terça-feira, 9 de março de 2021

O GATO

in memoriam, 28/8/1934 - 15/11/2019


A minha mãe tinha um gato.

Era um gato especial porque lhe fora oferecido. Eu nunca tinha visto um gato oferecido que não fosse de loiça. Este era de carne e osso. Igual a qualquer outro naquela sua individualidade. Os gatos são individualmente iguais a quaisquer outros, como nós, afinal. Para a minha mãe, eu e o gato, éramos também iguais a quaisquer outros, filhos ou gatos, que pudesse ter tido. E ela nunca teve outro filho, mas gatos teve muitos. Amou-nos a todos à sua maneira, tal como a amámos a ela, à nossa.

Um dia ligou-me muito aflita porque lhe morrera a gata que lhe sobrara. E ela tivera muitas, até ter ficado para sempre sozinha com aquela. Restara-lhe do companheiro com quem vivera, derradeiramente, dez anos. Antes tinham tido em coabitação vários gatos, mas ele morreu-lhe à mesa da sala de jantar e ela ficou só, com a gata. Quando ele morreu não foi a minha mãe que me ligou, foi uma amiga. Ouvi-a em fundo, dolorosamente em pranto, à medida que a amiga me ia relatando como os serviços de emergência médica não o tinham podido salvar. Caíra fulminado, e ali ficou, estendido no tapete, durante horas. Arrepiou-me.

Quando a gata morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi a tantos quilómetros de distância. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dela, da minha única mãe. Foi a amiga do relato quem lhe ofereceu o gato. Quem, em seu perfeito juízo, oferece um gato quase novo, para sempre, a uma senhora idosa que mal dá conta de si? Uma amiga, claro.

A minha mãe ficou só, com o gato. O único filho partira para sempre de casa há mais de trinta anos e vivia a muitos quilómetros, sem lhe poder acudir.

Quando a minha mãe morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dele, do gato. Quando nos vimos não sabíamos que iríamos ter de ficar um com o outro, para sempre. Eu era alérgico a gatos e ele, calculo, que não soubesse se seria alérgico a mim. Para ele, ela saiu e voltei eu, que ele nunca vira. Para mim, ela saiu e voltei eu, que nunca o tinha visto.

Agora tenho um gato, mas a minha mãe, que me teve mas que já quase não me tinha, não tenho eu. Fiquei assim órfão para sempre, já quase velhinho. É natural que nem o gato nem eu fiquemos um com o outro por mais outra metade de uma vida, da minha se tivermos muito tempo, da dele se a ceifeira vier com mais pressa para levar um ou outro. Mas ficaremos juntos para sempre, assim como mães e filhos se têm, ainda que à distância de muitos quilómetros.

Como é efémero o sempre, tal qual o ter das coisas.


© CybeRider 2021

segunda-feira, 1 de março de 2021

M U R R A Ç A

O tema da violência doméstica que tem vindo a ser debatido com frequência nos media quase diariamente traz-me a este raciocínio pelo facto de não conseguir encontrar um paralelismo entre os profundos e fecundos debates, discursos e campanhas, e a necessária execução de medidas preventivas por parte das entidades competentes pela sua tutela. Vivemos há muitos anos numa sociedade que se quer do primeiro mundo, num estado de direito que deve zelar primeiro pelos direitos e garantias fundamentais dos seus cidadãos e só depois por quaisquer outros interesses que se justifiquem de relevo para uma putativa imagem internacional.

As queixas de violência doméstica apresentadas às autoridades nacionais rondam as trinta mil por ano, com um número sempre determinado mas potencialmente imprevisível de vítimas mortais. As sequelas psicológicas e sociais são, muitas vezes, irreversíveis.   

O confinamento, que tem sido apontado como causa de incremento da violência familiar, inclusivamente pela Senhora Ministra da Justiça, recentemente, nos meios de difusão correntes, não justifica a enérgica contemplação nem a violenta ataraxia com que permitimos que este flagelo se mantenha. Algo tem de ser feito e podemos começar por coisas muito elementares.

Não passo de mero espectador neste cenário dantesco, mas recordo a retirada dos anúncios do tabaco e das bebidas brancas dos ecrãs dos canais generalistas, sob o pretexto de que matavam enquanto por outro lado vejo manter os anúncios de várias novelas que, não seguindo, incomodam nos momentos em que, pelo meio de tanta publicidade que chego a esquecer que programa estava a ver, sou confrontado com a gritaria e cenas de pugilato com que se procura recordar mais um episódio de cada uma dessas historietas de faca e alguidar aos seus estimados consumidores.

Repugna a hipocrisia com que se deixa passar este triste circunstancialismo, seja a que horas for e sem respeito nem pelo escalão etário do telespectador, nem pelos princípios fundamentais de civilidade e dos mais elementares valores que deveriam enformar a nossa sociedade. É uma vergonha!

Já nem discuto a natureza dos programas em si mas refiro que, a ser tal que outros exemplos não haja para propagandear a sua difusão que não seja sempre a gritaria, a choradeira, o sopapo ou o estrangulamento e a facada, então estamos muito mal. Não creio que seja um retrato digno da sociedade portuguesa, mas creio que é a imagem que se vai interiorizando nos recantos ínfimos da mente humana, e assim envenenando o que pretendemos preservar, ao ponto de se acreditar que essa é a via de resolução normal de todos e quaisquer problemas. A permissibilidade deste triste espectáculo num dos principais observatórios da realidade social, ainda que de forma pontual, ou talvez até por isso mesmo, é de uma tremenda irresponsabilidade.

De nada servem as mesas redondas e os belos discursos enfatuados, de causar brilharete, quando se permite nas representações do real tudo aquilo que caracteriza as vilezas do mais confrangedor terceiro-mundismo. Antes de vítimas da violência no seio familiar, são-no de quem permite que estas práticas e costumes se exemplifiquem continuadamente no dia-a-dia sem restrições.

Deixo a ideia, à reflexão de quem saiba ou possa actuar. Pelo meio de tanta entidade preocupada não encontrei ainda a forma nem o meio de fazer chegar a quem de direito a minha opinião mas vou continuar, pela minha sanidade mental, a procurar. 


© CybeRider 2021