Havia uma altura do ano em que tantos tinham o mote para o que havia de ser a redacção mais emotiva do ano, a habitual exposição dos momentos mais ou menos mágicos, das suas consoadas de meninos, aos olhos coscuvilheiros de colegas e mestres.
Uns, sem imaginar que o barrigudo de vermelho provinha da publicidade americana a uma bebida proibida pelo regime, outros que acreditavam também num Jesus, Menino, que trazia prendas, e aqueles que já saberiam por esses dias que teriam de inventar tudo outra vez.
Para mim, ainda acreditava na magia das bugigangas que o céu haveria de trazer e que seriam pedaços de paraíso que espalharia pela cama naquela das noites mais bonitas do ano, se me portasse bem. Nessa altura nunca teci juízos acerca da importância que poderia ter, para a Dª. Graciete, a tal redacção natalícia, nem para ela nem para o tal regime que nos privava do tal refrigerante e de outras coisas mais prementes que eu, ainda sem teima, desconhecia por inexperiência, mais que desatenção. Ainda não tinha ouvido que o Natal seria quando um homem quisesse, por isso aquele relato escrito me parecia um dever, talvez mesmo cívico, mais que uma fonte estatística para o mestre e um sensor económico-social do regime que refiro, aqui já em exacerbo do meu espírito crítico, talvez. Há muitos anos que deixei de saber se ainda se faz a redacção por essa altura. Este ano porém a coisa já me seria mais fácil.
Ainda a tentar recompor a minha fé nos homens, ainda a tentar remendar a compreensão para com os marginais à força ou por falta de tino, ainda a tentar repor, com similares raros e sem história, objectos que me acompanharam uma vida, e cujas memórias que encerraram constituíam uma fonte de inspiração, alarvemente subtraídos por quem apenas viu objectos e o único valor que para mim não tinham, fui abordado por um homem com fome.
A fome é pungente, principalmente quando o sistema que acreditamos que a poderia combater é tão subvertido como vamos tendo a noção de que o é. Pactue-se ou não com a caridadezinha inútil mas exorcizante, perante o facto há sempre a alternativa mais fácil, mas que deixa sempre uma farpa, e a mais complexa que pode não encher barriga nem aquietar as almas mas que difere de cruzar os braços em forma de manguito. Num dia em que optei por esta, saiu-me em sorte este estrangeiro que não vi até que se tornou impossível não ver, ao lado do meu almoço extinto, de chinelos apesar da chuva e meias ensopadas, e com o olhar de quem já perdeu a esperança no apelo automático a que a repetição já vai levando também a contundência.
Aos filhos fazemos muitas vontades, por ele levantámo-nos da mesa, naquela casa onde o outro era um indesejado, e fomos. Três homens à chuva; afinal quatro, a contar com o velho de muleta que tinha ficado a aguardar do lado de fora pelo dinheiro que os únicos clientes daquela sala teimaram em não lhe dar. Pelo caminho recebi votos de “bom natal” por cada impropério que me ocorria a maldizer o dia em que aqueles dois tinham saído de uma terra longínqua para outra onde tantos meus conterrâneos na mesma circunstância saberiam pelo menos compreender o que lhes dizia, contra o adequado português de iniciante que aqueles tinham aprendido. Por momentos cheguei a imaginar que mau teria sido o meu começo se a Dª. Graciete me tivesse iniciado pelas palavras que aqueles dois repetiam na perfeição.
Pior foi o confronto com as febras e arroz, o melhor prato do snack-bar onde entrámos, à parte da tarte de vegetais que também não lhes agradava. Aí, compreendi o pedido de frango que eles repetiam, mas que era mais longe e com mais chuva. Todos os outros pratos quentes tinham carne de porco. “Somes muçulmano”… Búlgaros do raio que os partisse! Lá se decidiram pelas febras. O funcionário, mais simpático que a senhora que veio da cozinha a dizer que não os queria ali, mas a quem as minhas duas, vá três, palavras sibilinas acalmaram, ainda perguntou se eu queria que ele juntasse esparregado, mas eu disse-lhe que não, já que era para deitar fora, que fosse só assim; sei lá o que é que os “muçulmano” iam achar daquela coisa verde peganhenta.
Repetiram o “bom natal” que eu recusei por na religião deles aquilo ter significado nulo. Mas aprendi que eles deveriam ter a minha religião, porque a deles ainda lhes enche menos a barriga que a minha.
Ah! E também que Maomé e Salazar tinham mais em comum do que eu pensava.
© CybeRider - 2010