quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Ponto Cardeal


in memoriam, 07/7/1931 - 21/12/2011

É nos dias de chuva que vejo melhor ao longe. Espreito pelo cristal onde as gotas se vão comendo umas às outras e vejo Cacilhas ali a trezentos quilómetros.

Nunca fui muito paciente. Para mim uma nau faz-se num dia. Por isso aquela que comprei em mil pedaços de pau dentro de uma caixa bonita, um sonho que tinha desde criança, ficou por acabar. Comecei a juntar umas coisas com as outras, já preparado para a colocar naquele oceano imenso, o suporte de mogno com uma chapinha amarela, e ficou nem meia nau. Iria quando muito de Cacilhas ao Ginjal, e soçobraria deixando-me numa aflição sem colete salva-vidas que, como confirmei, não vinha no pacote. Vem-me à ideia que podia tentar manobrá-la na direcção oposta, até à Lisnave, talvez não conseguisse chegar lá inteira mas, lá, haveria de aparecer algum operário de mãos ferrugentas que com um sorriso ma tirava das minhas e me construía uma a sério, num só dia, apenas para me ver inclinar a cabeça para ele, até lá acima, com um sorriso de orelha a orelha e no olhar aquele brilho espantado que só as crianças têm quando vêem um gigante habilidoso executar um acto de magia. Que todos eles eram assim.

Seria um cacilheiro, como o Renovação ou o Norte Expresso, com uma portinhola para a escada descendente ao compartimento do motor, onde me podia sentar a inalar o cheiro a gasóleo queimado, no calor de fornalha que abafava, enquanto as gigantescas guias das válvulas daquele motor imenso matraqueavam com sopros e batidas a viagem de travessia num ensurdecedor compasso de reggae por inventar. Lá abaixo os olhos do maquinista, sobressaindo do rosto negro de óleo que tingia no mesmo tom a sarja do macaco azul, subentendidos na escuridão trémula, entrecortada pela iluminação das esparsas lanternas espalhadas pelo salão infernal, e os dentes fluorescentes quando se apercebia que tinha o habitual espectador no balcão superior. Na ponte haveria de sobressair a roda de leme e ao lado o telégrafo em latão polido, de mostrador redondo, em gomos de palavras incompreensíveis, adiante, atrás, meia-força, toda-a-força, devagar, como se comandasse algum halterofilista louco, de onde o comandante enviasse as ordens à sala de máquinas para nos fazer chegar sempre sãos e salvos ao destino. Não faltaria o engraxador que me enfarruscava as orelhas com as mãos empastadas de graxa sempre que eu não lhe conseguia fugir, nem os cobradores de tez curtida e quico à marinheiro, com a malinha de trocos, em couro, a tiracolo.

Numa viagem improvável vou nele ao cais de Alcântara. Lá fora estará o Oldsmobile Cabriolet, o táxi do Sr. Augusto Macedo, à tua espera, onde o vi tantas vezes. Desta vez será em estilo e, ao contrário das memórias que melhor guardo desse local, não hão-de haver as lágrimas contidas que nunca viste, e eu só mais tarde comecei a reparar, da minha mãe, sempre que partias, e hei-de lembrar-me bem de ti e reconhecer-te imediatamente. Irei beijar-te e finalmente agradecer-te as moedas que me atiraste da ponte do Santa Maria, ou seria do Infante D. Henrique, lembras-te?... E eu, ora de joelhos no chão ora a correr pelo cais, a catá-las como se fosse assim que faria uma fortuna para que te orgulhasses de mim. Depois os lenços a acenar, os outros prantos que não entendia, e o enorme navio a zarpar e a encolher, encolher, até ser um ponto no horizonte. 

Não te levei a sério quando me alertaste tantas vezes para que um dia haverias de partir na tua grande viagem. Sabia que já tinhas partido em algumas, já esquecidas no tempo, mas recordava que de todas sempre me tinhas trazido um brinquedo, e que esse dia era sempre um dia de festa.

Por isso, desta vez, vou continuar aqui, como nessas outras vezes, à espera de ver o teu navio surgir no horizonte, com a minha nau por terminar entre as mãos.


© CybeRider - 2013