quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Ano Novo, vida velha

Por onde passo ouço desejos.

Ou está tudo grávido de algo estranho, ou sou eu o estranho que não entende tanto sentimento desiderativo.

Os que tudo têm desejaram prendas, pela celebração do nascimento de Cristo, os outros desejaram que não lhes desejassem nada de pior. E vêm estes dias em que se deseja um "bom ano", e lá se empurram mais umas passas e lá se esquematiza outro punhado de desejos.

Ainda bem que me atafulho do que a mão consegue alcançar, tento entupir as ideias e calar a boca para que me saia apenas o mínimo indispensável de hipocrisias.

Pois não desejo eu afinal tudo de bom para todos durante todos os dias do ano? Não saberá quem me conhece que nada de mal consigo desejar em todos os dias que restam? O que tornará afinal estes dias mais sinceros que os outros? Que necessidade tenho de enviar votos do que quer que seja? Ainda se durante o resto do ano vos tivesse odiado, invejado, estigmatizado, ofendido; bem, ofendido talvez, mas não foi com intenção deliberada, talvez em autodefesa, ou porque me distraí...

Passarei, à laia de promessa, a desconfiar de quem me deseje coisas boas por esta altura; ter-me-ão sem dúvida desejado o pior em todas as outras.

Não foi a natureza quem pensou na divisão dos anos. Podiam dividir-se noutro dia qualquer que o resultado seria o mesmo. Reitero hoje como amanhã um desejo, este à laia de moda, vício da época, embora o deseje todos os dias:

Que este tenha sido o pior dia do resto das vossas vidas. E o "tenha sido" justifica-se pelo facto de que nada do que foi mau poderei alterar, que se pudesse... Talvez começasse por alterar a forma como celebramos estas passagens. Atribuiria a cada meu semelhante vivente uma medalha por cada período decorrido, essas insígnias trariam consigo a capacidade de nos recordar de um valor antigo, o respeito pelos anciãos. Talvez nos impedissem de seguirmos a moda consumista, talvez evitasse que os fossemos jogando fora aos poucos, com cada cabelo branco que lhes surge de novo, ou cada ruga que se lhes aprofunda na face. E no entanto, tantas vezes, são eles os primeiros a cumprir tradições e a encher-nos ainda a mesa, na ceia de Natal, e a ter desejos positivos para o nosso futuro, tantas vezes com a ingenuidade das crianças, e nós crianças tontas nem os ensinamentos deles seguimos; talvez porque não nos pesem muitas medalhas ainda, mas menos pesarão futuramente por mérito.

Mas somos bons nestas alturas, tão bons que o céu chora, tão bons que mesmo que ele não chorasse acharíamos que o mereceríamos, simplesmente porque proferimos alguns desejos como se babássemos por um manjar raro; que ridículos nos tornamos...

Que este tenha sido o pior dos vossos dias, esse é o voto que faço a cada renovação de um sol pelo outro, porque se este tiver sido o pior dos vossos, todos os meus no futuro não serão também tão maus assim.

E amanhã... Amanhã tentarei retomar a minha vida, sem promessas nem desejos. 


© CybeRider - 2009

sábado, 19 de dezembro de 2009

Uma cadela em Copenhaga

Levaram-me a bicha para o estrangeiro.

Maganões... Que ali sim, a iam exibir num concurso da especialidade. Iam-lhe medir os quadris, a altura ao garrote, a beleza do pêlo; em suma aferir-lhe o estalão. Cá fiquei inquieto, eu que a trato tão bem, nem me convidaram. A mim disseram que não, que lhe dava maus tratos, que não a livrava das pulgas e que a admoestava à paulada. Mentiras!

Fiquei a seguir o evento pela televisão. Sentado, felizmente, de manta sobre os joelhos, que faz frio. Começaram por escová-la a preceito, depois analisaram-lhe o sangue, e concluíram que estava em mau estado. Precisava de uma dose cavalar de vitaminas. De início ainda acreditei que iam tratá-la, mas começou a chegar-me aos ouvidos o relato acerca das condições miseráveis em que a mantinham no canil, rodeada de excrementos, à mercê das intempéries.

Ah, vil malandragem, então foi para isso que ma levaram?... Melhor fora que ma tivessem deixado, pelo menos sempre poderia acreditar que afinal não soubera eu tratar dela.

Tenho aqui condições. Não sou um industrial, aliás já pouco produzo. Os europeus levaram-me os barcos, pagaram-me para derrubar as laranjeiras que lhes impediam as vistas para o mercado, enfim pouco mais faço que alguns serviços. Chamam-me agora europeu também, a mim que mal os entendo. E querem que fale com eles de igual para igual, mas cerceiam-me os direitos e impõem-me deveres, que para cumprir tenho de forrar em capas de plástico, daquele que eles produzem. Não posso usar os meus métodos tradicionais que lhes chamam bárbaros, acabo por me ver grego...

- Anda cá, Terra!

Chamo-a, mas não me ouve. Está longe a minha cadela, a alimentar uma ninhada de cachorros gordos. As pulgas bem cravadas na pele já em crosta sugam-na até ao tutano. Foi para isso que me afastaram, que não quiseram que me aproximasse, para não poder ver. E ainda dizem que sou eu o culpado. Culpado de quê? Acaso serei eu que a sufoco com o fumo da minha lambreta? Sou eu que a asfixio, que não lhe deixo espaço, se a minha casa fica cada vez mais vazia? Certo é que já quase não tenho com que a alimentar, talvez por isso me foi mais fácil vê-la partir.

Mandaram cicerones a acompanhá-la, mas os coitados não se apercebem de como são pequenos, eles também, como o país de onde partiram. Confundem-nos com as pulgas que infestam o pêlo da minha cadela, e eles fazem-se importantes e crescem para aquelas feras malditas, mas estas sabem que eles, assim como a cadela, mesmo que ladrem também não mordem. E os coitados lá vão andando, ridículos, de rabito entre as pernas.

Não pode a cadela com tanto cachorro...

Ai Terra, Terra... Vejo-te de língua de fora. Infelizmente hei-de, por este andar, ver-te a deitar os bofes pela boca...


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

De noite, mais cedo

Fica de noite mais cedo.

E cada vez mais cedo entranho a noite que cai. Olho o Sol, rei mudo que nos ilumina, e vejo-o sempre a pôr-se na escuridão que me colhe. Ainda quando nasce é a escuridão que lhe sinto, a cada dia que passa inexorável.

Invejo-lhe o percurso ilusório, silencioso e lânguido, como se o tempo não se lhe acabasse, como se a rua que palmilha existisse para sempre, a cada segundo a inércia que o impele à escuridão que me atormenta.

Vem-me o frio mais cedo, a solidão de cada passo sempre no mesmo sentido, o impulso cego para o beco escuro do vazio. O relógio não define o que o coração sente, dali não emana luz que acalente a minha ânsia. É a noite sombria que me espera para me entorpecer no sono a que sucumbo por fim, despojado de força anímica por outra vez. Num ininterrupto activar e desactivar a que me sujeito inutilmente, nesta noite entrecortada que chega sempre mais cedo.

Cubro-me com a manta, transpiro o desperdício a que me sabem essas horas. Esqueço-me por fim de mim. Um hiato basta para que desperte atento de novo ao percurso igual da luz que tudo aclara, e observo atentamente até à exaustão cada momento do seu percurso gigantesco que me volta a atrofiar. Manifestação rotineira a que não escapo, sinto-lhe de novo o bafo frio, ei-la que se renova sem demora, com pontualidade confrangedora. Mais um dia que se esfuma e me esborracha como um verme nesta noite temporã.

Na ausência do pequeno Sol que nos aquece, e que nos oculta a dimensão real do cadafalso, ela surge sempre negra, a noite, que é tudo o que há.

E é mais cedo que me chega, sempre. Não importa que voltas dê aos ponteiros enganadores do meu relógio. Como a sinto, silenciosa e fria...




© CybeRider - 2009

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Um dia, hão-de ver!

Um dia vou ter um blogue.

Uma dessas modernices, um blogue. Vou ter um, cheio de dia, cheio de vida. Vou contar todas as alegrias e tristezas, o cheiro do pão quente pela manhã, o telefonema que me irritou e que me deixou tão tenso que nem consegui comer a sopa que derramei sobre a roupa. Vou-me divertir à grande, aliviar a pressão dos dias que me ensombram. Vou colocar as fotos mais incríveis, com as festas mais vibrantes, vou fotografar os cães da rua e os pássaros nos beirais, ou as dicotomias que me apeteçam. Nunca mais hei-de passar indiferente, todos saberão onde estive e invejarão cada camisola que pus para lavar.

Vou cifrar todos os textos, para que os possa reivindicar sempre que mos roubem. O algoritmo complexo há-de prever que a combinação de certas sílabas se conjuguem numa frase que só eu conheça e possa apontar à prova; como viver sem propriedade privada?

E desengane-se quem pensar que um blogue vale por si. Não! É um pilar de apoio de uma vida, vazio se esta não tiver sentido, robusto se a vida for plena. Aliás, um blogue é como um filho, e há quem os troque, quem passe horas a escrever tonteiras e nem se recorde se beijou o filho ao chegar. Há quem durma com o blogue e esqueça o parceiro carente. Eles não esquecem, e hão-de amaldiçoar certo autor vezes sem conta até um dia.

E sempre se deixa um traço fugaz no mundo. Sim, porque afinal os filhos morrem, em incentivo da proliferação da espécie, talvez; preferencialmente depois dos pais, ainda assim... Como prolongar a nossa existência até que nada mais reste? Mais fácil de acarinhar, sem termos de lhe limpar o rabo, o ranho, nem dar dinheiro para que o gaste na primeira tolice mal parida que lhe passe pela testa, o blogue é tendencialmente eterno, quando nos vamos também ele fica; principalmente se não testarmos que o apaguem ou não deixarmos senha de acesso.

Nesse dia vou escrever com vontade. E será à séria, sem caixas de seguidores, sem comentários, sem contadores que me iludam. Que me interessa o que digam, quem diga, e quem cuspa? Em mim ninguém há-de! Vão lá comentar o demo que os pese... Será assim, sem chatice, ninguém me há-de deixar a pensar senão eu e o que eu queira.

E sonharei com encadernações bonitas para as minhas páginas... Para os meus meninos. E com vê-los somados em piras como que prontos para imolar, só por mim, que levarei a cabo o crematório para lançar segundas e terceiras edições que se lhes seguirão convulsas, e que só eu saberei ler. Mas serão meus, das minhas exclusivas tripas, sem mulher ou amante que inveje por ter de lhes chamar também seus.

Assim como este ou aquele, que conhecerão, de ler e chorar por mais ou menos, mas principalmente sem linhas de conveniência, nem ligações ou recomendações para algo nem alguém que se admire ou a quem se agradeça.

Deixar-me-ei de funambulismos, será tudo pela certa.

E será assim também, como hoje, cada momento como se fosse sempre o último.

Será um dia, hão-de ver...

© CybeRider - 2009

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Há datas que não se repetem

Faz hoje uma data de anos. Foi a primeira chapada que apanhei. Foi a primeira vez que me separei de alguma coisa. Foi a primeira vez que houve uma primeira vez. E foi-o de facto para uma data de gente, expressão curiosa esta, porque de uma data se trata de facto.

Não fosse a data que hoje recordo e o mundo nunca teria tido esta data para mim; nem as outras. Não recordo o brilho da ria, nem se havia barcas e trombetas, nem se os anjos estavam tristes por uma alma cair do céu. Não recordo se o tipo que me bateu tinha óculos, não recordo gritos de dor, nem manchas na brancura do linho, nem lágrimas de alegria. Calculo que me deram banho, calculo que alguém terá ficado feliz, eu não.

Mas que importava a minha felicidade?... Ouvi dizer que foi importante para alguns, pelo menos naquela altura. Sei que sim, porque já fui feliz num dia como esse, a bom rigor em contraponto à felicidade do visado.

Não sei se ela lhe tinha arrancado os botões da farda, nem se ele lhe tinha corrompido a lingerie. Sei que pelo menos num dia ele não me condenou à latrina, e ela não disse que lhe doía a cabeça. Deviam ser belos, os jovens são sempre belos, e gostaria de pensar que estavam apaixonados. Talvez ela tivesse chorado, e aquela fosse a forma que encontraram para vencer a tormenta e dar corda a um futuro; talvez se tenham envolvido e revolvido em seguida e pensado que o futuro era afinal uma piada de mau gosto. Nunca o saberei. Mas sei que aquele gesto, que o tempo felizmente não me mostrou, teve consequências que eles não poderiam prever naquela altura. 

Também gostaria que tivesse sido um anjo a perder-me por anos a fio, mas pode ter sido um demónio. Não tenho pressa em descobrir, mas calculo que um dia voltarei para preencher esse vazio. Até lá não tenciono preocupar-me com a tristeza que um ou outro possam estar a sentir, apenas me palpita que voltarei; um ou outro, talvez fique feliz por me tornar a ver. Não tenho vontade de contar por onde andei, hoje ainda não.

Lamento se fui objecto de uma troca celeste e se algum apanhou com os torrões mais cedo por minha causa. Depois do mal feito já não há remédio. Hoje alguns, algures, estarão a berrar como eu berrei e algumas senhoras que terão arrancado os botões da farda aos maridos há nove meses, ou a quem estes tenham rasgado as calcinhas num gesto de carinho, estarão a sofrer uma alegria igual à que aqueles dois sentiram, resta-me desejar a esses novatos que tenham menos desgostos, que serão outros, que sejam menos.

Pela primeira vez aquele gesto longínquo aparece referido, preto no branco, culpem-nos a eles, não a mim. São esses desconhecidos os únicos responsáveis por esta leitura. Esse será para mim o único facto digno de nota.

Que eu já o sabia, a novidade, essa é toda vossa.


© CybeRider - 2009

sábado, 21 de novembro de 2009

Selvagem por um dia

Sinto o animal que me agasalha, tolhe-me a memória, invoca os instintos e esqueço tudo o que aprendi para passar a perscrutar a selva à minha volta. O rio porém meteu toda a água na mala e partiu para parte incerta, levou com ele a chuva que nunca mais voltou.

Na estepe árida procuro o abrigo onde passe a noite, sempre longa, tão longa que hei-de escrever sobre isso, se a memória não me falhar. É o sangue que me domina, o faro apurado que me instiga a prosseguir entre a vegetação moribunda, os pequenos troncos secos que afasto já sem sentir os pequenos golpes que retalham a pele. O vento em fuga constante ressalta nas folhas secas e leva algumas com ele, com um ruído em surdina. Não me lembro do vento, nem das folhas. Já esqueço o rio, que talvez nunca tenha visto. Só o presente é intenso. Esqueci os nomes dos outros... Há uma cara ou outra que ainda recordo, por pouco tempo. Tão pouco que quero guardá-las para sempre, e troco as datas sem saber quando celebrarei outro aniversário.

As maneiras que tive já não as pratico, deixei a etiqueta e os modos. Agora é tudo em bruto, sem medo e sem trégua. Não me confrontem no meu meio, serei vencedor. Aqui terá de ser segundo as minhas regras! Paz, nunca mais, aqui não. Talvez algures, se esse sítio existir. Já não me lembro. Perdi a História e todas as histórias que me contaram.

Ainda saberei amar pai e mãe?

Sinto porém o apelo do clã, desses recordo e acalento o cheiro e a vontade de proteger e partilhar. Só desses. A memória que não me lembro de ter tido, essa pressinto que partiu; os nomes; as caras; as datas; os locais... Nem me lembro se tenho ouvidos, se algum dia ouvi algo do que me dissessem.

Que outra fogueira arde para além da que queima no peito?

Há-de haver quem não sinta o cheiro a doce da toca. Há-de haver quem não sinta o sabor a sangue das feridas, que estraçalham a alma.

Que havia sonhos, futuro, esperança. Se ao menos me lembrasse onde os enterrei. Sem rio não tenho norte, resta-me deitar-me no leito e revolver os torrões. Não me lembro da última vez que sonhei. O instinto há-de guiar-me ao covil.

Que bem me sabe esta maçã.

Não há retorno porque perdi as memórias. Selvagem por um dia, selvagem para sempre.



© CybeRider - 2009

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

D. Quixote de lata

Miro a paisagem desmontado do meu Rocinante de lata.

Não fora o penico de plástico na cabeça e ninguém diria a loucura que me invade as entranhas. Queria uma bacia de barbeiro, mas já não havia. Não faz mal, este apetrecho serve o propósito. Imagino-me majestático, imponente. Passam-me pela ideia os momentos mais felizes, aqueles em que a lata da minha armadura brilhante, que era brilhante então, não estava suja e amolgada como agora, não...

- Ah, Dulcineia... Lembras-te? Como tudo era fácil... Não haveria moinho de vento que me fizesse frente. No entanto, só tu me compreendias.

Para o resto do mundo eu era apenas um visionário insolente. Alguns achavam alguma piada e juntavam-se ao meu séquito, outros nenhuma e combatiam-me com tenacidade.

O que me vai faltando é a lata. Falta-me a lata para pedinchar favores, falta-me a lata para corromper ideias obtusas e abafar as línguas viperinas que tartamudeiam à minha volta. Falta-me a lata para ferir susceptibilidades de quem se arroga o direito de me tentar profanar princípios e exigir que inexplicavelmente os pretira. Sem lata para ripostar acato desacatos que nunca aceitaria na temeridade da minha sã loucura. Tendencialmente espero que o Sancho Pança me resolva os problemas, ele com o seu pragmatismo e boçalidade. Esqueço voluntariamente que um mero escudeiro nem saberá o que está em risco.

Vejo-me a forjar uma pretensa timidez absurda, com a habilidade exímia com que forjei a armadura brilhante que um dia enverguei e parti para o desconhecido.

Lata não me faltou então, para conquistar o meu parco território, tampouco para me declarar à Dulcineia, que me aceitou a triste figura. A minha armadura sobreviveu tantas pelejas, removi-lhe o pó de cada refega tanta vez... Agora já não. E desiludo-me ao ver no meu reflexo a pálida sombra do guerreiro audaz, que nunca prestou vassalagem para conseguir os seus intentos.

De armadura velha e oxidada, descubro as cãs e olho o horizonte. Sem lata que me proteja fico indefeso, de penico de plástico na mão.


© CybeRider - 2009

domingo, 8 de novembro de 2009

Hiperglicémico

Cirando por um mundo de feira.

Pessoas de massapão, cães de alcaçuz, gatos de caramelo, pássaros de chocolate.

Os bebés são de marshmallow, têm de ser! Toda aquela fofura, e a tonalidade rósea da pele... Os de chocolate também são deliciosos, e mais fáceis de definir: perguntei a um dos putos doces da rua que nome dava aos marshmallows, ele disse que eram "borrachas"...

Borrachas não é o mesmo. De látex serão aquelas bonecas para adultos, curvilíneas, que se passeiam provocantes e desejáveis. Mas a essas chamam-lhes "borrachos", e vou-me perdendo em conceitos, porque me parecem doces também.

Atravesso a faixa de tarte de alfarroba. As viaturas de rebuçado multicolor interrompem a marcha e deixam-me atravessar pelo tracejado de açúcar em pó. À minha volta o pão-de-ló gigante toma a forma de edifícios decorados na base por troncos de chocolate apetitoso encimados por fios de ovos dourados, nestas tardes de Outono.

O mar de granizado azul estende-se a perder de vista, a enorme rodela de laranja parece brilhar intensa e soberana a enfeitar-lhe a orla ao fim da tarde; como num coquetel requintado, onde os montes que sobressaem são pedaços de frutas saborosas embebidos na delícia, serpenteados por traços de licor de ginja. 

Vejo alguns cumes cobertos de creme chantilly delicado, que parece escorrer para os vales polvilhados de polígonos de compota de tomate, atravessados por linhas de gelatina verde prontas a juntar-se ao doce oceano.

Saltito por entre as poças de açúcar em ponto pérola que caiu do algodão-doce espesso que pairou sobre a cidade de manhã.

Chego a casa, abro a porta de morgado de amêndoa, tenho a roupa embebida em melaço. Que bem me vai saber o duche, abro a torneira que jorra a magnífica calda de pêssego. Não há senão doçura no mundo que vejo e que me proponho saborear.

São as atitudes dos diabéticos, que ao deturpar a culinária, adulteram a confeitaria e tolhem os pasteleiros .


© CybeRider - 2009

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Um jardim no paraíso

Quem quer saber sobre o jardim onde passeio?

Já vos falei da rapariga do fato de treino rosa? Sim, bem me parecia… Mas não vos falei do coreto, nem do rio maravilhoso que se avista cheio de barquinhos de papel, ou não, talvez papel ainda grosso em toros de madeira bruta, a aguardar que a imaginação os lamine. Só vendo de mais perto.

O laguinho com peixes dourados e cágados; pois, com acento, para acentuar a diferença. Os cágados, assim acentuados, são pequenas tartarugas que espreitam entre os nenúfares e que se escondem de timidez ao menor movimento. Quando a água do lago está limpa pode-se vê-los a desaparecer num nadar bamboleante para se esconderem nas rochas do fundo, perante a indiferença dos grandes peixes dourados. A água filtra a imagem dando-nos a sensação de que tudo é bem maior. Os grandes peixes são afinal bastante mais pequenos, mas como poderei explicar de que tamanho são os peixes? Digamos que ficariam mal num tacho de caldeirada mas preencheriam a rigor uma caixa de filetes enlatados, tirando a cabeça e as barbatanas, seria isso.

Ainda sou do tempo… Que sou, de facto. De todos os tempos, mas recordo quando o coreto se enchia de musica e  a turba se acotovelava, adomingada, para escutar as melodias fanhosas que emanavam dos metais. Não me consta que os peixes ou os cágados, assim com acento pois claro, espreitassem entre os nenúfares. Só nós, ficávamos ali impávidos a olhar, com as cabeças de fora, sem chegarmos às copas das frondosas árvores que sombreavam a calçada e as flores surdas.

Não vos falei das fieiras de casinhas brancas, oitocentistas com telhados de quatro águas, que circundam o jardim, nem da forma intensa como a sua cor branca salteada de amarelo tende a subverter o anil da água do rio que ali já é do mar. Nem dos cães, nem das aves que pousam nas tais árvores de copas inalcançáveis, que subvertem o passeio e os fatos imaculados dos que escutam a banda do coreto; os cágados, assim com acento, ficam serenos perante os cágados sem assento, que a pé se besuntam com os dejectos dos cães, vadios mas gentis e independentes, e se maculam pelas aves que os escolhem à minúcia para lhes tingir as vestes. Nem dos assentos raros, onde as mães trocam as fraldas, sujas sem acento, dos bebés que choram a reclamar do tal som fanhoso que emana dos tais metais, nem do exalado aroma, imperceptível pelo perfume que paira das corolas expostas aos domingos de Primavera.


Hoje passei pelo jardim onde o coreto alimenta as pequenas ervas que brotam do lajedo onde os sapatos dos músicos costumavam marcar o compasso. Não há peixes no laguinho, foram substituídos por pacotes de tons metálicos, já sem batatas. Os cágados teriam assento, porque ninguém se senta nos banquinhos do jardim. E o aroma é do peixe grelhado.

À porta do restaurante daquela rua antiga vejo-as a grelhar, as sardinhas gordas que encheriam uma lata, sem a cabeça nem as barbatanas. E fico a pensar se não serão afinal aquelas sardinhas douradas os peixinhos que me levaram do laguinho do meu jardim. 


© CybeRider - 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Quando a fama me vem de longe

Maria Madalena tinha reputação de rameira.

E não é fácil manter uma reputação por dois mil anos. Ao fim desse tempo começou a ter a fama de ser companheira de Cristo, o grande pensador, que reuniu a seu lado doze discípulos, os iluminados que o ouviam atentamente nas divagações, em desprestígio dos iletrados que constituam mero comprovativo de popularidade. Filho de um humilde carpinteiro, não terá também sido fácil ao pai vê-lo deambular pelas ruas, ser perseguido pelas suas ideias que, segundo os relatos, pregava e que também a ele valeram uma reputação, com seguidores até aos nossos dias.

Mas não é de fé que hoje falo. É a reputação em si que me interessa. De onde nos vem a fama imprevista? Que motivos nos levam a pretender manter uma reputação para além das nossas convicções?

Quantas vezes as nossas atitudes mal interpretadas nos designam consequências que nunca pensámos carregar?

Se não me espanta que nos queiramos livrar de certa mácula que passou a público no nosso passado, já me espanta que recorramos a uma pretensa reputação que defendemos para não aderir ao apoio de alguma ideia válida à qual, não fora a reputação, aderiríamos sem hesitar.

O conceito de reputação é ambivalente. Se nos desconcerta quando nos mancha a imagem por ser falsamente acusatória de algo indigno, por outro lado pode ser um trunfo a exibir se for falsa mas abonatória de qualidades que nem temos.

A reputação é o juízo que fazem do que somos. Como tal, sempre imperfeito. Apesar disso, insistimos em defender a que supomos ser boa, aquela que nos abre as portas de certo clube a que desejamos pertencer, mas que não nos aceitaria pelo que somos, apenas pelo que parecemos ser. Por este facto nego-me a aceitar qualquer tipo de reputação como ferramenta. Ainda quando me abrem portas por pretensa reputação, teimo em apresentar provas de que encaixo no convite. Este simples facto deixa-me liberdade para aderir a tudo o que pretenda e conviver com quem queira, sem receio de ferir susceptibilidades. Não sou eu que tenho de me cercear para que o clube me aceite. É o clube que tem de me aceitar exactamente como sou, se assim não for não me serve, sem que sequer questione se servirei eu ao tal clube.

Na diluição social a que a complexidade da vida nos remete, somos levados a puxar de galões virtuais para nos defendermos do desconhecido. Se sempre me baterei pela defesa das injustiças que me cometam, não me revejo numa realidade em que me tenha de suster num conceito ambíguo e falacioso para justificar as minhas convicções, no intuito de daí obter dividendos.

Não pretendo contribuir para a elaboração de algum tipo de reputação digna. Ainda que seja um perfeito canalha, sê-lo-ei seguindo os meus próprios princípios.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Os contos sem dono

Ao olhar para o que escrevi no passado, compreendo que nunca podemos saber até que ponto o que registamos num momento vai, se é que vai, tocar alguém.

Olho para aquilo e parece que foi escrito por outrem. Muitos dos conceitos que afagavam as palavras sei que os perdi, talvez para sempre. Falta-lhes a envolvência com o meu âmago, que talvez só exista no preciso momento em que exponho o que me vai na alma. E no entanto a caligrafia é minha, o caderno também.

E fico a cismar se não terei sido de facto outra pessoa, de que já não recordo a essência, mas que deixou coisas escritas, para eu ler. Talvez numa época antiga em que sei que estive, porém com méritos e fraquezas que entretanto perdi.

Demoro a convencer-me. De repente, compreendo que não sou o meu autor favorito e perco alguma confiança na minha habilidade. Nunca poderei voltar a escrever daquela maneira, as ideias, algumas aparentemente fantásticas, que volto a abraçar com um sorriso. Perderam a força genética para sempre, já não chegam de fio a pavio.

Comprovo que ganhei experiência, mas verifico que perdi qualidades. Este reconhecimento assusta, porque lhe sinto a irreversibilidade. Perdi muito do brilho aventureiro e vanguardista que encobria o temor de inovar.

Algumas ideias atemorizam-me ainda por já não ter memória daquele vilão. Outras apaixonam-me e fazem-me querer conhecer a alma por detrás do pensamento, mas já não a encontro.

Pensamentos que escrevi, contos que imaginei, soltaram-se da minha alçada e partiram para um horizonte a perder de vista. É como se ficassem para ali, sem dono. Até que me reconquistem o coração e os volte a chamar meus.

Por vezes as coisas resultam mesmo assim. Não lhes falta o fundamental. Mesmo algumas ideias conexas surgem renascidas, outras não. Extraem-se novas interpretações, novas críticas, novas paisagens. As cores, sendo outras, estão lá, mas o quadro já não é o mesmo, e não mudou apenas a moldura... É o enquadramento da obra, e as personagens, sempre dinâmicas...

É como rever um filme de que se gosta, uma e outra vez. Nunca se vê o mesmo filme da mesma maneira, nem quando já se conhecem os diálogos de cor. Há sempre um pormenor que surge, em que não tínhamos reparado. Os filmes de que não gostamos é que é pior, mesmo assim só me recordo de ter abandonado uma sala uma vez. Esforço-me. Nem sempre consigo, mas esforço-me.

Há vezes em que reconheço a pouca qualidade do que realizei. Noutras acabo por encontrar ali qualidades que desconheço. Raramente...

Nestes devaneios sou levado a pensar que não haverá talvez maior injúria para o criador que a crítica pelo infinitésimo.

Custa-me olhar para uma pintura, e aqui o abstracto ou não é logo por si muito relativo, e dizer apenas que tem umas belas cores. Haverá algo mais redutor?...

Ou admirar uma fotografia e dizer simplesmente que tem uma boa escolha de tons, um belo contraste. Sou até capaz de o ter feito. Talvez quando não conheço o autor e não apreendo a ideia à primeira. Depois disso não. Por uma questão de respeito prefiro ultrapassar essa fase e tentar compreender a ideia para além da imagem. Ligá-la pelo menos ao meu mundo, e dizer de que forma me toca. Ou apreender algo de novo, se possível. Se não tenho tempo ou imaginação para ver mais que o imediato, mais vale ficar calado que tratar o artista como se fosse aprendiz.

Que a experiência do fotógrafo, do escritor, do pintor, do músico, devem ser garantias de que a técnica não é o fundamental, antes o resultado. O maior ou menor cuidado na técnica dependem do perfeccionismo de cada um, e podem obviamente restringir muito esse resultado final. No entanto não deve ser a crítica a esses pormenores que o artista espera ao expor a sua obra.

Se sorrio porque alguém disse que escrevi bem. Sou muito capaz de chorar de alegria se compreenderam o que quis dizer.

Afirmo-o num libertino e egoísta tom de alerta. Revejo-me em muita crítica minimalista. Mas todos estamos no mundo atentos a reacções. Assim, faço-me rir ou faço-me chorar. Quando escrevo nunca me sou indiferente.

E sei que haverá quem se surpreenda com isto.

Mas a obra vale por si. Se não me compreendo hoje, quem sabe, talvez amanhã.




© CybeRider - 2009

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Anatomia do beijo

Há os húmidos; os secos; os repenicados; os apaixonados, os que gostariam de o ser; os de carinho; os respeitosos; os consoladores; os terapêuticos; os indecorosos; os consentidos; os fingidos; os repudiados; os roubados; os glamorosos; os decadentes...

Tantos... E tão poucos.

E se o sentido que têm pode ser vasto, a forma não o será menos. Se os lábios põem na prática o que a mente já arquitectou, muitas vezes é a língua que lhes dá o vigor para iniciar a orquestra dos sentidos.

Mas isso já sabem... Já todos sabem. Porque hei-de vir aqui perder-me em conceitos que toda a gente conhece?... Que asco!...

Ah! Há os que doem...

Que os há! Já ouvi dizer. Há os que sabemos derradeiros, de alguém que parte para sempre, por vezes até para melhor. Partir para melhor... Esta expressão que me causa estranheza. Como se ao quebrar a loiça lhe amplificasse a qualidade. E, no entanto, às vezes que bem sabe!...

E os que dão nos mortos? É estranho que se beijem os mortos... É um beijo para nosso consolo, que eles não sentem... E apesar disso...

Mas adiante, que são os vivos que escrevem História.

Como é o último beijo de quem se separa para sempre, depois de uma relação profunda e cúmplice. Falo daquelas verdadeiras; que sensação vibra em quem sabe que aquele é o último? Quantas vezes de alívio, outras tantas de receio. E pensa-se nisso? Pensa-se que será "aquele" "o último"?... Melhor quem não saiba, diria eu; se soubesse...

Não sei.

Sei que, por grande que seja o alívio, terá de doer um pouco; pelo que não se construiu mas que comprovadamente se destrói. E vem aquela réstia que nos cheira a liberdade. "Finalmente só". Só, inseguro; carente; às vezes. Perdido, mais vezes; diria eu, como disse que diria outras coisas, que afinal não sei. Mas outras vezes apenas saciado, sem vontade de mais.

E que "saciado" pode ser menos que "carente" também não sei. Mas disse-o, se o disse é porque o penso, se o penso é porque o acho. Acho... Um tesouro, mais um. Escondido... Penso... Num beijo; que nunca se chegará a dar, aquele que ficará para sempre pendente, depois do derradeiro. Aquele que esperámos repetir um dia mas que se afundou na esperança. A esperança, essa tal que morre, também ela, sempre solitária.

E dói, mais que nenhum, o beijo do nosso filho; o que aquela senhora bem vestida limpa da face com o pequeno toalhete, sem notar que reparamos... E esse, sei que dói. E talvez doa como nenhum outro. E há-de doer para sempre, porque não lhe é avó mas me é madrasta.

E porque a vingança se apura em tacho frio, ou num mero beijo que se não dá... Há mortos que nunca hei-de beijar; porque não podem limpar, depois, o meu beijo da face pútrida.



© CybeRider - 2009

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Alma de campeão

É raro...

Melhor... É muito raro ver alguém fazer peito à violência, que grassa, com atitudes de bravura individual. Vemos sim todos a escudar-se institucionalmente, mas a assumir exemplos de clara fraqueza na situação concreta, algumas vezes com razoabilidade mas em muitos momentos nem por isso, com que se deparam no dia-a-dia.

Não falo do confronto com meliantes, mas mesmo de atitudes mais mundanas, e principalmente da violência psicológica que nos asfixia.

Não é necessário medirmo-nos à pancada. É mesmo da postura que não se assume que falo, e que consequentemente nos enfraquece.

Nesta mariquice em que se vai tornando a vida colectiva, no super proteccionismo que procuramos de um Estado que não nos conhece mas que queremos, a saber porquê, uma mãe; na timidez que se assume como norma quando é preciso intervir, devíamos apelar mais ao nosso lado biológico de animais com capacidades de defesa, que ainda existam intrínsecas ao nosso ser, e que deveriam estar aptas a surgir quando as institucionais falhassem.

Não somos decerto super-heróis, mas ajudava lembrarmo-nos de que a forma física não devia servir só para cultivar aparência. Deveríamos estar aptos a mostrar que não somos lesmas indefesas prontas a que nos esmaguem com o sapato.

A falta de atitude interventiva torna-nos na vítima potencial, pronta a ser predada pelas feras argutas, e mesmo pelas acéfalas. Não cultivamos a aura que as faria olhar-nos de soslaio e temer pelas consequências de nos obstruírem o caminho. Assim somos como meras ovelhas indefesas face à matilha de lobos, em que só o número de potenciais vítimas no rebanho as pode salvar; pelo facto de, na escolha dos lobos, a sorte caber a algumas em detrimento de alguma sua irmã que será devorada. Esta forma de defesa não é digna de quem se encontra no topo da cadeia alimentar. Envergonha-nos na biologia.

Tivéssemos algum brio, não na imagem mas na essência, e haveria menos barrigudos. Fisicamente mais aptos ficaríamos mentalmente mais sãos. Consequentemente mais auto confiantes, em sequência mais altruístas.

Não estamos apenas a engordar fisicamente. É também a gordura moral que nos vai tolhendo os movimentos, roubando aos poucos a agilidade mental que nos tornaria mais aptos a colher direitos e mais prontos a executar deveres. E tantas vezes vemos direitos a ser exigidos sem que se pense na contrapartida...

E a tenacidade? Pelo contrário! Quebramos à mais pequena adversidade. Sem capacidade argumentativa para ripostar à altura, principalmente por falta de robustez.

Mimados, é o que estamos. Pensamos que merecemos um doce só porque pretensamente nos portamos bem. Mas os lobos crescem em tamanho e em número, e levam-nos a razão, os direitos e o prémio.


Devíamos ter um bocadinho mais de alma de campeão.





© CybeRider - 2009

domingo, 27 de setembro de 2009

Pequeno e Imprevisto

Este exercício é resposta daqui
.
Neste belo mas aziago dia
Havia por cá eleições
Eu, apesar de incauto sabia
Que em defesa da democracia
Se iriam mover multidões.
.
O que das sondagens se previa
Que o poder absoluto findasse
Trazia dois grandes em agonia
Mas não me causava fobia
Que o meu voto não aplacasse.
.
Para escolher quem ganharia
Vieram da cidade e das hortas
E eu apostava a lotaria
Que iriam fazer porcaria
Mas nunca que ganhasse o Portas.



© CybeRider - 2009

Enfarruscado

Acordei noutra dimensão.

Estendi o braço para puxar o cartão e os jornais que me aqueceram pela noite.

Sete da manhã, pelo relógio da torre. Se é que ele sobreviveu a outra noite, ou talvez esteja a dormir, como eu deveria estar… Para sempre. Chamei o Bartolomeu, que me tem acompanhado nestes derradeiros dias de exílio. Não o encontro... Chamei de novo… Ah! Lá vem ele, a abanar a cauda… Afago-lhe a cabeçorra sorridente, de língua de fora... "Só tu para te rires, meu amigo...".

O jardim está todo lá. E a rapariga do fato de treino rosa, já corre por ali, junto ao canteiro das hortênsias, de auscultadores nos ouvidos. Nunca me viu, como ninguém me vê... A rega não está ligada… Dirijo-me a ela, passo-lhe a três, quatro metros, a contravento, não quero que me sinta o cheiro nauseabundo, que só eu já não sinto. Tomo o meu pequeno-almoço: o cheiro inebriante que ela exala, vai-me durar para uma boa hora.

Há muito que ninguém sorri para mim. Só o Bartolomeu, "não é, meu velho?..."

Acordar noutra dimensão pode trazer-nos dissabores. Começo a achar que também este dia me vai correr mal.

Olho para as minhas mãos. A pele grossa e suja, as unhas partidas de sabugos negros. Podia ir ao mar, mas não quero que pensem que o Adamastor se ergue das ondas. E se fico pior da tosse?... O desalento é grande, arrasto-me pelo passeio, sujo como eu. Condizemos, e o Bartolomeu não se importa. Apanho a beata quase inteira que alguém deixou ali para mim, à porta de um táxi que partiu. É fácil encontrar tudo nesta natureza. Onde tenho o isqueiro?... Revolvo os bolsos. Neste não, que já estava roto, tem de estar neste... Ahhhh! A primeira passa estremece-me de prazer.

Preparo-me para a aventura. O jardim ainda cheira a manhã. Vou ao lixo, passo sempre cedo, porque as coisas grandes são deixadas durante a noite, para que ninguém encontre quem as abandona. O sofá, a mesa, o rádio que funciona quando encontro pilhas, apanhei-os todos assim. A comida é junto ao hipermercado, às duas da manhã. Aí chegamos quase a andar à pancada... Que tenho o meu orgulho, não vou à "sopa dos pobres", esses são os que não têm espírito de aventura, eu sou um sobrevivente. Também não quero ser "inserido", antes que me esqueçam, quero perder os números que já me ligaram à sociedade, há muitos anos, e o nome. Que me esqueçam, para sempre! Moradas... Sim, essas tenho-as todas, cada rua e avenida, cada praceta, rotunda ou cais, todos meus sem que eles saibam.

No desperdício valorizo os medicamentos... Hoje não há.

Olha... Uma bicicleta! Que aconteceu?... Começo a pensar que me estão a pregar alguma partida. Olho à minha volta, mas não vejo ninguém que pudesse querer rir-se de mim. Hoje não. Só vejo os que não me conseguem ver, do costume. Não me recordo de alguma vez ter tido uma bicicleta só minha... Ena! Tem mudanças!

Há-de haver uma explicação para tudo isto, penso; enquanto vou pedalando rua abaixo até ao quiosque dos jornais. Podia ter sido pior, nem os pneus estavam muito vazios. Há-de haver uma explicação... Logo estarei de volta, ao padrão que tão bem conheço.

Tenho de encontrar o Chico, troco-lhe isto por um maço de cigarros e o gajo vende a bicicleta e compra uma ganza. O gajo consegue vender tudo por causa da droga, a necessidade dá-lhe a astúcia. Já eu, não tenho necessidades. Além disso, com a bicicleta, o desgraçado do Bartolomeu esfalfa-se para me apanhar. Outros me seguiram, o Acácio, o Manuel, a Catarina, a Júlia... Só o Bartolomeu responde pelo nome que lhe dei. Os outros partiram, fartos da minha vida podre. Como a família, esses malandros que se me desapareceram para a solidão. Não guardei as moradas nem os telefones, da família; que os cães, esses nunca foram meus, os nomes que lhes dou fazem-nos ser da minha trupe. Os da família querem-me menos que estes soberbos que passam; que nem me acotovelam pelo temor que lhes causo, e para quem um metro de distância me torna transparente. Pensam que não tenho escrúpulos, nem sentimentos. Que sabem eles de mim, se nem me vêem?

Que fome...

Ah... Um jornal de ontem!

Separo as folhas. Quase nem reparava, no nome igual ao meu, ali, em letras garrafais. Hum... Este teve problemas com os negócios... Pois, a fábrica... Coitadinho...

Não devia ler jornais. Fazem-me reviver um mundo que já vou esquecendo.

Pior que acordar rico no dia em que se perdeu tudo, será acordar com pouco ou nada para perder.

Amanhã... Amanhã, não quero recomeçar, outra vez.


© CybeRider - 2009

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Resplandecente

Acordei noutra dimensão.

Estendi a mão para a campainha para pedir o pequeno-almoço. Não estava lá, a campainha… Estranho… Ia jurar que…

Chamei o Bartolomeu, o meu fiel mordomo, que me recebe sempre com o meu roupão nas mãos prestáveis, aquele que costumo vestir enquanto vou até ao corredor apanhar os jornais que o Manuel, o meu motorista, costuma trazer logo cedo. Chamei de novo… Nada…

Espreitei pela janela. O jardim está todo lá. Estranho não ver o Acácio no canteiro das hortênsias. A rega não está ligada…

Dirijo-me à cozinha, por esta altura devia sentir no ar o cheiro das torradas, afinal já acordei há uns bons quinze minutos. A Catarina recebe-me sempre com um sorriso maravilhoso, e a Júlia é uma cozinheira fantástica. Mas hoje a Catarina e a Júlia também não estão ali. Que se passa?

Acordar noutra dimensão pode trazer-nos dissabores. Começo a achar que o dia me vai correr mal.

Olho para as minhas mãos. A pele está fina, as unhas brilham do verniz de ontem. Vou até ao duche, já que o dia vai ser diferente, preparo-me para a aventura.

A água quase fria sabe muito bem. Visto-me, ainda a pensar que o Bartolomeu tem sempre uma boa sugestão para me adequar as vestimentas e os atavios ao estado do tempo. Assim tenho de ter cuidado para não trocar os pares de meias, nem os sapatos. Será que esta camisa me condiz com este par de calças? Olho-me ao espelho. Pareço-me bem.

Saio. O jardim ainda cheira a manhã.

Vou à porta da garagem entreaberta. O Manuel também não está. Que aconteceu?... Começo a pensar que o Bartolomeu, o Manuel, o Acácio, a Júlia e a Catarina me estão a pregar alguma partida. Só tenho ali um carro que nem sabia que era meu. Que coisa… Começo a suspeitar que vamos ter problemas… Não me recordo de alguma vez me ter sentado num meio de transporte tão desadequado… O quê?... Não encontro o botão do ar condicionado.

Há-de haver uma explicação para tudo isto, penso enquanto vou conduzindo rua abaixo até ao quiosque dos jornais. Troco as moedas pelo jornal. Sento-me na cafetaria e peço. O pequeno-almoço, por fim; não das mãos da gentil Catarina, que me saberia melhor, bem melhor… Podia ter sido pior. Podia ter acordado cego pelo brilho do ouro. Que faria sem os meus serviçais?... Há-de haver uma explicação. Logo estarei de volta, ao padrão que tão bem conheço.

Desfolho o jornal. Quase nem reparava, no nome igual ao meu, ali, em letras garrafais. Algo aconteceu com a fábrica. E com as acções… Assembleia de credores…

Ninguém me ligou pelo telefone. Não liguei o televisor… Os meus assessores não me informaram. Demitem-se ou despeço-os?...

Não é bom acordar rico no dia em que se perdeu tudo.

Amanhã recomeço outra vez.



© CybeRider - 2009

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Nem por acaso...

Desdobrei o mapa sobre a mesa ampla.

Fechei os olhos. Estiquei o braço e deixei que o acaso escolhesse o meu destino. Passar da ideia à acção não foi obra do acaso. Chegar lá inteiro talvez fosse. Olhei o mar, companheiro de uma vida. Também ele sempre igual a si mesmo, indiferente aos acréscimos dos homens, que lhe são vil natureza.

A manhã calma propiciou o passeio pela marginal, solitária ainda. Apanhei o pequeno papel. Os pássaros murmuraram-me algo imperceptível. Era um pequeno talão onde a esperança de alguém parou por momentos, na escolha de cinco números e duas estrelas. Estava válido ainda. Não fosse o acaso e teria sido uma esperança em vão. Guardei-o na algibeira com a noção de que talvez o fado me quisesse murmurar algo, assim como os pássaros.

Tentei que o destino dos meus olhos vagueasse ao acaso. Não é um exercício fácil, parecemos direccionar os sentidos para as coisas que nos interessam.

As flores do jardim emanavam o aroma da frescura. Algumas gotas de orvalho estavam suspensas, aqui e ali, ao acaso. E os raios de Sol, que casualmente atravessavam a folhagem das árvores, embatiam-lhes e dançavam na direcção dos meus olhos, tentando feri-los e privar-me daquele pequeno milagre casual da natureza.

Escolhi uma cadeira na esplanada ainda vazia. Pedi a bica. Reparei no casal que passava casualmente por ali; trocavam risos. Senti-me bem. Diria que só por acaso não tropeçaram em mim. Saboreei a pequenos goles as primeiras gotas do café, por acaso bastante quente. Bebi o restante de um trago.

Reflecti então sobre o destino. O que nos reservará o acaso; esse milagreiro pardo que nos traça um caminho ignorado, esperançoso, desilusório, gratificante ou não, expiatório às vezes, inquisitório sempre, desejado, concreto e talvez indefinido?

Não existem acasos na natureza. Nunca houve laranja que brotasse de um galho ao acaso, nem onda que se abatesse em pedra “porque sim”. Não haverá raio que a natureza me mande, sem nexo. A física dirá por que motivo me terá calhado a mim.

Somos nós afinal que o traçamos, esse engulho que nos justifica tudo o que não explicamos. São as escolhas que abraçamos, e os desvios que nos infligem, que nos justificam tudo o que acontece.

No salão de jogo, a virtualidade que nos atribui um terno de seis aos dados não é um acaso. Fomos nós que fabricámos os cubos e lhes marcámos os ícones que simbolizam os números, criámos os números também, para interpretarmos a natureza casual, e acreditamos que aquele ângulo natural em que o vértice ou a aresta do pequeno cubo embate no pano verde e que define qual a face a ficar para cima, há-de determinar o sorriso que o futuro não anteviu. Nós demarcamos as regras, que pretendemos casuais para tudo aquilo que a natureza nunca pariu.

O dia esgotou-se num ocaso magnífico, esse bem real.
Segurei o pequeno papel nos dedos e fi-lo deslizar pela abertura da caixa de correio do prédio incógnito que me passava ao lado.

Também me passou ao lado o sorteio. Nunca cheguei a saber se alguém foi premiado naquele local, onde estive por casualidade.


Por um acaso posso ser um maçador. Estou convencido de que o sou a propósito. E afirmo à exaustão, para que não me esqueça, que o acaso não existe; a não ser como fundamento hipotético na nossa mente. E sempre criado por mão humana, será eventualmente a única criação exteriorizável, mas irreal, genuinamente feita a alguma imagem e semelhança.

E gostava que me corrigissem se, por mero acaso, estiver errado.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O "Ter" das coisas

Encontrei-me casualmente comigo há dias.

Havia tempos que não me via. Estava sentado num penedo. Agachei-me e perguntei-me o que tinha. Olhei-me nos olhos... Não... O olhar estava parado, fixo num ponto de fuga, a quilómetros de distância. Respondi que não tinha nada, enquanto recordava os meus, que amo, e uma vida por acabar.

Olhei-me com o mesmo olhar vazio, sem emoção que classifique o bater do coração.

Tenho vindo a adequar o discurso, pela constatação clara de que já não importa o "ser" das coisas. Importa-lhes principalmente o "ter". Daí que o saber, aquela faixa estreita onde a crença e a verdade se sobrepõem, pouco importe; porque é relativo, muito relativo...

Às voltas com este transe... O sábio que antes invejámos ao afirmar "só sei que nada sei", demonstrando clareza sobre a enorme variedade de conhecimentos que houvesse para apreender, face à diminuta capacidade do Homem para tal grandeza, hoje é o que apregoa ao vento "só sei que nada tenho".

Por isso a inteligência se mede cada vez mais pelo sucesso, pelas influências apropriadas, do que por formas de pensar. Louco já não é o que se passou do juízo, que se designa, também em contra-senso, por "infeliz". Louco é o que vive sem nada, porque nada soube amealhar, esse sim temido e repudiado por todos.

Consequentemente tenho de admitir que "tenho, logo, existo". Deixo para trás o paralelismo em que a consciência do ser se relacionava com a actividade cognitiva, negando o insano. A afirmação do sábio remete-nos agora, por silogismo, à definição de existência apenas para quem possui.

Esta afirmação completa-se em círculo; pela conclusão de que o sábio, que afirma que nada tem, na realidade estar em rota de negação com a sua própria existência, o que confirma a tese de que o saber é, não apenas tendencialmente inútil, como uma via directa para o ostracismo, para a marginalização, para o degredo.

A sociedade ensina-nos que sem ter não haverá saber, e isso definirá a nossa permanência. O saber, que nos negaria a essência, é-nos assim fornecido a conta-gotas. Na medida exacta a permitir que continuemos a fomentar a ambição, e dessa forma levar-nos a justificar a nossa existência.

Tecidas estas considerações sumárias comigo, resta-me a imodéstia de vos confessar que não existo. O que me torna no imortal mais procurado do planeta. Sou também, por isso, o único sábio ignorante, e aqui aproximo-me do conceito antigo, mas por razões diversas...

Deixei-me a olhar inexpressivamente para o tal ponto de fuga. Afastei-me desse louco que nada tem.

Ao fundo as luzes da cidade atraíram-me como cantos de sereia. A tal cidade... Onde de tudo existe, a mesma onde nada se sabe, aquela onde tudo se conquista.

E fiquei a pensar, numa ambição antiga... Se ao menos tivesse juízo...

© CybeRider - 2009

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

E Setembro ficou mais frio

Arroz de tomate com biqueirões fritos.

Estavam-me a saber bem, na tasca do Alfredo... No ar um certo cheiro a borrego guisado.

Não sei se já vos tinha dito, mas detesto borrego. Ainda para mais guisado. Mas biqueirões fritos... E com arrozinho de tomate...

Olhei para a imagem no suporte de parede, com aquele ar com que sempre olho para as imagens nos suportes de parede, a indiferença, as ideias a batalhar com o que os olhos querem deles. E vi aquele símbolo da minha civilização ocidental ferido. E lembro-me que um biqueirão me ficou a arrefecer no garfo. Sem que eu visse a minha boca entreaberta. Os ouvidos a estenderem-se-me pela sala, a tentarem abafar as conversas dos pedreiros e pescadores que atulhavam aquele diminuto espaço, pleno de cheiro a gente e tabaco, para tentarem abraçar o pequeno altifalante, que me dissesse que aquela imagem mal definida, pior que qualquer filme de Hollywood, era um pioneirismo mal conseguido dalgum filme de série B.

B... do biqueirão que me arrefecia no garfo...

Era tudo verdade, menos a repetição, que o não era. A repetição era a confirmação de que o meu mundo estava a sofrer, mais do que imaginei que fosse possível.

Não me recordo de como se acabaram os biqueirões do meu prato, nem se comi o arroz frio. Mas recordo-me de ter saído da tasca do Alfredo, onde as conversas tinham baixado de tom mas se mantinha o cheiro a gente e a tabaco, e de ter corrido para um espaço em que a televisão fosse minha, para me poder enfiar pelo écran em privado, como quem procura a latrina para descarregar a mais eminente diarreia. Julgo que ainda paguei a conta. Senão, talvez o Alfredo me tenha perdoado; porque nunca mo disse.

E não me lembro de muitas vezes em que a tristeza me tenha motivado a correr mais do que a curiosidade. Sei que a alegria e o desespero me produzem esse efeito. A tristeza... Não sabia.

Aprendi a esquecer que o avião do Pentágono não tinha asas, nem bagagens. Aprendi a esquecer que o avião da Pensilvânia tinha um sistema vanguardista para a época, que permitia comunicações de telemóvel. Aprendi a esquecer que todos os seus ocupantes e os seus pertences se esfumaram na terra que os recolheu. Aprendi a esquecer que quem quer que tenha calculado ao rigor cada milímetro daquela operação se esqueceu que uma hora mais tarde teria aniquilado mais trinta e seis mil pessoas...

Mas nunca mais me esqueci de que a civilização, que me criou um ícone de orgulho que guardo religiosamente em tantas fitas de cinema, tem a triste capacidade de tudo destruir em segundos, e de acabar com milhares de vidas inocentes, por meros fundamentalismos.

E hoje, sei por A de Alfredo mais B de biqueirão, que corro mais depressa. Principalmente, se vir um avião a voar baixinho.


© CybeRider - 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Drive-In

O carro é uma coisa maravilhosa.

Lembro-me da estima com que um primo, afastado no tempo e no espaço, nem tanto no sangue, escovava o pêlo sedoso da mula que atrelava à carroça para o tal passeio à vila. De férias por lá, na planura tórrida do Alto Alentejo profundo, ainda recordo a primeira vez que me sentei na tábua que servia de poltrona à simples carruagem. E lá fomos...

A trepideira e o ruído dos aros metálicos das rodas gigantescas a arrepiar o empedrado é quase inimaginável. Dir-se-ia que os meus dentes de leite iam a arar o granito empedernido e invulnerável que as suportava. A compasso com o matraquear do galope, a quatro cascos bem ferrados, no pavimento.

O meu primo, homem possante de braços espessos atiçava a besta que avançava sem custo pela rua quase deserta. Recordo o movimento pendular da cabeça do animal, para cima e para baixo, a afirmar a certeza de chegarmos ao destino. Os guizos do malim a soar com brio, a rédea a fustigá-lo para passarmos da velocidade-de-cruzeiro a mata-cavalos, por ali fora. As minhas pernitas de franganote e os dedinhos ainda frágeis a agarrarem-se a cada trave, para não desaparecer com a nuvem de poeira que se libertava do restolho sobrante das cargas brutas vencidas.

Lembro-me do sorriso dele, a embrulhar-me puto naquele delírio. Lembro-me da confiança que aquele sorriso franco e quente, na tez encortiçada, me punha na alma; e que me fazia gritar por mais, sem perigo que me assomasse.


Rodei o volante. Entrei naquela produtora de alimentos a metro, logo a seguir à placa que indicava "drive-in", como num cinema à americana. Nunca tinha lá estado. Parei no primeiro guichet e reparei que vinha outra viatura atrás. Olhei para o rapazola de boné vermelho, à americana, e disse-lhe à antiga portuguesa que como tinha "outro" atrás talvez fosse melhor parar no guichet seguinte. Ele olhou-me com aquele olhar com que eu costumava olhar para o meu avô, quando me dizia aquelas coisas à antiga portuguesa. Disse-me que estava ali bem e anotou o meu pedido. Depois percebi... Percebi que estava atrasado, que os anos tinham passado por mim sem delicadeza, a mata cavalos.

O outro guichet era apenas para levantar o pedido. Não havia espaço a gentilezas, a coisa já estava pensada assim. Se tivesse sido gentil, teria estragado a mecânica do espaço. O rapazola, de boné à americana, também pensou nisso mas era tão complicado tentar traduzi-lo para o meu vocabulário à antiga portuguesa, que se limitou a olhar-me com aquele olhar com que olhei tantas vezes o meu avô e limitou-se a balbuciar: "Deixe-se estar. O senhor está bem aí..."

E de facto acho que sim. Agora que penso nisso, acho que estou bem melhor aqui do que com um boné à americana a cobrir-me o cabelo grisalho.

Mas estaria ainda melhor sentado sobre a tábua rachada, que servia de poltrona no carro do meu primo.



© CybeRider - 2009

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Há uma razão para uma mosca nos cair na sopa

Sou acometido poucas vezes pela ideia de que os segredos do Universo me foram já todos manifestados.

Não que os entenda, entenda-se. Mas acabo por acreditar que de uma forma ou de outra já vi a matéria-prima com que tudo se compõe. A maioria das conversas soa-me por isso a déjà vu. As politiqueiras, as crises económicas, as lástimas sociais, a namorada do amigo, o preço da gasolina. Até por isso já não uso a memória com a intensidade com que costumava abusar dela. Não esqueço os nomes nem os factos por questões de senilidade. Esqueço-os porque me são meros plágios retirados de coisas mais antigas; pessoas que se repetem, com ligeiras diferenças fisionómicas; factos que nunca terão o impacto da primeira vez que os vi desenrolarem-se aos meus olhos.

Algumas recordações menos recentes ficaram-me como princípios fundamentais.

Hoje apraz-me recordar uma, pela estranheza que me causa sempre que me lembro da coisa.

Tive um amigo, em tempos, que cultivava a filosofia oriental com um rigor e um saber invulgares. Passámos horas a contrapor a racionalidade das minhas questões ocidentais com os pressupostos epistemológicos daquelas sociedades longínquas.

Nem posso esquecer o momento em que me salvou a vida, naquele dia aziago em que me encontrava a comer uma suculenta bifana cheia de mostarda num snack bar à esquina da estação do Rossio, batida com uma imperial bem tirada - ai, que lhe sinto o gosto... - e o vejo entrar alarmadíssimo pela porta dentro, agarra-se-me ao braço e me pergunta com aquele olhar inquieto, que diabo estava eu a fazer, a suicidar-me daquela maneira, arrastando-me porta fora para me ir atafulhar de pastéis macrobióticos para o Celeiro, ali a poucos passos.

Pois um dia caminhávamos à sombra de umas nogueiras em Sintra, onde ele tinha uma pequena fábrica de pickles biológicos (que eu nem sabia que havia outros) e íamos apanhando nozes, e discutindo as habituais dialécticas do conhecimento humano. A certo ponto quebrei uma noz já habitada... Mau... Ele fitou-me e esclareceu-me que aquilo seria a prova cabal de que a partir daquele momento o meu organismo já não necessitava de mais nozes... Se necessitasse, por estranha premonição, teria sido capaz de escolher outra sem bicho... Pois... Ah! E mostrou-me como o organismo dele continuava a seleccionar as imaculadas com que se ia empanturrando.

De facto penso muitas vezes nessa minha incapacidade, de pré-seleccionar as coisas boas, de forma a não sofrer desapontamentos, talvez por já ter tido benesses em excesso e não precisar de mais nenhuma.

E posso até esquecer nomes e factos, não por senilidade, mas porque me são meros plágios de coisas antigas.

Sempre que me cai uma mosca na sopa, porém, fico a pensar que há uma razão para isso.

Talvez seja o único segredo do Universo que ainda não me foi revelado.



© CybeRider - 2009

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

A bronca da broncocoisa...

Tinóni... Tinóni...

Os faróis a piscar, o veículo amarelo surge. Encostam, deixam passar.

O Jacinto também deixou passar, em branco, a mãe que lhe faleceu no hospital com broncopneumonia. Já se lhe fora um tio e uma prima afastada.

Afastados… Todos, por esse anátema ceifeiro.

Ou é andaço, ou uma terrível coincidência, mas ultimamente parece que não há velho que morra de outra coisa. Vítimas de cancro, de SIDA, de uma perna partida, ou de simples senilidade; desde que haja internamento, é quase certo. Se não foi acidente, foi broncopneumonia. Penso eu, não o Jacinto.

Não lastimou que se fale de gripe XPTO, quando a porcaria que nos leva os velhotes mata muito mais que qualquer outra maleita, e sobre ela nada. Desta ninguém fala, saiba-se lá porquê. Os velhotes vão assim, muitas vezes para melhor, por broncopneumonia. Liberta-se a cama que os desgraçados ocupariam a perder de vista no tempo, e uma data de gente livra-se de uma série de encargos e chatices. Assim como o Jacinto, que sem saber trocar as fraldas à mãe, sem proventos dignos de um desafogo, a lavava à mangueirada no quintal da casota modesta da aldeia. Já o tinham debaixo de olho, a Segurança Social… Assim foi melhor… Que a velha estava a sofrer. O pior foi a reforma. Faz também falta aos outros, para jogarem à carta no banco de jardim até que a vida lhes doa, e precisem de internamento, como necessitam da tal cama no hospital.

E no ciclo do Jacinto, conformado com a forma como a mãe lhe partiu, sem mistério, vive-se, envelhece-se, apanha-se a broncopneumonia e, saberá Deus.

Alguns resistem, ainda pecou o Jacinto em pensamento. O AVC não os deita abaixo tanto quanto se esperaria, e o raio da broncopneumonia ainda se cura, mas estes são de facto poucos. Talvez a medicina tenha evoluído em dois sentidos diferenciados; dum lado os que recupera para ficarem inválidos por uma série de anos, do outro os que despede rapidamente com a tal broncopneumonia.

O Jacinto, não gostaria de ver o assunto estudado, os números apresentados, as estimativas e estatísticas realizadas. Isso dar-lhe-ia uma intranquilidade desnecessária. Não o incomoda o dia em que apanhe uma broncopneumonia, não terá violado nenhum cânone sagrado de uma máfia oculta, inominável, que se queira então ver livre dele, que nem sequer questionou.

A mim sim. Preocupa-me. Daí que comece a ver nisto uma dúvida existencial.

Por isso, se amanhã estiver hospitalizado com uma conveniente broncopneumonia, já sabem...





© CybeRider - 2009

sábado, 22 de agosto de 2009

A cigarra e as formigas

A meus pés, o carreiro de formigas...

Infestam-me o mundo, nas suas filas indianas, que decerto chegam à Índia, onde nunca estive, mas que imagino. Cheia de formigas também. Como estas, que se acotovelam, como na fila do metropolitano. Imagino-as a atravessar pontes e vales, montanhas e desfiladeiros. Embarcam nas folhas e vão-se pelos ribeiros à aventura. Sem louros a colher, sem História, nem política...

Uma imensa monarquia, talvez um império cheio de rainhas que, de pernas abertas nos tronos, infestam e manifestam sem cessar. Um negócio de família afinal, maior que qualquer latifúndio que conheçamos. Em comum a mão de obra barata, a sujeição irracional, a massificação quase automática como que telecomandada. Recolectores pré-históricos, que não pensam que o mundo acaba, não sofrem da ansiedade da morte, nem das incertezas da velhice.

Uma sociedade complexa. Com hostes que se dividem em tarefas específicas. Talvez não se entendam umas às outras na missão mas, ao contrário de nós, não se questionam. Limitam-se a cumprir o destino que lhes coube em sorte. Sem ambição, nem gula. O altruísmo é automático, derivado do cumprimento espartano.

Não conhecem a cigarra. Fomos nós que lha inventámos. Porque tínhamos de lhes poluir o mundo com uma inveja que não concebem. Com uma moral que não as toca.

Somos nós quem questiona a laboriosa formiga face à preguiçosa cigarra. Nós, que também infestamos o mundo que pensamos que é nosso. Que nos escusamos à comparação com a estirpe de gripe mais violenta. Fugimos à analogia entre a nossa pandemia sobre a Terra e a de qualquer vírus que subavaliamos em intelecto. Não reconhecemos a violência com que debilitamos este nosso hospedeiro, cujo sistema imunológico nos tenta a todo o momento repelir. Oxida-nos os tecidos, invade-nos de natureza, que logo acusamos de doenças, que no entanto não a atingem, a essa Terra-mãe que tudo gera. São essas as suas defesas contra a nossa acção nefasta.

Questionamo-nos as razões de cada missão a que nos propomos. Quantas vezes não encontramos nexo na Ecologia, que nos tenta preservar enquanto não acharmos outro hospedeiro que contaminemos e extorquamos à exaustão. Talvez a Lua... Atrasa-nos o suicídio, que sobreviria se apenas o grupo de recolectores existisse. Sim, continuamos a recolectar tudo o que podemos deste globo, as transformações do que colhemos iludem-nos, como se fossemos capazes de criar. Deuses menores numa acrópole de mentecaptos mecânicos, que se revezam na atitude e no posto, desejando e adorando um pai que nos abandonou há muito.

Deixamo-nos governar pela cigarra. As nossas rainhas não são suficientemente belas, nem têm o monopólio da parição. Perderam assim o poder face ao esplendor do canto e à cristalinidade das asas que aquela ostenta.

A cigarra não tem o poder de avaliar o mérito nem a justiça do destaque magnífico que o formigueiro lhe dedica. Limita-se a alimentar-se do que as nossas hostes laboriosas lhe colocam aos pés em vénias redobradas e salamaleques. Empanturra-se de mordomias, injustificáveis.

Um dia morre.

Mas quando morre uma cigarra é sempre o carreiro de formigas que a carrega, em ombros.

E guardam-na na despensa. E, um dia, banqueteiam-se com ela.



© CybeRider - 2009

terça-feira, 18 de agosto de 2009

A caixa de música

Pressionei o pequeno troço de metal brilhante. Dei-lhe algumas voltas com os dedos.

Pousei a caixinha de acabamento finíssimo sobre a mesa do boudoir, lacada a negro brilhante, com flores marchetadas por algum hábil artífice. Abri o pequeno fecho da tampa e levantei-a, parte de um cenário coberto a espelhos multifacetados, dispostos em semicírculo. O forro vermelho que cobria o fundo da caixa, tinha cavidades em volta, tinha também outro espelho, circular, ao centro.

A música começara. Uma pequena harpa tocava a melodia celeste que só por si já embevecia. Retirei com cuidado a pequena fada do seu leito e coloquei-a sobre o lago, formado pelo espelho central.

Fiquei a mirá-la, sob hipnose, enquanto revolteava no seu vestidinho de corista, as pernas nuas surgiam-lhe maravilhosas sob o saiote de tule. Os braços em arco sobre a cabeça.

Pim... Pimperlimpipim... Pim, pim... Pim, pim...

Não conseguia libertar o meu olhar do voltear da pequenina figura sobre o seu lago hipotético. Imaginava-me a acompanhá-la, no seu mundo perfeito em que nasceu para bailar nos meus sonhos, adivinhava-lhe o sorriso sereno, da segurança dos passos de dança. Via-a como que saltasse e pousasse em pontas de novo, como que de nenúfar em nenúfar, o que lhe seria possível, sem custo, pela sua virtuosa delicadeza.

Via-me a pegar-lhe na mão e a suster-lhe o corpo elegante no ar, enquanto desenhássemos figuras belíssimas. Eu, do tamanho dela; como via nos bailados clássicos da televisão.

Não bastava a magia da música, tinham de ter inventado uma figura tão linda para dançar, a propósito, para mim.

Tive outras paixões na vida, mas nunca pude esquecer a pequena bailarina, nem a segurança com que volteava no seu mundo, onde nada acontecia sem o acompanhamento da música de corda. Como numa maravilhosa história de amor.

Um dia fechei pela última vez a tampa da maravilhosa caixa. Parti para o mundo à procura da minha própria caixinha de música, onde pudesse exibir os passos graciosos ao lado da talentosa prima ballerina. Vagueei para encontrar o lago brilhante e sereno onde uma fada dançasse em círculos aquele bailado eterno. Gostaria de lhe ter dito quanto lhe invejava a vida maravilhosa e quantas vezes sonhei com o seu sorriso misterioso, tranquilo e seguro. Gostaria depois de a fechar na minha mão, para a poder soltar quando quisesse e vê-la dançar só para mim.

Gostaria principalmente de lhe ter trauteado ao ouvido a música que nunca esqueci. Ela haveria de se admirar e talvez pela primeira vez os seus lábios mágicos se abrissem num espanto, e então, quem sabe, ela me correspondesse a paixão:

Pim... Pimperlimpipim... Pim, pim... Pim, pim...

Quando a voltei porém a encontrar, anos mais tarde, já não emanava a mesma beleza virginal. O vestido de tule estava amarelado, cheio de manchas. As pernas esbeltas estavam raiadas de varizes e máculas escuras. O cabelo desgrenhado já tinha conhecido melhores dias, algumas mechas escondiam-lhe as rugas que o tempo lhe lavrara a cinzel, indeléveis. Reconheceu-me. Apagou à pressa o cigarro e tentou pôr-se em pontas, mas os sapatos estavam rotos. O cheiro a bebida fazia-me antever que mesmo o estereotipado "quatro" lhe seria difícil.

Encostada ao balcão, tirou outro cigarro e ainda me pediu que lhe desse lume. Não lhe dei corda. Mas beijei-a na testa.

Abri a porta ao sair. Como saíra tantas vezes do seu palco radioso. Fechei de vez o pequeno fecho da tampa. Limpei uma lágrima que me saltou para a noite, pelo frio...

Compreendi que nunca poderia fechar a bailarina na minha mão. Nesse dia deixei de procurá-la, e percebi que o que precisava afinal era de uma mulher.

Foi a última vez que abri uma caixinha de música.

© CybeRider - 2009

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Esquerda... Direita... Um... Dois...

Andam a par. Como o sim e o não.

O não que nos afasta do que não queremos. O sim, que nos atrai para tudo o que julgamos merecer.

A esquerda lava a direita e sem a direita a esquerda não se poderia lavar. Repara como se juntam, imagens opostas uma da outra. No entanto são quase simétricas, completando-se neste espaço que é só um. Fazemos nós a destrinça.

Quantas vezes seguramos na direita o que sem a esquerda cairia ao chão. Quantas vezes apanhamos do chão com a esquerda o que a direita recupera, para lhe continuar a dar uso. E todos os possíveis vice-versas.

Nunca abdicaríamos de uma em favor da outra. Não olhamos para a esquerda negando-lhe o valor, nem para a direita como omnipotente. Nem uma está errada nem outra, somos nós quem erra, não elas.

Há quem as junte numa prece, quem as estenda à vez, num pedido de socorro. Nelas confiamos a nossa sobrevivência. Voltamo-las para brincar, dividimo-las em cada dedo que também não negamos. Para nós são sempre um sim. Sempre juntas e carentes.

Com uma e outra afagamos o destino, e distribuímos amor. Comunicamos. Com elas conseguiríamos destruir o Mundo... Sem elas nunca conseguiremos realizar os nossos sonhos mais queridos, nem distribuir o bem-estar, nem concretizar os planos audazes que nos trespassem a ideia.

- Bate palmas!

Uma não faz barulho sem a outra. Sozinhas são inaudíveis, mudas, imperceptíveis. Só ambas fazem sentido.

Apesar disso não se misturam. A da esquerda será sempre "a da esquerda" e a da direita, será sempre "a da direita" também.

Venham falar-me de democracia, como um ideal clubista. Venham falar-me em partidos, e em multidões que se odeiam. Nunca acreditarei que se faça algo de útil sem as duas mãos que se unem. Nunca acreditarei que consiga fazer-me ouvir a aplaudir a uma mão.

Com uma apenas, posso dar um soco, posso disparar uma arma, ou arremessar uma pedra. Preciso das duas para te levantar do chão, preciso das duas para fabricar o pão, para me segurar à árvore de onde colho o fruto, para te salvar de morreres afogado.

Preciso das duas para retirar a mais bela melodia do piano.

Quando me escolhem só uma, deixam-mas atadas. Não estaria completo, porque sempre precisei das duas.

Preciso delas para me lavar a cara. Para me cobrir a vergonha, uma à frente e outra atrás, sem distinção. Com uma apenas consigo esborratar o quadro mais belo e destruir a maqueta que estavas a construir.

As minhas botas continuam a marcar passo: Esquerda... Direita... Um... Dois... Esquerda... Direita... Um... Dois... Esquerda... Direita... Um... Dois...

E não chego a lado nenhum.


© CybeRider - 2009

domingo, 9 de agosto de 2009

Manta Beach - Consumo deturpado

O Algarve reserva a magia de atrair vários milhares de pessoas às regiões do seu litoral por esta altura do ano. Para além das praias fabulosas que proporcionam o almejado descanso e divertimento aos que possam usufruir de umas férias merecidas por terras de Portugal, tem também uma vida nocturna cheia de animação, sons e cores.

Novos espaços renascem a cada ano para uma época alta que se espera sustente a aridez económica e social do Inverno. Esta sazonalidade, tão ansiada pelos profissionais do sector turístico e pela restauração, prevista milimetricamente, por quem sabe estar ali a dependência do sustento de famílias e localidades, pode ser desvirtuada por investimentos absolutamente surpreendentes.

Tive ocasião de ser convidado a um desses sugadouros da economia local. O "Manta Beach", na Manta Rota, localidade da freguesia de Vila Nova de Cacela, do Concelho de Vila Real de Santo António. O facto de ser convidado, e consequentemente agradecido, não me pode tornar num sequaz cego à realidade de que um local de culto como aquele, implantado por uma fabulosa máquina de marketing, poderá efectivamente ter um impacte significativo nas expectativas dos prestadores de serviços similares da região, que recordo se enquadra entre Tavira e Monte Gordo; principalmente num ano de crise que já ninguém nega, em que as coisas já seriam difíceis por si. A controvérsia lança-se porém ao apreciarmos o facto pelo lado da ocupação hoteleira, em que este tipo de estabelecimento, com inegável pendor mediático, terá por outro lado um impacte positivo, a avaliar.

À entrada colocaram-me um bracelete amarelo de distinção de classe que não sinto, e presentearam-me com um cartão de consumo e umas lembranças patrocinadas. O ambiente, de casa cheia, estava muito bem frequentado, a noite amena, a música ao agrado mesmo de alguém da minha faixa etária.


Confesso que não me alarguei para além das fronteiras do Vip Lounge e do espaço exterior. Estava lá para me divertir, com amigos, e o teor deste blogue não me permite análise jornalística, daí que não vos possa descrever a roupa da Maya, simpática e omnipresente, nem nomear algumas das outras caras famosas que por lá circularam nesta noite de festa. Para isso existirão os tablóides do costume.

A única extravagância acabou por ser o "Consumo Mínimo" referido no cartão. Nem que seja exagerado. 15 euros, parece-me bastante acessível a qualquer bolsa de veraneio. No meu cartão constava a oferta de uma bebida. Imaginei que teria direito a essa bebida e que poderia escolher bebidas até ao valor de 15 euros antes de ter que pagar mais que esta quantia pelos meus eventuais excessos.

Não é assim.

Na caixa fui presenteado com uma conta que ultrapassava em muito o dobro daquele valor. Ora eu tinha consumido três bebidas que totalizariam 27 euros. Sendo uma de oferta, seria legítimo que eu liquidasse os 15 euros, e o eventual excedente até perfazer aquele montante. Foi-me explicado porém que os 15 euros incluem de facto uma bebida "grátis", mas que todas as outras são pagas à parte. Paguei sem atrito, à laia dos meus bons costumes.

Consultado o meu séquito, verifiquei que a todos tinha acontecido o mesmo facto estranho. Não se tratou, por isso, de um mero engano de um funcionário.

Ora bem, não é pelo valor que me continua a parecer irrisório, mas é pelo conceito moderno e vanguardista de "consumo mínimo"...

Um estabelecimento daquela magnitude não deveria ter de recorrer a estes subterfúgios.

Digo eu...


© CybeRider - 2009

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Ah, Bonaparte! (Parte 2 de 2)

Por esta altura estarão a pensar que não falo a sério.

Pedem-me provas... Pois bem! Não que tivesse de fazê-lo, mas dar-vos-ei as provas que me pedis.

Nasci com vários dons. O primeiro é a Incapacidade Da Ideia Derradeira, daquela ideia com potencial para acabar com tudo. Que, dizem, a imaginação humana não tem limites. Pois a minha tem. Não conseguirei nunca ter essa ideia maldita. Nunca criarei um procedimento ou artefacto capaz de me (nos) destruir.

O segundo é a Incapacidade De Violentar. Assim, não concebo a possibilidade de qualquer acto menos digno para com os que me rodeiam. Para quê? Para viver num mundo de sofrimento? Não creio que houvesse justeza na minha criação, nem que me fosse atribuído um mundo cheio de coisas boas, se eu fosse capaz de o destruir em actos que me envergonhassem perante mim.

O terceiro é a Incapacidade De Subjugar. Devo explicá-lo? Acho que é um dom bastante fácil de compreender...

O quarto é a Incapacidade De Me Glorificar. Mas este não vos fará diferença. A menos que pensassem que vos faria sombra. A minha natureza porém é diferente, não vos causarei obstáculos. Já mencionei a minha incapacidade de interagir com este mundo que me foi destinado, não lhe poderei alterar uma vírgula. Lamento. Peço-vos apenas que não me endeusem. Consequentemente, nunca ouvirão falar de mim.

Surpreende-vos decerto que os meus dons sejam, de facto, incapacidades. Poderá até parecer que misturo conceitos antagónicos. Não é assim. Observai que as capacidades equivalentes estão distribuídas, em porções desiguais, por muitos de vós. É isso que vos torna humanos. Sois os humanos do meu mundo, e tendes a minha compreensão porque os dons que refiro não vos terão eventualmente bafejado.

Cuidai porém, que alguns se fazem passar por mim! A esses, a minha sociedade fecha-os num hospício. Perguntei a um uma vez:

- E vós, senhor? Qual é a vossa graça?

Ao que me respondeu com um pino perfeito.

Se depois de vos confessar isto, duvidas houvessem, pediria que fizessem rapidamente um raciocínio. Que pensassem a quem confiariam qualquer dos bens que, sem ter aprendido por mestres ou manuais, vos afirmei que sou incapaz de violar. Eu tenho a resposta imediata para essa dúvida, se alguém ainda questionasse: a mim!

Dizem-me, porém, que tenho uma doença mortal. E isto deveria ser segredo. Não quero que se saiba que padeço deste mal, que até nem sei se é derradeiro como afirmam, mas já que o disse, e até o aflorei anteriormente... Que não vos cause ansiedade... Padeço de vida! Dizem-me que é fatal. Irremediável. Sinto-a que me consome, a cada dia que passa... Receio, por isso, que o meu mundo possa eventualmente chegar a um fim, e que todos desapareçam. Mas tento resistir. Sei que quanto mais me aguentar, mais tempo tereis para gozar o meu mundo.

Não vos roubarei, nem vos governarei. Isso já há muito quem faça de sobejo, com muito sucesso e pouco senso, mas esses não têm a responsabilidade de ter um mundo só deles, daí que terão o meu perdão. Afinal, que bem poderia eu guardar ou querer para mim, se o que me encanta é a vossa felicidade suprema?... Hei-de admirar-vos sempre o saber, para meu espanto. Nunca vos direi que esse saber de pouco vale, que não alterará o percurso do Universo. O meu pouco saber, o que quer que isso seja, também me é absolutamente inútil, bastam-me algumas habilidades empíricas.

Lamento que alguns de vós nunca cheguem a conhecer-me. No vosso lugar, eu gostaria de saber quem fosse o dono do mundo em que eu estivesse. Mas, talvez seja melhor assim, há coisas que não devem ser reveladas por não aproveitarem a ninguém.

Sempre vos vou pedindo que deixem de pontapear os que julgam sem-abrigo. Um deles, pelo mau aspecto, poderei ser eu, e esse nome nunca me caberá, porque afinal de contas,

O Mundo é meu!




P.S.: Concluo que me estou a evadir da responsabilidade por todas as catástrofes, não necessariamente as naturais, que vos acontecem. Pois bem, como saberão, os dons nunca são atribuídos aos pares. Os meus também não foram. A minha honestidade irrepreensível não me permite que vos oculte a verdade. Tenho um quinto dom! Trata-se da Incapacidade De Ser Competente. A competência transformar-me-ia num tecnocrata que vós não gostaríeis de conhecer. Nessa medida, já sabeis a quem responsabilizar por todos os males que têm vindo ao meu mundo, derivam da minha incompetência em pôr ordem nisto. Esta característica, que também me diferencia de vós, que ambicionais a competência, tem-me impedido de acabar com muitos dos males que condenais à humanidade.

Não o mencionei, porque ainda estou a aprender a lidar com ele.



© CybeRider - 2009

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Ah, Bonaparte! (Parte 1 de 2)

Importante foi o dia em que nasci!

Nesse dia criou-se o meu mundo. Quais seis dias e descanso ao sétimo? Não! Foi tudo num ápice.

Eu sei! Afinal, estava lá. Apareceu-me uma mãe, e um mundo inteirinho à minha volta. Alguns de vós apareceram-me aí, espalhados pela vasteza do meu mundo. Outros vieram depois, a somar aos que já havia.

Inventou-se-me tudo o que vos é dado ver, a meados desse dia. Aos que supostamente cá deveriam ter estado, criou-se-lhes uma memória, com parentes e sentimentos, com preocupações e tristezas, como se tivessem de facto existido tais vivências. A alguns inventou-se-lhes uma fé... Nunca aceitariam a realidade.

Nesse dia, num segundo, nasceram, morreram e fossilizaram-se, todos os dinossauros...

A mim, limparam-me tudo o que tinha aprendido. Para mim foi de facto o recomeçar do zero. Daí que não me recorde de vaguear pelo vazio, nem me lembre de nenhum passe de magia que tivesse originado o que vemos.

Essa é a verdadeira maravilha, e o segredo, de toda a criação!

E de repente iludiram-me de que tudo já existia há muitos anos. Criaram-me a História!... Hum... Histórias... Tantas!

Como se fosse possível alguma coisa existir sem eu cá estar! Imagine-se! Quem é que via? Quem é que ouvia? Quem é que tomava conhecimento?

Outros houve ainda... Acho que mos têm roubado, aos poucos, quase sem que dê por isso.

Olho para o meu mundo, para as minhas limitações, para todos aqueloutros que me são impostos, e compreendo que o meu poder de decisão parece relativamente pequeno. No entanto não deixa de ser tudo meu. Assim como quando dou à chave do meu carro, não comando a subida nem a descida dos êmbolos nos cilindros e no entanto eles movem-se. Também os que me rodeiam se movem, para dar vida a este mundo criado de propósito para mim.

Também o meu mundo se avaria. Nem tudo corre às mil maravilhas. Mas... Milagre! Conserta-se sempre por si! Haverá coisa mais fantástica? Nunca tive de reparar coisa nenhuma. É quase assim como se... Tivesse vida! Assim como eu!

Até por isso estamos muito bem um para o outro. Puseram-me cá mas não me incutiram a habilidade de o reparar. Por isso tenho confiança! Sei que todos esses que andam por aí, que povoam o meu mundo e parecem agir de forma caótica e irresponsável, só o fazem para me assustar, para me aumentar a adrenalina, e quebrar a monotonia. Afinal, nada poderá estragar o meu mundo. Eu nunca saberia repará-lo.

Não é um conto de fadas! É a realidade do mundo que se me fez. Não posso trocá-lo por outro, nem todos os que me rodeiam, mesmo sem se darem conta disso, podem evitá-lo. Todos estão dentro deste mundo que é meu.

Gosto de ver como partilho, sem inveja, porque o compreendo, e de forma natural, o meu mundo com todos. Alguns vestem-se de riquezas, e açambarcam cada pedrinha que lhes surja no caminho, outros não conseguem arrebanhar nada. Vivem pobres e infelizes. Não gosto deste aspecto do meu mundo, mas não tenho opção. Foi-me feito assim. Já compreendi que não consigo cobri-los a todos de segurança, saúde e tranquilidade. No entanto observo e faço um esforço para que as minhas ideias piores não os afectem. A indiferença com que me olham, mostra que não sabem que este mundo é meu.

Alguns até pensarão que sou eu que vivo no mundo deles, mas não compreendo essa forma de pensar. Aí começam as nossas diferenças. Eles que não sabem o que são e eu, que sei que eles são meras personagens do meu mundo, feitas à minha imagem e semelhança, para que eu não ficasse aqui plantado sozinho.

Vêm-me com conceitos de justiça que repudio, com ideias de divisão ou concentração de poderes. Hum!... Poderes... Se eles soubessem, que nem eu próprio tenho poderes sobre este mundo, e ele é meu!...

Acho piada quando me limitam a um país e dizem que sou português... Ciente como estou que andei livre pelo espaço antes que me dessem esta esfera para morar. E querem impor-me regras, e limitar-me as fronteiras. Como se pode confinar o dono à coisa? Limitar algo que é de alguém, sem cometer uma tremenda injustiça?

Por isso me nego a aceitar esta rebelião do meu mundo. Não deixo de achar que esta zona geográfica com nome é a minha casa. Deram-ma. Também pudera! Este mundo não foi feito com direito a habitação?... Pois então!... Se tenho o mundo, tenho também uma casa, este espaço rectangular enorme, cheio de gente. Estes têm um linguajar parecido com o meu, pois, fizeram-se-me vizinhos... Escusavam, ainda assim, de me ter povoado a coisa com tanta gente estranha. Afinal ainda só consegui aprender a viver com alguns...

Já não é mau. Podia ser bastante pior. Podiam ter-me colocado junto aos que quisessem acabar comigo... Se calhar alguns querem... A isso chamam eles homicídio!

Posso contar-vos um segredo?...

Se eles me homicidiarem, suicidam-se a eles próprios. Não lhes posso contar... Eles iam ficar tão desiludidos... Talvez até deprimidos, cheios de inveja, por saberem que afinal este mundo é mesmo meu.

Assim, farto-me de rir. Cada um parece mais importante que o outro. Alguns falam-me com voz grossa! Ah! Se falam! Pensam que me assusto... Já não!... Agora que descobri a diferença. Agora que sei o que eles são:

Peças do meu cenário!

Só tenho pena de uma coisa...

Ao ser dono de tudo acabo, eu próprio, por não pertencer a ninguém. E sei que me puseram aqui mas se esqueceram de pensar nisso.

E quanto mais penso, mais me convenço... Isto não é coisa boa...

Alguém deveria tomar conta de mim.


© CybeRider - 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Quanto custa pagar?

O texto anterior ao aditamento foi publicado no dia 28/7/2009 pelas 13H10

Esqueci-me.

Tinha de pagar uma factura da EDP... Esqueci-me...

Sei que já há essas modernices do débito em conta... E eles querem. Mexer-me na continha, a seu bel-prazer... Sei que querem. Não deixo! Uma empresa milionária, a mexer-me nos trocos... À vontade. Até me dá calafrios...

Então vou ao multibanco... (Assim, em itálico, então não?...) Vou, quando não me esqueço. Desta vez esqueci-me. É fácil, é moderno, é tecnológico. Mas esqueci-me!...

Instalou-se-me o pânico... E agora? Lá fui, à procura do edifício onde se encontravam, por tradição, as dignas instalações da suprema entidade.

Já não. Agora tinham mudado, dizia o papel afixado no vidro: "Loja do Cidadão". Para o espaço comercial, recém-remodelado no centro da cidade. Olhei o relógio, do telemóvel... Ainda tinha tempo de parquímetro. Andei. Entrei no tal espaço, aberto ao público há... anos. A minha primeira vez, ali. Ora "Loja do Cidadão"... Não estava assinalada nas placas. Cá em baixo rodeava-me o mercado municipal, uma panóplia de lojas em riste, em suma, nada do que eu queria. Rodeei o espaço, cheirei o peixe, as hortaliças, a fruta. Olhei para o tecto, lá acima, como que a pedir a um deus que não conheço. Lá estava... Todo o andar de cima era a tal "Loja do...". E pensei que se calhar uma cunha do tal a quem não pedi, mas que me deu, talvez acabasse por dar jeito.

Ora escada rolante... Vá... Já sabes que não cais... Lá fui! Não era do lado direito. Fui para a esquerda, do outro lado do prédio imenso. Está bem, afinal temos de ter alguma paciência para lidar com as instituições. Um sorriso feminino aconselhou-me a tirar uma senha e dirigir-me para o corredor à direita, ao final, que era lá... Pois sim, é fácil. Algumas cadeiras ocupadas. Um lugar livre... No quadro o número 39 estaria lá sentado. Olhei para a minha senha... 40.

A jovem perguntou-me se eu era o número 39. Não... Sou o CybeRider, a minha senha é o número 40. Esperei alguns minutos... Pareceram quase uma hora, sossegadito, em silêncio. Subitamente o número mudou para 40 no tal visor, aquele ali bem ao cantinho. Pulei da cadeira onde me tinha acabado de sentar.

"- Venho liquidar a factura. Mas está fora de prazo." Afinal que não. Ainda perguntei, mas isto é a EDP, não é? Que sim. Mas que a factura tinha de ser paga num agente, porque nas payshop (o que quer que isso fosse) só dentro do prazo, mas que para minha felicidade estava um quiosque verde ali mesmo, logo ali, ao descer da escada e à saída da porta principal por onde eu entrara, que ela vira por onde eu entrara, claro que vira, a mim e à minha aura brilhante e resplendorosa.

Fui escada abaixo! O quiosque... Mais não era que o quiosque de jornais, centenário, agora com revistas da moda, e de moda, menos de lavores, mais de tecnologia e coscuvilhices, jornais carregados de desastres e política. E a fila, uma fila, como a que não havia na "Loja do...", mas ali era para o totobola. Talvez para o euromilhões, pois acho que agora é mais isso. Uma senhora baixinha entrou e atirou com o dinheiro para algures no espaço, tirou um Correio da Manhã e partiu esvoaçante apregoando que tinha de tirar um bilhete para a identidade, às vezes também procuro...

Foram só mais 15 minutos. Olhei para o relógio, pensei no parquímetro. E na Emparque.

Ainda recordei com satisfação a menina do guichet da EDP, na "Loja do...", ali pela fresca, a olhar para a cadeirita vazia à sua frente e a fazer saltar os utentes da cadeira da sala de espera, à medida que lhe aprazia carregar no tal botão, naquele intervalo, em que se cansasse de sentir a frescura e de olhar para o vazio. Que rica vida!

"-Fáiche fávô sinhô?..."
"-Para pagar isto."
"-Djinheir ú chequi?"
"-Dinheiro."

Foi fácil. Foi assim como antigamente. Chegava à EDP e estava 20 minutos na fila. Não havia ninguém perdido. A fila não era para o totobola, nem para o tabaco. Todos sabiam que para pagar a EDP, em primeira e última instância, seria na EDP.

Agora, fiquei a saber, para pagar a EDP. É como comprar a lotaria.



© CybeRider - 2009

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Aditamento: Em 29/7/2009 pelas 14H00 recebi uma carta da EDP, a informar que, caso o pagamento da minha factura ainda não tenha sido efectuado, poderei utilizar os meios comuns de pagamento, enviam-me um novo código para pagamento pelo multibanco...

Gastaram recursos deles, dos correios, do quiosque, quase uma hora - talvez mais, ainda não avaliei as consequências por inteiro - de um dia do meu trabalho, porque o código inicial não funcionava ao fim de quatro dias, e agora mandam-me outro código para pagar o mesmo valor.

Os códigos da PT permitem pagamento após alguns dias... Os da EDP não, eles repetem o envio, outra carta (no meu caso inútil), com novo código.

Paguei ontem... Escusava de me ter chateado. Para a próxima, não me vou chatear, não vou pagar até que me mandem novo código. Aprendo a cada dia. E assim o país avança... devagar... devagarinho...


© CybeRider - 2009

domingo, 19 de julho de 2009

Bom dia, Mr. Magoo!

Os meus óculos ridículos...

Desde cedo me envergonharam. Quantas vezes me apontavam a dedo, e riam-se na minha cara. Quantas vezes por isso os tirei, e deixava de ver o Mundo. Seguia às apalpadelas, à espera que me guiassem, por caminhos que não conhecia. Aí ninguém se ria, faziam-me acreditar que ia pela trilha certa.

Caí. Esfolei os joelhos. De novo o riso... Agora pelas minhas mazelas.

Por maldade me enganaram, sempre que os não tinha. Poucas vezes cheguei, portanto, a horas ao meu destino. Sempre incógnito. Por vezes tarde demais, também àqueles que me foram comuns a tantos, que fizeram comigo longas caminhadas.

Há porém os que me aceitam, sem embaraços. Acompanham-me pelas ruas onde alguns me caem aos pés, mortos de riso. Olho-os, a esses meus companheiros, nos olhos; enquanto encolhem os ombros sem compreender o efeito que causo, em quem nunca me viu. Ficam tristes, penso. Não é bonito rirmo-nos dos defeitos de alguém. Aceitam-me, com as minhas fraquezas; embora achem que as minhas lentes já me distorcem as coisas.

Estão muito velhos os meus óculos, as hastes mal se seguram, as lentes têm muitos riscos, adquiriram uma pátina, do tempo. As suas armações exuberantes, de cores esdrúxulas, dão-me um ar ridículo, muitas vezes. Sem que compreendam que, sem eles, não vejo nada. Já não tento, também por isso, que me vejam sem eles. Nem mesmo no meu campo de girassóis, onde passeio tantas vezes. Lá, nem procuro já distinguir a cor viva das pétalas. O meu campo de girassóis é todo cinza. Uma realidade a preto e branco que as fotos teimam em registar as cores.

Só os meus óculos me permitem ver essa realidade, exactamente com as cores que não tem.

Chego a acreditar que quem me conhece já nem repara que os trago. Não é raro ouvi-los dizer: "Nunca te vi de óculos...". Nessas alturas, quem se ri francamente sou eu, é nesses momentos que sei que cheguei ao meu porto seguro. E alguns até se arriscam a deixar-se guiar por mim. Aí, fico tentado a confessar-lhes a verdade. Sinto que lhes deveria dizer que os caminhos que sigo com estes meus óculos, os únicos caminhos que consigo de facto destrinçar, não são os mais directos, nem os mais seguros, mas apenas os únicos que consigo percorrer com alguma certeza. Talvez os mais longos e íngremes, muitas vezes os menos óbvios.

Simplesmente os que me permitem chegar a um destino.

À noite, finalmente, guardo-os na caixinha, de dobradiças já carcomidas; e adormeço.

Sonho... Vejo-os. Uma multidão que se ri e me aponta. Lembro-me de cada rosto que se repete, sempre da mesma maneira, nesse meu pesadelo:

Encontro-me nu, num imenso campo de girassóis cinzentos onde apenas a armação nos meus olhos brilha. E eles encontram-me pelo brilho e seguem-me, seguem-me todos para um abismo enorme onde serei o primeiro a entrar.

Vêm sequiosos, como feras famintas, querem ver-me cair do cimo do penhasco; uns trazem máquinas para registar o momento, outros vão tirando apontamentos. Não consigo parar, a minha queda será inevitável, naquele abismo imenso, naquela boca imunda e fétida que se abre a metros escassos dos meus passos compelidos e inseguros.

De repente, oiço um ruído cavado. Olho para trás, ainda a medo, e vejo-os a todos caídos. Alguns levantam-se contundidos e confusos. Nenhum conseguiu ver o obstáculo que saltei.

Olho para o abismo, que se abre a curta distância e volto a olhar para eles. Todos esfolaram os joelhos.

Rio-me, rio-me mesmo muito, por fim. Vejo-lhes os esgares de espanto. Apreendo que todos caíram por não terem afinal, uns óculos iguais aos meus.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 14 de julho de 2009

Um momento na vida de Lucky Luke

De todas as personagens de Morris, a que sempre me deu maior satisfação foi a do Cowboy Solitário. Os textos de Goscinny faziam jus aos bonecos; o que resultava, como sabemos, numa das bandas-desenhadas de qualidade mais reconhecida de sempre.

Lembro-me de devorar as aventuras do dito, e de viver cada vinheta como se a tencionasse transpor para a realidade.

O pequeno momento que refiro é, por tudo isso, intemporal.

Luke deixara o Jolly Jumper junto a uma árvore à entrada do saloon. Lá dentro, comia-se, bebia-se, falava-se. Espiras de fumo ocasionais percorriam o ambiente levadas pela brisa do entardecer. O pianista não tinha comparecido. Luke pegou na viola e começou a entoar uma balada.

Ela aproximou-se, juntou a sua voz potente e maravilhosa. Aos poucos a voz de Luke deixou de se ouvir, acho que ele não tinha afinal tanto jeito para a música, porque a viola se calou também. Em minutos era apenas a voz dela que entoava pelo salão. O pequeno, de cabelo encaracolado e uns olhos lindos de arcanjo, sentara-se havia pouco tempo junto deles.

Escutava atento, também ele, aquela voz melodiosa de beleza ímpar. Olhou-a nos olhos e, com a honestidade que só as crianças têm, e talvez a tentar interpretar o olhar cúmplice daqueles dois, perguntou: "Mãe, estás a tentar seduzir o Luke?..."

Ela, sem interromper a balada, talvez à espera de uma reacção à altura, olhou para Luke; que mudara de cor; que olhava agora para o lajedo do chão, enquanto afagava o Rantamplan; enquanto tentava engolir um impossível do tamanho do Mundo, e com esse impossível também todas as frases que justamente demonstrariam ao pequeno que a mãe dele, por ter além do atributo da voz também os outros; de ser linda, inteligente, e jovem; não haveria nunca de precisar de seduzir quem quer que fosse, pelo simples facto de que qualquer homem ficaria logo seduzido, apenas pela presença dela. No balão da vinheta ficaram apenas as reticências que emanaram da voz do Luke.

Luke, que fora o pistoleiro famoso que conhecemos, já raramente ensaiava o tiro, a sua sombra que ele batera em rapidez tantas vezes, era agora a mais rápida, e ele tentava apenas segui-la.

Também naquele dia a sombra o levou por um caminho dúbio, onde ele ficou sem resposta adequada, sentindo que mais um pouco da sua juventude se esvaía naquele cenário.

Saiu do saloon, montou o dorso do Jolly Jumper. Sem olhar para trás, seguiu o seu destino. Quem tivesse boa audição ainda o poderia ter ouvido a cantarolar ao longe:

"I'm a poor lonesome cowboy... And a long way from home..."


© CybeRider - 2009

domingo, 5 de julho de 2009

Moto-contínuo

Observo o langor da queda daquele bago de areia.

Muito lentamente cai, seguido de outro e outro ainda. Perco-me algures na contagem. Penso na vida, nesta paragem de autocarro, sem saber o destino.

Olho em redor, cada um na sua paragem. Ínfima...

Cada um, dos que aguardam, poderia tentar contar cada grão de areia que cai. Cada um opta por acompanhar as notícias. Cada um opta, também, por cultivar um pequeníssimo inferno à sua volta. Ninguém quer saber do grão de areia que existe apenas para cair. Ninguém se importa acerca do sentido da sua própria existência, ou da subjectividade que anteviu a sua própria criação, nada se questiona, nada parece incerto; sujeitos a uma queda igualmente imprevisível.

A velocidade do pequeno grão de areia, que parece elevada, demora exactamente o necessário para chegar de um ponto a outro; nem mais, nem menos. Perfeito no seu desígnio, sem falhas, sem acidentes. Um olhar atento revela porém que é muito lento. Naquele percurso singelo, os potenciais observadores cansam-se de aguardar o autocarro que não chega, que no entanto não querem que chegue, por não lhe conhecerem o destino; outros surgem como que de parte nenhuma, outros há que embarcam para parte incerta. Num mundo coberto de paragens de autocarro, o percurso do grão de areia, que ninguém vê, que ninguém chama pelo nome, é uma eternidade. Hoje estou a vê-lo cair... Devagarinho...

Observo o frágil balão de vidro, como um ventre inchado de uma Vénus paleolítica, que num parir constante vai fecundando o outro, em baixo, até que se esgote toda a areia que, no entanto, não tem fim.

Compreendo a importância de cada grão que nasce indiferenciado de tal mãe e que parte para o desconhecido, num movimento perpétuo. Adivinho o temor em cada um, ao passar por aquele estreito ponto da segurança da matilha imensa para o seu salto singular. Sinto-lhe o palpitar acelerado até se voltar a reunir com os irmãos ao fundo do abismo.

Sinto-lhe a amnésia também, que o fará cumprir o destino, enquanto a minha mão for dando voltas à bela estrutura, cheia de saber.

E, em vez de me sentir um deus, sinto-me afinal um grão de areia que teima em desconhecer, ou em não aceitar, que lhe dão voltas à vida. Mas não daqueles, antes dos que, um a um, cheios de protagonismo, emperram a perfeita engrenagem do mais perfeito relógio de corda.

A meus pés, o carreiro de formigas...



© CybeRider - 2009