terça-feira, 19 de maio de 2009

Gritos

À minha primeira paixão


É o Grito que nos liga a voz à alma.

Não há atalho mais curto. Alegrias, tristezas, espantos, medos, dor, prazer, todos são identificáveis por gritos, diferentes num todo, únicos em si.

Basta um grito para sabermos com que emoção estamos a lidar. E sabemo-lo melhor ainda se for nosso.

E não falo dos gritos de libertação. Que importam, mas são exteriorizados de outra forma. Refiro-me a esse som que emitimos, quando o coração não nos sustém o ar nos pulmões e o liberta, através das nossas cordas vocais de forma incontinente.

Arrisco que não haverá melhor registo do espírito, nem maior forma de arte que o pinte.

Na sua maioria incontroláveis e por isso sinceros, há os que soltamos a sós, os que partilhamos a dois, e os que publicamos ao vivo para uma multidão ouvir.

Destes últimos recordo um dos primeiros, senão mesmo o primeiro, da minha vida.

Transporto-me para uma distância deveras grande no tempo. Recordo um amplo ginásio, um sarau, muita gente a assistir - que naquele tempo a televisão era um objecto raríssimo e passava-se o tempo de outras maneiras.

Havia mesmo muitas crianças que, enfiadas nos seus uniformezinhos de brancura imaculada, calçãozinho e camisolita, com o emblema da filarmónica da freguesia bordado a pontos de amor pelas mãos maternas, tentavam orgulhosamente brilhar pelo meio dos colchões de espuma, trampolins, espaldares, barras assimétricas, enfim toda a parafrenália própria de um ginásio que se preze.

A festa teria início com a apresentação de uma corrida à volta do recinto com umas tropelias pré-combinadas executadas pela classe mais jovem. Teríamos de executar umas rodas, umas cambalhotas, enfim, o habitual, que já se me desvaneceu na precisão dos pormenores.

Mas houve um detalhe que sublimava a importância de tudo o que tivéssemos de fazer. Se de facto deveríamos ter começado com o que estava combinado, começámos antes com o meu grito de descontentamento, de injustiça, de direito roubado, de desilusão com o mundo.

Foi um momento alto. Todos os olhos se centraram em mim. O meu protagonismo não condizia com os meus pequeníssimos cinco anos. Procuravam perceber o significado daquele grito lancinante, que rapidamente se transformou num pranto de revolta.

A razão era porém bastante simples. Na formatura final tinham-me colocado junto a outra menina que não era a Ana Maria. De forma alguma aquele sarau teria início sem que eu pudesse brilhar ao lado da maior estrela do firmamento daquela noite, e aquela surpresa que me reservaram por mera ignorância do maior sentimento que um coração pode sentir, e que era o meu, levou ao meu boicote.

Incrédulo o professor dirigiu-se a mim, recordo o olhar nervoso da minha mãe, e limitei-me a apontar o dedo, para a criatura mais bela que alguma vez vira, e a dizer baixinho com os olhos rasos de lágrimas:

- Só vou se for com a Ana Maria...

E foi feita a minha vontade.

Já não me recordo se fiz bem as rodas e as cambalhotas. Recordo-me que foi uma noite muito feliz.
Foi também, talvez, a maior humilhação por que passei em público. Mas valeu a pena!


Tenho ainda, muitas vezes, vontade de gritar sozinho perante uma multidão. Talvez não saiba depois explicar tão bem o motivo do meu pranto.



Mas do que tenho mesmo receio, é que não me façam a vontade.


© CybeRider - 2009

19 comentários:

escarlate.due disse...

detesto gritos (mas acho que é por inveja da minha voz não dar para tanto) e receio que nem todas as tuas vontades sejam satisfeitas por mais que grites :) mas este texto está uma delicia.
fez-me lembrar uns outros gritos, aqueles silenciosos, que me aterrorizam...
mas também me fez lembrar a espontaneidade genuina que só as crianças têm :)

Chapa disse...

O que é isso de humilhação, se o resultado final foi o que tu querias?
Humilhação era se o grito ficasse mudo e o prazer não satisfeito.
Grita com força, companheiro, grita sempre.
Um abraço

CybeRider disse...

Olá Escarlate!
Tens razão, é provável que já não consiga fazer birras tão perfeitas, mas naquela altura as poucas que fiz foram por motivos muito fortes.

Há coisas da infância que nunca conseguiremos voltar a imitar.
Às vezes é pena...
:)

CybeRider disse...

Chapa, a humilhação que recordo foi por não ter contido as lágrimas, a miúda tinha-me achado com certeza muito mais heróico. :))

Mas para a plateia o drama assim foi muito mais intenso.

Depois crescemos e aprendemos a dosear melhor as coisas, ganha-se em racionalidade mas perde-se em espectáculo.

Há também aquela coisa do "quem não chora não mama", o pior é que agora quando quero "mamar" o choro sai-me claramente contido.

Soraia Silva disse...

por vezes apetece-me gritar, gritar por tudo e por nada, gritar com este ou aquele, apenas gritar...
E por vezes pergunto-me:
- gritar porque? porque motivo? de alegria? de magoa?

os meus gritos por norma, sao aqueles mudos para muita gente, porque sao silenciosos, sao aqueles que dou e so eu os ouço sair de dentro (tanto os de alegria como os de dor, os de certezas e os de incertezas)
porque penso que um grito limpa a alma, acho que nos faz deseparecer o peso que nao sabemos de onde vem e porque motivo o temos...

beijinho :)

CybeRider disse...

Olá Soraia!

De facto é assim, mas olha já estou como disse o Chapa. Tu grita miúda, não deixes nada ficar aí dentro! Devíamos seguir o exemplo das crianças e deixarmo-nos de algumas etiquetas que só servem de obstáculo aos nossos objectivos.

Por isso não penses nos motivos que te hão-de levar a gritar ou não, segue o teu instinto que só assim se consegue "chegar lá".

Nunca ninguém ficou célebre por ser mais um entre os outros. É a nossa individualidade que faz a diferença.

beijinho :)

Soraia Silva disse...

agora gritava, mas sabes porque? (desta vez eu sei)
porque estou cheia de sono mas o vicio de andar aqui no pc é demais eheheheh

Mas agora a falar a serio...
quando respondo aos teus textos, como este ultimo por exemplo, nao quer dizer que esteja nessa situaçao (ja estive), mas os teus textos sao tao intensos que parece que estamos a viver aquilo que lemos ( ate porque se neste momento gritasse era para acordar o pessoal daqui de casa e com azar os vizinhos tambem (1h20) lol )...

beijo :)

(agora sim, vou dormir :))

Nirvana disse...

Em relação aos gritos de gritar mesmo... de dizer com licença, venho já, ir lá fora e dar mesmo um grito que alivie a alma...agora... conto até 10, 20, 100... parece mal. Mas às vezes que bem saberia!
Os outros, os gritos para dentro, que quantas vezes nos rasgam a alma, nos dilaceram por dentro, não há como os transformar em tiradas mais bem-educadas! Apenas aprender a lidar com eles, a transformá-los em murmúrios...
Se os deixassemos sair de vez em quando, talvez não custassem tanto!

Deliciosa, a história da Ana Maria...É essa a magia das crianças, a sinceridade. Sabem o que querem melhor do que muitos adultos, e, quando querem, fazem tudo para o obter... Um exemplo a seguir.

Eu também teria receio que não me fizessem a vontade, mas principalmente, teria receio que me internassem :).
Beijinho

CybeRider disse...

Soraia: :)))))

CybeRider disse...

Olá Nirvana!
Pois... São essas questões da "boa educação", moral e bons costumes, políticamente correcto, que nos levam a calar muitos gritos e nos deixam em desvantagem perante aqueles que, por estatutos muitas vezes atribuídos por nós, nos impõem as suas vontades como verdades universais que muitas vezes não são.

Não sou defensor de uma anarquia, nem defendo faltas de respeito. Muito pelo contrário, tenho defendido sempre que podemos dizer tudo a todos, depende apenas da forma como se diga. Que o respeito é devido sempre de parte a parte e a educação devia ser um pilar de estabilidade mais do que uma ferramenta de concórdia, mas menos ainda uma arma que muitos utilizam para calar e subjugar outros.

Esta estória apenas me recorda que tinha muito menos impedimentos em criança do que tenho hoje, e que é exactamente o lado social da coisa que me impede de gritar mais vezes, e lá tenho que recorer a contagens, como referes, e engolir uns sapos. Até quando?...

Beijinho!

Pepita Chocolate disse...

As crianças são os melhores negociadores do mundo, por isso lhes fazem a vontade! Quando crescemos, talvez percamos essa condição, e tenhamos de ceder. Nem sempre nos vão fazer a vontade, nem nunca faremos a vontade a outros.
O grito pode ser a expulsão de um desejo contido. Mas não é visto da mesma forma, quando se é uma criança e quando se é um adulto!A uma criança faz-se a vontade. Um adulto quando grita, no meio da multidão, é um louco!
Fazer-te a vontade, não fazem!Colocam-te uma camisa de forças!

Mas se o grito é silencioso, a situação é ainda mais grave. esses gritos só se conseguem ouvir com o coração e há muita gente por aí, que tem um coração muito surdo!

Beijo!

CybeRider disse...

Olá Pepita!
As crianças são honestas, puras, crédulas, depois conhecem os pais... :)

Podemos gritar, se a multidão for de apoiantes. O problema está em conseguir o apoio. Estamos tão preocupados com os nossos umbigos que normalmente é, de facto, como dizes, acabamos por concluir que o mundo está contra nós. Isso tira-nos convicção e argumentos para não sermos considerados loucos. Precisávamos de ser menos cépticos para podermos gritar em segurança e mantermos as nossas convicções.

Essa tua última apreciação é uma pérola!

"há muita gente por aí, que tem um coração muito surdo!"

Posso guardá-la?...

Beijo!

Pepita Chocolate disse...

A frase foi deixada aqui. Portanto, pertence-te! Ainda que não seja extraordinário,mas se gostaste dele, ainda bem que assim é!

Beijo!

CybeRider disse...

Obrigado Pepita, como vês aí ao lado, já consta por uma boa causa.

É que este espaço é feito de muitas coisas, e uma para mim que merece grande destaque é o incentivo que representa alguém deixar aqui exposto um ícone, sem receio de que as minhas palavras lhes tragam a crítica de quem os possa julgar por acompanhar alguém a quem possam não reconhecer qualquer mérito (que é sempre uma questão muito subjectiva).

Daí que tenha pensado numa forma de agradecer esse apoio. Como não sou de "prémios". Achei que esta seria uma forma bonita - e mais permanente - de o fazer.

Beijo!

Pepita Chocolate disse...

Quanta honra por essa tua lembrança, para o quadro de mérito!

Obrigada pela evidência, mas não era mesmo necessário!
O mérito é teu, que nos fazes vir aqui deixar as melhores palavras que temos para dar!

Beijo!

the dear Zé disse...

Eu já aqui vim ante e gritei, gritei muito alto, mas acho que mesmo assim não me ouviste. É a minha sina, por mais que grite ninguém me houve.
Por isso agora escrevo, pode ser que assim ecoe mais alto.

Abraço e podes tirar as frase e fotos e tudo o que quiseres.

CybeRider disse...

Olá Caçador!
Então eras tu! E eu a pensar que estava aqui alguma peça do computador a dar o berro.

Não tenho braços para tanto que já venho de lá carregado todos os dias.

Abraço!

MorTo Vivo disse...

Olá grande Cyber,

Desculpa a ausencia mas o trabalho não me tem dado tréguas, mudei de loja e agora estou numa casa a arder, por isso o tempo torna-se curto. Mas prometo ler tudo e comentar. Em relação à frase man, só te posso dizer que é uma honra enorme estares a utiliza-la.

Um abraço

CybeRider disse...

Epá MV! Que boa surpresa! Mas olha que as tuas razões de certeza que são boas. E não te preocupes, nós não saimos daqui.

Força nisso man!

Um abraço!