quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Dos mártires que tonificam

Antes de poder chorar os mortos temos de lutar pela liberdade dos vivos, não por vingança mas por justiça, ainda que esta saiba normalmente a pouco, principalmente quando é a própria a calar a boca dos que se atrevem e a fazer temer por enquanto, a quem quiser criá-lo, que possa existir neste país um Charlie, hebdo ou não.



Imagem da net

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

A maioria


A maioria é profícua.
A maioria não trabalha.
A maioria não conduz.
A maioria sabe ler e escrever.
A maioria não lê nem escreve.
A maioria escreve mal.
A maioria fala mal.
A maioria porta-se bem.
A maioria nunca comeu lagosta.
A maioria vive infeliz na bruma.
A maioria coscuvilha.
A maioria apaixona-se.
A maioria não sabe amar.
A maioria já viu o mar.
A maioria já viu um morto.
A maioria nunca viu morrer ninguém.
A maioria nunca matou ninguém.
A maioria não acredita na sua própria morte.
A maioria acredita em dogmas.
A maioria acredita que a sorte há-de bafejar.
A maioria não pede desculpa.
A maioria acredita no perdão tácito.
A maioria desconhece o mal.
A maioria é pobre.
A maioria nunca dormiu na rua.
A maioria nunca viveu de caridade.
A maioria nunca matou para comer.
A maioria não sabe tocar um instrumento.
A maioria engana-se.
A maioria é dócil.
A maioria é perversa.
A maioria tem pensamentos inconfessáveis.
A maioria tem certezas.
A maioria tem medos.
A maioria tem nojo.
A maioria tem doenças.
A maioria é mal-educada.
A maioria é silenciosa.
A maioria acha que escolhe bem.
A maioria está mal informada.
A maioria escolhe mal.
A maioria desconfia dos outros.
A maioria acha que é incógnita.
A maioria tem preconceitos.
A maioria não pensa por si.
A maioria não pensa por mim.
A maioria não me conhece.
Eu não conheço a maioria.

© CybeRider 2014

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Maravilhosa estupidez

Recomendação:A reflexão que se segue é profundamente iconoclástica, pelo que se recomenda a presença de um adulto avisado para a sua leitura, caso o ilustre leitor o não seja.

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Todo o acto humano é estúpido.

Já me arrependo de iniciar esta análise pela estupidez inerente à sua criação bem como às suas estúpidas conclusões, que deveriam ser de uma evidência lapaliciana, e é uma estupidez também que este adjectivo não esteja dicionarizado para a caracterizar.

A inteligência de qualquer feito só o é mediante valorização e aceitação individual ou colectiva da estupidez que lhe deu origem, e só após apreciação dos seus efeitos que se querem estupidamente benéficos. Daí que qualquer projecto seja à partida uma idiotice, e seja necessário um esforço estúpido e muita boa-vontade para colocar toda a estupidez possível na sua execução, até que se torne em algo de aceitável e concreto.

Genial, é toda a estupidez que perdura no tempo até que seja refutada por outra estupidez mais visionária. Olho para as pirâmides de Gizé, geniais, e tremo com a dimensão de tamanha estupidez. Imagino o sofrimento inerente à grandiosidade da obra e o sangue suor e lágrimas que tal enormidade terá gerado. Não contente, recordo a Grande Muralha da China, vinte mil quilómetros teria, de pedras cuidadosamente alinhadas ao longo de séculos. Pequeníssimos nadas, quando afinal pensamos no planeta recém dobado a alcatrão e fio de cobre.

O conceito de inteligência é apenas isso, um conceito, uma utopia que serve de medida de aferição a toda e qualquer estupidez que nos ocorra. Só assim se pode justificar que tudo o que criamos seja sempre defensável por maior ou menor grupo de adeptos. O bem e o mal são conceitos estúpidos, porque para tudo existe causa, para tudo existe perdão. O bem de alguém causará sempre o mal de outrém, como o mal de alguém terá sempre contrapartidas benéficas avaliáveis na circunstância, normalmente com frutos pretendidos estupidamente por uma minoria insana, digo eu, na minha mesquinha parvoíce.

Que nada é objectivamente bom ou mau, a não ser para uma maior ou menor parte, a quem o acto ou intenção afecte, mas nunca em termos universais, como tão bem se provou na Europa há meia dúzia de décadas, e se verifica pelo mundo em cada dia que passa. A  beneficência, por outro lado, cria a injustiça de uma falsa esperança aos que, independentemente do seu potencial, acabarão na mesma por morrer de fome, maleita ou intenção de outrém, por exclusão ou falta de tempo; e ainda assim as religiões, e ainda assim Cristo milagreiro. 

Toda a pesporrência é estúpida, consequentemente toda a sociedade, o mundo inteiro, porque governado e apropriado, está inquinado de uma estupidez implícita e indelével. Não poderíamos viver de outra forma, dizem, que o homem é um bicho social. Outra prova da estupidez que afloro. A aglutinação é um disparate,  não  teríamos nem um terço dos problemas se não  tivéssemos   insistido neste modelo. Deixemos os totalitarismos que, pelo que acabo de dizer, de imediato não convêm, para pensarmos nos modelos que colhem aparentemente a vontade da maioria dos interessados, as democracias, assentes na vontade de maiorias, fundam-se num princípio bastante básico que, resultando noutras espécies, parece ser  estupidamente desadequado para os humanos, o de que a "união faz a força", o mesmo princípio que enforma qualquer acção de mobilização. Acontece que a força será o mais rudimentar e irracional mecanismo que deveria mover qualquer ser pensante. Por outro lado, a lógica, fruto do intelecto, qual celestial ambrósia, que se ambiciona mais como troféu que alimento, não tem qualquer força anímica.

Perante uma maioria contumaz que espera sempre o apoio, num qualquer patético testa-de-ferro, para aparar  qualquer contrariedade previsível, imposta à força do número mais que pelo pensamento, não pode surpreender que o desfecho não seja senão a catástrofe.

Esquecemo-nos que a liberdade derradeira é individual, impossível de aplicar num grupo heterogéneo, para o qual insistimos em tentá-la sempre sem sucesso. Defensores de todas as emancipações e críticos de todas as bitolas, não acatamos que os excessos de uns são o sofrimento de outros, que em sua defesa alegam uma pretensa etiqueta como barreira intransponível mas impossível de  impor a uma turba insurrecta e egoísta, contra a qual não haverá razão que se imponha.     

Embarcamos na estupidez de criarmos só para nós, como se não houvesse mais mundo, e acreditamos, religiosa e devotamente, que o nosso é o mundo verdadeiro, o único que existe, e é só nosso, sem nos inquietarmos com o facto de não existirem normas universais que nos conformem, normas que repudiaríamos, decerto, por acharmos que somos todos diferentes, ao mesmo tempo que achamos também que somos todos iguais.

Pensai no direito à vida; e onde consta o direito à morte? Não será este um activo que nos é humanamente sonegado?...  No entanto inventámos também o dever de morrer, por causas ditas nobres, sem que nos inquiete não existir um dever inverso paralelo. E tudo nos parece legítimo.

Maldita natureza que nos concede a capacidade de julgar sem prévia autocrítica. Maldita humanidade que premeia mais a coscuvilhice e o fútil estrelato decadente que o mérito do artífice incógnito. Não admira que os outros animais nos olhem por vezes com surpreendente estupefacção.

Estupidamente simples de perceber será o facto de não termos caminho. Embrenhados na estupidez de conceitos labirínticos perdemo-nos em voltas que nos trazem sempre aos locais de partida, continuamos a querer inventar a roda, continuamos a pasmar-nos com os Ovos de Colombo e parvoíces quejandas. No saber singelo, "de boas intenções está o Inferno cheio"; máquinas de flatulenta parvoíce, não ambicionemos o céu pois que não nos compete.

Não surpreende, por isto, que de tudo se possa fazer humor. Sempre que evidenciamos as características objectivas de qualquer acto humano, é bastante fácil que tudo se torne risível e desadequado.

A justificação para todas as derrotas resulta da recusa em aceitarmos a nossa solidão interínseca e a derradeira realidade, talvez a única coisa inteligente que nos enforma, o facto de nascermos e morrermos sempre sós e estúpidos.





© CybeRider - 2014

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Maricas

Estávamos em 1967.

Um Verão escaldante. O Chico dos retratos tinha o cavalo de cartão pintado e a máquina de fole para caçar veraneantes e eu era um dos putos que descalços esvoaçavam entre os calhaus da terra batida que formava a zona de acesso à praia da Caparica. Tisnados como tições, por passarmos ali as manhãs como lagartos, divertíamo-nos entre banhos com correrias, gritarias ou a dar chutos na bola. Não sabíamos jogar à bola; brincávamos à bola, que não é a mesma coisa. Um dos putos que brincava comigo era o filho do cabo-de-mar de serviço à praia naquele dia. Recordo o momento como se fosse hoje e até do nome dele me lembro, mas evito a menção porque agora, ao fim de quase quarenta e sete anos, já lhe posso perdoar. O referido agente aproximou-se de nós quando eu mostrava um tesouro aos meus amigos, um pedaço de papel amarrotado que me retirou suavemente das mãos. Um cromo do Eusébio, que me tinha saído, se bem recordo, num rebuçado; no tempo em que os rebuçados davam cromos. Olhou para o cromo e para mim e com um sorriso malicioso perguntou-me que raio de maricas era eu para andar com uma fotografia de um homem enfiada nos calções. Perante a chacota dos outros mariolas resolvi conter o "cabrão" que nos saía com facilidade, talvez com receio da chapada que não se faria esperar e, furioso, arranquei-lhe o papel das mãos.

A vergonha não durou tanto que não andássemos dali a pouco aos pontapés à bola outra vez, mas as palavras nunca as esqueci. Não me chamaram maricas muito mais vezes, ao longo dos anos fui trocando o cromo do Eusébio por fotos de namoradas, e ele deixou de jogar à bola, coisa que eu nunca cheguei a aprender. Mas de quando em vez, lá aparecia o Eusébio na televisão e lá me lembrava daquele fatídico dia em que tinha sido maricas por andar com uma fotografia do meu ídolo na algibeira. Talvez por isso não idolatrei muito mais ícones pela vida fora. Talvez também porque não conheci ao meu primeiro ídolo outras referências, que as teria, mas também por sentir que o Eusébio valeu por si próprio, como eu gostaria de valer por mim. Aprendi assim a viver com essa mariquice, essa e a de me comover com a grandiosidade das coisas mais simples.

Por isso tenho dado por mim surpreendido com alguma comoção que tenho sentido ao ouvir as palavras mais simples nos testemunhos dos amigos do Eusébio. Talvez mariquices dum país em que, de tanto nos fazermos fortes, aguentamos como titãs outras coisas de que qualquer maricas se queixaria em pranto.

Há um Eusébio em cada português, menos ágil, mas ainda assim campeão de resistência à adversidade.

Hoje porém a maioria é de maricas como eu.


© CybeRider - 2014

terça-feira, 19 de março de 2013

Uma verdade conveniente

Que pode um aprendiz dizer sobre a vida?

Tenho vindo a descobrir a significância das coisas insignificantes. A minha última epifania é que nascemos de coisas ordinárias, um saco de supermercado, uma bilha de água, às vezes dum pneu furado. Dirão que não. Que nascemos de uma mãe e de um pai, mas essa constatação é já a da natureza a formatar o disparate, mera tentativa de dar nexo ao caos.

A insignificância do nosso início é tão notória que nem sabemos ao certo como viemos cá parar, e no entanto temos o arrojo de achar que devemos estar destinados a algo sublime. E nisto arrisco se haverá alguma situação em que não tenha sido o acaso a colocar a nossa génese em factos absolutamente inocentes e imperceptíveis. Recuo décadas, avanço quilómetros para outras latitudes, e vem-me à ideia o casamento por conveniência, instituição venerada que entretanto tem caído em desuso, apenas para verificar que não. Mesmo aí teria de haver algo de casuístico e diminuto a colocar certas pessoas em incerto trilho.

Esta é a grande diferença entre nós e os outros animais. Por mais que observe os pássaros, os cães ou os peixes, não encontro tamanha variedade de razões tão pueris, para o enlace de dois seres num destino comum, o do nascimento de um filho.

Caso curioso é o daqueles miúdos que nasceram de um porta-chaves. O caso é tão óbvio, e tão embaraçoso de divulgar, que ainda não tive coragem de o revelar ao progenitor que mo contou com a maior naturalidade, sem compreender que me estava a lançar a chave do segredo da existência de uma boa parte da humanidade, eventualmente de toda desde que nos passámos indevidamente a apropriar do termo "racionais".

Contava-me que conheceu a actual companheira, a mãe dos filhos, numa noite, numa festa de estudantes, num bar algures por Amesterdão. O facto de ele, de ascendência inglesa, nascido na África do Sul, estar a estudar na Holanda é, a meu ver, absolutamente irrelevante para a minha conclusão. Facto importante é que no final da noite se prontificou a dar boleia a uns amigos da ocasião que foi distribuindo, pelos diversos destinos, na sua carripana. Como ele mesmo diz, nunca mais a teria visto se não fosse o facto de no dia seguinte ter encontrado, caído entre os bancos dianteiros do carro, este referido porta-chaves, o mesmo que eu lhe entregava agora, por ter encontrado caído entre os bancos dianteiros do meu. Objecto insignificante, uma pequena bota em couro, agora velho e seboso, com uma argola de metal meio corroído e meia dúzia de chaves tilintantes. Só depois veio o romance, talvez do sorriso grato dela e do olhar mais atento dele, conjecturas derivadas exclusivamente do meu pensamento.

Não fora isso e hoje, Dia do Pai eu, que não sei de onde nasci, estaria a relatar outra história, muito menos interessante, de um outro filho que nasceu de um enorme urso de peluche. Para mim muito mais complicada de aceitar e de contar, e no entanto também verídica e naturalmente conveniente.

© CybeRider - 2013

domingo, 10 de março de 2013

A Fonte da Juventude

Noto que a cada dia acordo mais jovem.

A juventude é um conceito complexo, na minha definição preferida, o período em que as mudanças fisiológicas se aquietam e as sócio-culturais se afirmam. Minto; antes o período que separa a leitura do convite à vida, da diligente circunspecção de que talvez tudo tenha afinal princípio, meio e fim. Sim, esta, confesso. Que erro brutal, o da natureza, em pôr um cérebro imortal num corpo de vida curta, deixando-nos a utópica tarefa de o tentar remediar.

Mais jovem, sem dúvida, apesar das rugas e das cãs; não é como esperava e contudo... Estranho o espelho, a cosmética, a medicina que nos prolongue o bater do coração, o desporto que nos conserve a tonicidade dos vinte anos; tudo recursos que iludem. Nada transporta à juventude, daí a busca incessante por esta fonte milagreira. E que vontade haveria? A liberdade de rir da piada fácil, anedotas pela primeira vez, incontinência pelo imediato, riso que disfarçava lágrimas, audácia do disparate só pensado depois de dito, sem certeza de justificação sustentável, supérflua; a fragilidade escondida na rebeldia de um grito, a incerteza do futuro, a dependência do dá-me sem a promessa do empresta-me, a inocência da confissão pública sempre tacitamente absolvida, a aprendizagem despreocupada sem objectivo definido; a única certeza, a eternidade?

Mais jovem, como no tempo em que me estendia de costas na areia de uma qualquer praia do sul, a vincar um meridiano. Acima o frio polar, longe; à direita oceano e américas; à esquerda, rússias, chinas, orientes médios e longínquos como austrálias; abaixo mais mar e áfricas ricas de poucos ricos e muitos pobres. Em frente o azul infinito, dava-me a certeza de que não haveria melhor lugar do que o meu. E talvez não haja, porque aqui nos tornamos afinal mais jovens, perdidos algures entre essa esquerda e essa direita, para onde me recordo de estender os braços, mas ficando sempre no meio.

É com um aperto de levar às lágrimas que vejo pais, avós, filhos e netos a lutar pelos mesmos lugares na fila da sobrevivência que engrossa a cada dia que passa. Extorquidos, os mais velhos, do pouco que já tinham amealhado para quando as forças lhes fossem faltando, que lhes foi tirado como se fossem doces das mãos de crianças, competem entre si pela dignidade que reste; vejo-os tentar agarrar-se à réstia de liberdade que se esfuma porque estava esquecida, reagir com mais agilidade ao imediato, como se tivessem reconquistado a destreza de antigamente, vejo-os disfarçar com riso o pranto, surpreendo-me com a súbita coragem em soltar o que a garganta já não consegue conter, talvez o pensem depois, sem certezas de encontrar a justificação que o sustente, que seria agora mais necessária. De novo o regresso à fragilidade antiga, aos gritos de rebeldia; o futuro de novo incerto, a submissão à dependência do dá-me sem a promessa implícita no empresta-me. A confissão pública já não carece de absolvição, porque também não é inocente, e a aprendizagem passou a ter um objectivo concreto. O regresso à juventude tem um preço pago nestas ténues diferenças; a maior porém, é que perderam definitivamente a certeza de que seriam eternos, essa nunca se recupera a partir de certa idade, e as anedotas são todas antigas.

Estou mais jovem a cada dia que passa. Compreendo finalmente que juventude e idade não têm rigorosamente nada que ver uma com a outra, e para o provar até posso quase afirmar que nem me faltam as borbulhas; se bem que vistas de perto, não são de acne; são de sarna, apanhada nesta fonte, para me coçar.

© CybeRider - 2013

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Ponto Cardeal


in memoriam, 07/7/1931 - 21/12/2011

É nos dias de chuva que vejo melhor ao longe. Espreito pelo cristal onde as gotas se vão comendo umas às outras e vejo Cacilhas ali a trezentos quilómetros.

Nunca fui muito paciente. Para mim uma nau faz-se num dia. Por isso aquela que comprei em mil pedaços de pau dentro de uma caixa bonita, um sonho que tinha desde criança, ficou por acabar. Comecei a juntar umas coisas com as outras, já preparado para a colocar naquele oceano imenso, o suporte de mogno com uma chapinha amarela, e ficou nem meia nau. Iria quando muito de Cacilhas ao Ginjal, e soçobraria deixando-me numa aflição sem colete salva-vidas que, como confirmei, não vinha no pacote. Vem-me à ideia que podia tentar manobrá-la na direcção oposta, até à Lisnave, talvez não conseguisse chegar lá inteira mas, lá, haveria de aparecer algum operário de mãos ferrugentas que com um sorriso ma tirava das minhas e me construía uma a sério, num só dia, apenas para me ver inclinar a cabeça para ele, até lá acima, com um sorriso de orelha a orelha e no olhar aquele brilho espantado que só as crianças têm quando vêem um gigante habilidoso executar um acto de magia. Que todos eles eram assim.

Seria um cacilheiro, como o Renovação ou o Norte Expresso, com uma portinhola para a escada descendente ao compartimento do motor, onde me podia sentar a inalar o cheiro a gasóleo queimado, no calor de fornalha que abafava, enquanto as gigantescas guias das válvulas daquele motor imenso matraqueavam com sopros e batidas a viagem de travessia num ensurdecedor compasso de reggae por inventar. Lá abaixo os olhos do maquinista, sobressaindo do rosto negro de óleo que tingia no mesmo tom a sarja do macaco azul, subentendidos na escuridão trémula, entrecortada pela iluminação das esparsas lanternas espalhadas pelo salão infernal, e os dentes fluorescentes quando se apercebia que tinha o habitual espectador no balcão superior. Na ponte haveria de sobressair a roda de leme e ao lado o telégrafo em latão polido, de mostrador redondo, em gomos de palavras incompreensíveis, adiante, atrás, meia-força, toda-a-força, devagar, como se comandasse algum halterofilista louco, de onde o comandante enviasse as ordens à sala de máquinas para nos fazer chegar sempre sãos e salvos ao destino. Não faltaria o engraxador que me enfarruscava as orelhas com as mãos empastadas de graxa sempre que eu não lhe conseguia fugir, nem os cobradores de tez curtida e quico à marinheiro, com a malinha de trocos, em couro, a tiracolo.

Numa viagem improvável vou nele ao cais de Alcântara. Lá fora estará o Oldsmobile Cabriolet, o táxi do Sr. Augusto Macedo, à tua espera, onde o vi tantas vezes. Desta vez será em estilo e, ao contrário das memórias que melhor guardo desse local, não hão-de haver as lágrimas contidas que nunca viste, e eu só mais tarde comecei a reparar, da minha mãe, sempre que partias, e hei-de lembrar-me bem de ti e reconhecer-te imediatamente. Irei beijar-te e finalmente agradecer-te as moedas que me atiraste da ponte do Santa Maria, ou seria do Infante D. Henrique, lembras-te?... E eu, ora de joelhos no chão ora a correr pelo cais, a catá-las como se fosse assim que faria uma fortuna para que te orgulhasses de mim. Depois os lenços a acenar, os outros prantos que não entendia, e o enorme navio a zarpar e a encolher, encolher, até ser um ponto no horizonte. 

Não te levei a sério quando me alertaste tantas vezes para que um dia haverias de partir na tua grande viagem. Sabia que já tinhas partido em algumas, já esquecidas no tempo, mas recordava que de todas sempre me tinhas trazido um brinquedo, e que esse dia era sempre um dia de festa.

Por isso, desta vez, vou continuar aqui, como nessas outras vezes, à espera de ver o teu navio surgir no horizonte, com a minha nau por terminar entre as mãos.


© CybeRider - 2013