm quando vêem um gigante habilidoso executar um acto de magia. Que todos eles eram assim.

Seria um cacilheiro, como o Renovação ou o Norte Expresso, com uma portinhola para a escada descendente ao compartimento do motor, onde me podia sentar a inalar o cheiro a gasóleo queimado, no calor de fornalha que abafava, enquanto as gigantescas guias das válvulas daquele motor imenso matraqueavam com sopros e batidas a viagem de travessia num ensurdecedor compasso de reggae por inventar. Lá abaixo os olhos do maquinista, sobressaindo do rosto negro de óleo que tingia no mesmo tom a sarja do macaco azul, subentendidos na escuridão trémula, entrecortada pela iluminação das esparsas lanternas espalhadas pelo salão infernal, e os dentes fluorescentes quando se apercebia que tinha o habitual espectador no balcão superior. Na ponte haveria de sobressair a roda de leme e ao lado o telégrafo em latão polido, de mostrador redondo, em gomos de palavras incompreensíveis, adiante, atrás, meia-força, toda-a-força, devagar, como se comandasse algum halterofilista louco, de onde o comandante enviasse as ordens à sala de máquinas para nos fazer chegar sempre sãos e salvos ao destino. Não faltaria o engraxador que me enfarruscava as orelhas com as mãos empastadas de graxa sempre que eu não lhe conseguia fugir, nem os cobradores de tez curtida e quico à marinheiro, com a malinha de trocos, em couro, a tiracolo.

Numa viagem improvável vou nele ao cais de Alcântara. Lá fora estará o Oldsmobile Cabriolet, o táxi do Sr. Augusto Macedo, à tua espera, onde o vi tantas vezes. Desta vez será em estilo e, ao contrário das memórias que melhor guardo desse local, não hão-de haver as lágrimas contidas que nunca viste, e eu só mais tarde comecei a reparar, da minha mãe, sempre que partias, e hei-de lembrar-me bem de ti e reconhecer-te imediatamente. Irei beijar-te e finalmente agradecer-te as moedas que me atiraste da ponte do Santa Maria, ou seria do Infante D. Henrique, lembras-te?... E eu, ora de joelhos no chão ora a correr pelo cais, a catá-las como se fosse assim que faria uma fortuna para que te orgulhasses de mim. Depois os lenços a acenar, os outros prantos que não entendia, e o enorme navio a zarpar e a encolher, encolher, até ser um ponto no horizonte. 

Não te levei a sério quando me alertaste tantas vezes para que um dia haverias de partir na tua grande viagem. Sabia que já tinhas partido em algumas, já esquecidas no tempo, mas recordava que de todas sempre me tinhas trazido um brinquedo, e que esse dia era sempre um dia de festa.

Por isso, desta vez, vou continuar aqui, como nessas outras vezes, à espera de ver o teu navio surgir no horizonte, com a minha nau por terminar entre as mãos.


© CybeRider - 2013

sábado, 17 de julho de 2010

O primeiro voo do albatroz

Ao Mário Rodrigues que encontrou um aviãozinho de papel


Um dia peguei nele e deixei-o sozinho no meio do mundo.

Já não havia a minha força a embalá-lo e a subtraí-lo à chuva. Voltei para as coisas, simples, pequenas e fugazes, como penugem, a recordar-me que todo o significado da minha vida estava ali para trás, a cada metro de cada quilómetro que ia somando a noite à distância, se pudesse ter olhado para trás já não o veria, nem conseguiria prosseguir. O caminho árduo que conduzia ao meu destino embaciava-se agora com frequência. Finalmente parei, a uma distância que, por segurança, já tornava difícil o retorno. Parei, esfrangalhado.

Foi assim que ele abriu as asas e voou, pela primeira vez. Foi dos dias mais tristes da minha vida, e no entanto a felicidade teria mais lógica, a irracionalidade é por definição inexplicável. Ainda sinto que fui eu quem o empurrou do penhasco, embora todos me digam que não, que aquele acto de pura loucura foi o que havia a fazer, que isso era o bem, a norma, afinal . As asas, essas, eram só dele. A fé no seu voo terá sido minha, minha... Que nem sou um homem de fé. Onde arranjei a coragem? E se ele, a meus olhos implume, não tivesse conseguido? Que tremenda imprudência! A única, a fundamental. Todas as outras são brincadeiras a comparar com aquela cedência que cumpri sem reflectir. Se reflectisse ele não voaria, talvez nunca, e um dia já não saberia voar sozinho.

Mudou-se o centro do universo, que antes via agarrado ao meu umbigo,  mas agora só posso imaginar. As primaveras deixaram de ser só uma vez por ano, mas os invernos também. No entanto recordo que também eu abri um dia as minhas asas frágeis e me atirei desse penhasco, esfrangalhando, como compreendo agora, tudo e todos.  

É a sina de quem não conseguiu transformar o mundo num lugar seu, de quem se limitou a construir um pequeno quadrado inóspito e dependente. Culpei-me, naquela paragem forçada, por cada passo mais imprudente e por cada decisão mais conformista e inerte. Se, se, se... Tantos ses que me davam a possibilidade daquela partida precoce poder ter sido adiada, e todos a colocarem-me no cerne daquela consequência. Nenhum sofrimento por antecipação que me tenha ocorrido me aliviou sequer um pouco do peso que, embora não se compreenda, acaba por se carregar, porque deriva de termos falhado na conquista suficiente do reino onde a nossa lei seria a medida da protecção que queremos para o nosso clã, que entregamos assim aos verdadeiros senhores do universo, e às suas questionáveis leis, que nos submetem também a nós.

Compreendo que é essa vassalagem que me consome, como nem consumiu Abraão ao entregar o seu filho a um deus. É uma troca injusta porque nada tenho a pedir que me sirva, nem protecção divina que houvesse, porque toda a que quero é só para ele, nada justifica tamanho desequilíbrio. Naquele momento entreguei ao incerto o somatório de tudo o que fui e a continuidade que justificará, para o bem ou para o mal, o pó em que me tornarei. 

Passa um ano e outro, cada um não me apazigua a saudade que sinto de cada vez que ele inicia um novo percurso, ainda no momento da partida; nem o temor do momento em que o vejo tentar cada nova aterragem por que anseio, ainda bambaleante, depois de cada longa permanência perscrutando o céu infinito, que apenas adivinho.

Voltando ao ponto de partida, é a penugem que já não consigo olhar. Tudo permanece como que a aguardar que o tempo se inverta e que ele volte para brincar com as quinquilharias desvalidas que para mim são autênticos tesouros, fechados naquela arca, que chegou a ser um quarto, agora mero poleiro, de onde desejo, com frequência, perder a chave de vez.

A esperança que resta é de que a sua liberdade, que muito me apraz, lhe dê, a ele ou aos descendentes, a possibilidade de zelar melhor pelos seus e pelo seu universo, para que não tenha de abandonar um dia no meio do mundo alguém que seja parte integrante de si. Mas sei que peço o inexequível.

Sendo essa provação absoluta e incontornável, sei que no dia da dele, esteja eu morto ou vivo, também assim me realizo.


© CybeRider - 2010

domingo, 27 de setembro de 2009

Pequeno e Imprevisto

Este exercício é resposta daqui
.
Neste belo mas aziago dia
Havia por cá eleições
Eu, apesar de incauto sabia
Que em defesa da democracia
Se iriam mover multidões.
.
O que das sondagens se previa
Que o poder absoluto findasse
Trazia dois grandes em agonia
Mas não me causava fobia
Que o meu voto não aplacasse.
.
Para escolher quem ganharia
Vieram da cidade e das hortas
E eu apostava a lotaria
Que iriam fazer porcaria
Mas nunca que ganhasse o Portas.



© CybeRider - 2009

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Blind Date

Ao Cabra de Serviço

Os anonimatos com que por vezes nos resguardamos servem muitos fins.

Já presenciei algumas opiniões acerca dos escritos anónimos que enchem a blogosfera. Já vi defender que o pseudónimo que nos protege é uma forma de nos ocultar de intenções malévolas e que constitui uma forma de anonimato.

Tenho defendido que nos ocultam de quem pretendemos ficar ocultos. Principalmente daqueles para quem o nome verdadeiro não terá nunca qualquer importância, nem o que fazemos, porque nada disso é o que somos.

Houve um telefonema, um encontro marcado. Um "talvez" que saiu dos lábios, no lugar do sim que de imediato baqueou no coração. Uma chave na ignição, alguns quilómetros. Receio? Talvez, o de poder não estar à altura, o de poder não corresponder a expectativas que se tivessem criado em quem convidou. Nada mais.

A meio percurso a sensação de que me dirigia de facto para um "blind date".

Nada mais errado. Ocorreram-me as recomendações de pai. O exemplo contrariado que teria de lhe justificar... Mas como?... (Ele há-de ler este texto. Compreenderá a diferença.)

De repente estava entre amigos de longa data. Faltava apenas saber quem era quem. Já os admirava a todos.

Tantos momentos já partilhados entre pseudónimos e longe de uma realidade que nos atrofia. Tantos textos escritos e lidos, trocados numa base quase diária. Textos que dizem mais de nós que todas as conversas que a medo vamos entabulando com muitos dos que nos ouvem, estes de quem conhecemos nomes de registo, e profissões. Estes de quem ocultamos facetas mais intimistas, opiniões sinceras e excêntricas, por sabermos que teremos de conviver com eles por mais uns dias...

Ali não. Ali, estavam aqueles com quem partilhei segredos que expus para sempre em público e que aqui permanecerão. Estas ideias para as quais não temo consequências, nem concórdias nem discórdias. Ali estavam desses, apenas. Que me toleram como de facto sou, com as minhas diferenças, a minha individualidade talvez estranha, que me conhecerão melhor que muitos que convivem comigo passo a passo, que julgam saber quem sou mas que não me lêem o que aqui confesso.

Talvez por isso, vi-os sem inibições.

Talvez por isso não falámos de profissões. Despedimo-nos por fim...

Ainda hoje não lhes sei os nomes de registo, nem onde trabalham, nem quanto ganham, nem em que lojas vestem, nem que carros conduzem.

Sei que enquanto estive com eles estive na segurança de amigos que somos. Mas sei sobretudo que, afinal, já os conhecia a todos, bastante bem.

Um "blind date" não é isso.


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 29 de maio de 2009

Epitáfio - (Pelo sim, pelo não...)

Ao diabo que me carregue


Aqui jaz...

Vaticinei num blogue desta praça que haveria de ter uma pedra, num pedaço de terra, com uma frase de um outro que começasse por "Aqui jaz...". Como não chego à conclusão se seria o artigo do blogue, ou uma sua frase, a começar assim para ser alvo da escolha, resolvi deitar mãos à obra - que não quero que me falte nada - e, visto não ter encontrado uma coisa ou outra que começassem dessa maneira, criar para meu alívio, bem como dos que me procedam, o tal texto que salvará de mais esse embaraço a minha imagem pós-féretro.

Tenho a perfeita noção de que a morte de alguém é sempre um problema dos outros, já o referi e volto a repeti-lo. Daí que se preocupem com os quilos que peso, que exigirão esforços mais intensos para pôr a tal caixa em ombros. E se há coisa que me causa calafrios é imaginá-los a lançar-me anátemas, para além de algum desassossego que a minha ausência mais alargada lhes possa causar.

Alguns ficarão logo com aquela ideia preconcebida "sacana, não me pagou", esses podem descansar que pagarei, logo que os volte a ver; outros que não cheguei a retribuir o jantar que me ofereceram... que não se inquietem, se tiverem barriga enchê-la-emos, assim não me falte a memória. Haverá ainda os que não conterão um suspiro, sentido e profundo, não de pesar mas de alívio.

Sabe sempre bem ver chegar o dia que põe fim a um continuado autoflagelo psicológico e persistente tenacidade, empregues em tentar desbravar, aclarar e esclarecer, esta mente absolutamente embrutecida. E ter levado com as visitas e telefonemas intempestivos, de quando em quando, tantas vezes a interromper momentos de grande elevação e beleza, também não terá sido agradável. Lamento.

Nada encontro de mais coerente que deixar perdida no meio do ciberespaço, quiçá ad aeternum, a resolução final de uma vida. Aqui onde a terra acaba e o mar começa, onde ninguém encontra e ninguém conhece, onde ninguém critica e as vozes de burro não chegam ao céu. Aqui, dizia eu, terei de encontrar a solução para este engulho.

Mais fácil seria guardar a frase que, a meu gosto, alguém dissesse com sinceridade nesse último dia; nesse em que vestido com as vestes domingueiras, sapatos novos, daqueles 3 ou 4 números acima, que ninguém compra, e por isso saem a preço de ocasião; já privado de enfeites, maquilhado a preceito, a esconder o tom esverdeado da pele, penteado a brilhantina, coberto de aroma floral, com o guardanapo enfiado dentro da boca e o algodão nas narinas, como para não sentir do aposento o cheiro a parafina; a tal frase que me ficou de infância, quando a li ao Samuel Langhorne Clemens (nickname Mark Twain) - (30 de Novembro de 1835 – 21 de Abril de 1910), e me tem acompanhado ao longo da vida, como que num saquinho de relíquias, que é esta: "Olha... Está vivo!"... e respectivas consequências.

Mas não é isso que se pede. E de pedidos também serei acanhado:

Não quero ir de burro. A viola podem deixá-la no saco, a menos que a leve alguém mais hábil do que eu terei sido. Lembram-se de como saíam sempre que a ia buscar?... Pois agora serei eu que a não quero! Não vá algum faltar e dizer-se por aí que fez lá tanta falta como isso.

Sei que não haverão lágrimas, a maioria de vós nem gosta de cebola, mas espero que não se alarvem em estrondosas gargalhadas, que não quero acordar e ver-me naqueles preparos, ou para ali fechado no caixote (sei lá quando vos daria a parvoeira), e faltar-me para ali o ar e ver-me possivelmente aflito. Fora isso espero que se divirtam, que passem um dia muito bom e que se lembrem principalmente que vos terei deixado livres de uma quantidade de problemas, que tenderiam a aumentar com o avanço da idade.

Ah! Não se esqueçam de pagar ao gajo que cravar na lápide esta frase que entretanto me ocorre, no seguimento das palavras com que comecei o texto:

"...aquele que um dia prometeu que, quando lá chegasse, O convenceria que Ele não existe. Oxalá esteja a ser, também nisso, mal sucedido."




Quanto ao testamento, é muito mais fácil. Basta seguir a moda. Não vejo como não deixar tudo à nora.





(Ainda pensei nesta: "Δεν ελπίζω τίποτα. Δεν φοβούμαι τίποτα. Είμαι ελεύθερος", mas, além de não ser minha, achei-a demasiado rebuscada.)

P.S.: Texto sujeito a alterações, consoante prazo a conceder por entidade indeterminada.




© CybeRider - 2009

terça-feira, 19 de maio de 2009

Gritos

À minha primeira paixão


É o Grito que nos liga a voz à alma.

Não há atalho mais curto. Alegrias, tristezas, espantos, medos, dor, prazer, todos são identificáveis por gritos, diferentes num todo, únicos em si.

Basta um grito para sabermos com que emoção estamos a lidar. E sabemo-lo melhor ainda se for nosso.

E não falo dos gritos de libertação. Que importam, mas são exteriorizados de outra forma. Refiro-me a esse som que emitimos, quando o coração não nos sustém o ar nos pulmões e o liberta, através das nossas cordas vocais de forma incontinente.

Arrisco que não haverá melhor registo do espírito, nem maior forma de arte que o pinte.

Na sua maioria incontroláveis e por isso sinceros, há os que soltamos a sós, os que partilhamos a dois, e os que publicamos ao vivo para uma multidão ouvir.

Destes últimos recordo um dos primeiros, senão mesmo o primeiro, da minha vida.

Transporto-me para uma distância deveras grande no tempo. Recordo um amplo ginásio, um sarau, muita gente a assistir - que naquele tempo a televisão era um objecto raríssimo e passava-se o tempo de outras maneiras.

Havia mesmo muitas crianças que, enfiadas nos seus uniformezinhos de brancura imaculada, calçãozinho e camisolita, com o emblema da filarmónica da freguesia bordado a pontos de amor pelas mãos maternas, tentavam orgulhosamente brilhar pelo meio dos colchões de espuma, trampolins, espaldares, barras assimétricas, enfim toda a parafrenália própria de um ginásio que se preze.

A festa teria início com a apresentação de uma corrida à volta do recinto com umas tropelias pré-combinadas executadas pela classe mais jovem. Teríamos de executar umas rodas, umas cambalhotas, enfim, o habitual, que já se me desvaneceu na precisão dos pormenores.

Mas houve um detalhe que sublimava a importância de tudo o que tivéssemos de fazer. Se de facto deveríamos ter começado com o que estava combinado, começámos antes com o meu grito de descontentamento, de injustiça, de direito roubado, de desilusão com o mundo.

Foi um momento alto. Todos os olhos se centraram em mim. O meu protagonismo não condizia com os meus pequeníssimos cinco anos. Procuravam perceber o significado daquele grito lancinante, que rapidamente se transformou num pranto de revolta.

A razão era porém bastante simples. Na formatura final tinham-me colocado junto a outra menina que não era a Ana Maria. De forma alguma aquele sarau teria início sem que eu pudesse brilhar ao lado da maior estrela do firmamento daquela noite, e aquela surpresa que me reservaram por mera ignorância do maior sentimento que um coração pode sentir, e que era o meu, levou ao meu boicote.

Incrédulo o professor dirigiu-se a mim, recordo o olhar nervoso da minha mãe, e limitei-me a apontar o dedo, para a criatura mais bela que alguma vez vira, e a dizer baixinho com os olhos rasos de lágrimas:

- Só vou se for com a Ana Maria...

E foi feita a minha vontade.

Já não me recordo se fiz bem as rodas e as cambalhotas. Recordo-me que foi uma noite muito feliz.
Foi também, talvez, a maior humilhação por que passei em público. Mas valeu a pena!


Tenho ainda, muitas vezes, vontade de gritar sozinho perante uma multidão. Talvez não saiba depois explicar tão bem o motivo do meu pranto.



Mas do que tenho mesmo receio, é que não me façam a vontade.


© CybeRider - 2009

domingo, 3 de maio de 2009

Mãe... Quem és tu?...

Dedicado aos que nunca foram filhos da mãe


Que as há de toda a grandeza.

As boas, as más, as carinhosas, as mais distantes, as cuidadosas, as descuidadas, as que nos amam, as que nos odeiam, as que nos amparam, as cultas e as iletradas, as que nos matam, as bonitas por fora e feias por dentro, e as que, por mais feias que sejam por fora, serão sempre lindas para nós.

Há ainda mães que são melhores que muitos pais. Há os pais que são mães também.

E há aquelas que vivem connosco para sempre. Que nos acompanham cada dia, como se fosse o seu, lá longe ou mais perto. As que nos transportam na boca em cada palpite do coração, em cada expiração. As que nos seguem, as que nos perseguem, as que nos telefonam e as que nos esquecem.

As que os nossos pais amaram ou amam. As que amam ou amaram os nossos pais. As que nunca amaram ninguém. As que nunca foram amadas.

Há ainda as que nos abandonam num ninho de cucos, para crescermos entre os outros, cientes de que esse futuro incerto é o melhor para nós.

Há as que rebentam as entranhas para nos deitar ao Mundo e as que sem sofrer uma dor nos amam mais do que aquelas.

Que dia é este?

Será o dia de pensar naquela mulher que nos ama e que vimos maltratada, mas que nos culpamos de não ter protegido, porque o agressor foi um pai que nos ama também?

Ou antes o dia em que aquela mulher, que nos ama, empunhou a faca para retalhar esse homem, que não conseguimos odiar, pelo bem que nos quer, mas que a traiu vezes sem fim?

Ou só daquelas que passaram fome para que tivéssemos uma sopa para comer?

Das que nos pariram em consciência, ou das outras que aprenderam a aceitar que somos mais do que aquele acidente?

Ou será apenas das que num acto natural nos deram a vida?

Será o dia de lembrar a mulher que nos criou, mas que abandonámos à sua sorte quando a trocámos pela outra, mãe dos nossos filhos? A que chorou todas as lágrimas nesse dia sem saber se de felicidade ou tristeza?

Ou daquela outra que tudo ensinou à sua menina e a vê partir para todos os erros e injustiças para os quais ela própria, um dia, partiu também?


Mãe...

Quem a tem saberá... Que há só uma!

Para esses, este dia é tão igual ao de ontem como ao de amanhã.


É em todos os outros que penso. Que neste dia celebraram uma das maiores tristezas que alguém poderá sentir.


© CybeRider - 2009

quinta-feira, 19 de março de 2009

O meu acto mágico

Ao meu filho

Acreditei um dia que podia mudar o Mundo.

Tive a força das palavras, a compleição física, a espontaneidade contida por uma formação adequada, os contactos sociais, e a vontade indómita de vencer mais pela razão que pela espada.

Os anos foram passando e a razão não foi tão clara, os contactos sociais foram-se gorando pelo decurso natural das coisas, a força das palavras transformou-se em fraquezas injustas, a formação afinal era insuficiente, e a compleição física, bem...

Sou culpado, por isso, de não vos ter dado um mundo melhor. Mas fiz um acto mágico. E ele nasceu.

Encontro-lhe as forças que não tive. Mostra-me novas definições para incomensurabilidade. Redefine-me a palavra amor. Devolve-me a fé que perdi, renascida nos valores que tenho sobre a vida. Faz-me acreditar que o amanhã vale a pena.

Hoje, sei o verdadeiro valor da minha vida; porque ele mo mostrou quando apareceu: vale bem menos que a dele.

Quando o olho nos olhos vejo aquele brilho que entretanto perdi, e sei que sim: Fiz algo de muito importante pelo vosso Mundo.


Foi o meu único acto mágico.



© CybeRider - 2009

quarta-feira, 18 de março de 2009

Cantiga de amigo

Dedicado a todos os que sabem que sei que eles sabem que sou e que são


Na lírica medieval do norte da Península Ibérica, surgiu uma moda poética cantada por jograis em que os temas, escritos por homens como se saíssem das bocas de mulheres, tinham como tema o erotismo feminino isento de amor físico.

Ora se a Rita Lee estiver certa, e o amor sem sexo for de facto amizade, nada nos impede nos dias de hoje de cantarmos nós próprios as nossas cantigas, sem que soe muito abichanado colocar as nossas palavras na nossa própria boca, que é afinal onde elas pertencem.

Exercitando o que disse, vou declarar sem medo que todos os meus amigos têm um dom.

Para além da notabilidade implícita ao facto, nos tempos que correm em que sagra a mediocridade humana, poderá causar estranheza esta súbita destrinça de super-heróis, porque disso se trata.

Podíamos imaginar que fossem saídos de uma mesma família, com a mesma tipologia de poderes sobrenaturais, mas não... Cada um tem um dom particular que o identifica imediatamente dos outros, o que torna tudo ainda mais assustadoramente singular.

Por isso, quando estou com os meus amigos, acho-me sempre bastante modesto. Não fui bafejado pela sorte de ter um dom como eles; deveria por isso ser mais tenaz e persistente com algumas qualidades mais mundanas. Mas, também não...

Desencantadoramente, fico tomado de uma inexplicável languidez e bem-estar que parece tolher-me os movimentos e deixar-me sempre tropegamente sentado na cadeira. Mesmo quando o ambiente é de festa e todos participam na elaboração de um manjar de reis... Ali fico, com um sorriso aparvalhado, a vê-los deslizar com elegância à minha volta.

Chega a ser irritante!

Daí que não perceba o que acaba por fomentar a nossa amizade. Mas claro que a resposta é óbvia: é a grande qualidade que lhes é inerente que acaba por dar o mote à sua enorme tolerância.

Isto torna-os a todos ainda mais magníficos. E a mim ainda mais espantado.

Homens e mulheres de palavra, ainda somam a todas essas uma qualidade: é que eles próprios não fazem cantigas de amigo.

Falo sobretudo daquela que começa por "Emprestas-me 100 paus?..."

Sou mesmo um tipo cheio de sorte!




© CybeRider - 2009

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Dia dos Namorados

Dedicado à mulher mais fantástica do Universo


Amor é

Oferecer-te um nada
Tirar-te um pouco
Contar-te uma piada
Ficar-te com o troco

Dar-te suspiros
Acordar-te feliz
Trocar-te abraços
Beijar-te o nariz

Escrever-te uma carta
E pedir-te o selo
Perder-te os chinelos
Guardar-te um cabelo

Partir-te o coração
Colar-te os pedaços
Compor-te uma canção
Mostrar-te palhaços

Corromper-te a solidão
Rasgar-te a roupa
Desarrumar-te o quarto
Deixar-te louca

Pedir-te que esperes
Deixar-te ouvir
Dizer-te o que não queres
Empurrar-te e sorrir

Entornar-te as compras
Sujar-te a casa
Limpar-te a boca
Deixar-te em brasa

Agradecer-te o dobro
De tudo o que te faça.


© CybeRider - 2009