sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Reencontro

Texto agraciado com o 2º prémio do Concurso Literário Elviro da Rocha Gomes, na modalidade de prosa, promovido pela União de Freguesias de Faro em 02/02/2022


Acordou tarde.

Enfiou os chinelos e foi a arrastar os pés, ainda sonolento, até ao lavatório. O velho do costume ali estava, a mirá-lo de frente, com o pijama em desalinho, os olhos remelosos, um fio de baba ao canto da boca. O olhar entre o mortiço e o reprovador. Tornara-se num estranho, apesar de se terem conhecido há quase setenta anos, quando aquela imagem era a de uma criança, a imitar que fazia a barba, com a espuma do pincel do pai.

Foi até à cozinha. Faltava já a poesia, não havia a música, nem das que acompanham o enredo nos filmes mais tristes, nem outra que se pusesse a tocar no rádio. A vida não vem com música de fundo e a que criara sempre tivera um propósito, a derradeira peça tinha-a dedicado também, como todas as que escrevera em mais de quarenta anos. A partitura ainda amarelecia, pousada no piano empoeirado ao canto da sala, como naquele dia em que ficara só.

O passado, eram farrapos espalhados em pequenos objectos dissimulados na mobília e repartidos no pensamento. Os sonhos, que tinha abandonado na almofada, há muito que tinham deixado de tentar prever o futuro. Quando se esfuma a esperança a alma alimenta-se de memórias, até nos sonhos. As mais queridas estavam no peito, como um punhal a trespassar, constante, impiedoso.

Os dois filhos eram agora telefonemas ocasionais e convites alternados pelo Natal. O apartamento, antes pequeno, tornara-se gigantesco, com a solidão e o silêncio insinuantes atrás de cada porta, grotescos, tenebrosos.

O chá e as torradas encheram o ar de um aroma repetido, aconchegante, pelo que tinha de seguro, em desafio à incerteza da saúde precária suspensa de comprimidos. Placebos, pensava ele.

Com a chávena a aquentar a palma da mão aproximou-se da janela. O habitual formigueiro multicolor lá estava, ali não tinha amigos, todos naquele quadro lhe eram desconhecidos e ele também desconhecido de todos, irreversivelmente.

A sua perpétua misantropia tinha-o deixado naufragado numa pequena ilha, que pairava num oceano de águas calmas, de onde poucos o tinham ocasionalmente conseguido retirar. A maioria tinha-o esquecido, uns levados pela vida, outros pela morte. Haverá pior morte que a do esquecimento? Pensou.

Joana... Enquanto lhe acariciava a mão imaginária. Que falta me fazes. E, sem que saibas, ainda aqui te espero, mais que à luz no horizonte, mesmo acreditando que não podes voltar. Também tu me esqueceste, ou já me terias levado para o teu lado.

Entardeceu. Está frio. Ele acende a lareira, senta-se e pega no álbum de fotos, como costuma fazer a tentar acelerar o tempo que não passa. Estão ali as viagens que fez com ela. Só ele sabe o antes e o depois de cada uma daquelas imagens; momentos que desfilam para além do que vê. Mais ninguém pode compor cada passo desses caminhos, ou a razão de cada sorriso sincero que ali ficou retido. És linda, Joana, para sempre.

Não reparou que se esquecera de abrir a ventilação. O fumo aumentara na sala e quando tentou abrir os olhos ainda a viu, a estender-lhe a mão...

- Joana, és tu!



© Direitos cedidos à União de Freguesias de Faro