quarta-feira, 24 de março de 2010

O matador

"Não nasci para matar!"

Grito, a convencer-me. E porém, vejamos:

Ao nascer quase matei a minha mãe. Valeram-lhe os cuidados médicos adequados para que não perecesse e me deixasse ali logo entregue à estatística, de mais um órfão à nascença; bem vistas, as coisas, sei lá se haveria alguma já nascida e mantida que assinalasse tais desventuras e nos convertesse automaticamente em números indignos, privando-nos de qualquer protagonismo.

Ainda faltaria mais essa.

Assim, fiquei sem carregar o peso desse homicídio absolutamente involuntário, bem vistas, as coisas também, nem a conhecia até à data. Tinha a desculpa de ser inimputável. Talvez por isso, comecei logo a matar. Matei a fome e a sede tantas vezes quantas pude. Não me consta que um recém-nascido alguma vez tenha sugado a mãe até ao osso. Maravilhas da natureza. Não sei se me faltaria a vontade, mas acredito piamente que não. Por mim não haveriam sobras depois do primeiro repasto. Agora já penso de outra maneira, talvez em contrição.

Em breve a sociedade já matava para mim, já não estava tão só. Comi cada bife sem mágoa.

Cresci de rompante e nem recordo os engodos em que ocultei essa intencionalidade assassina. Perdi-lhes o rasto nas recordações que aniquilei, na minha fuga desesperada para evitar o degredo de pecador penitente. Sei que continuei a matar, pelo que escalpelizo, convicto da minha inocência. Enganado por mim próprio.

Usei à desmesura o meu olhar de matador; armado, em parvo, na maioria das vezes; direccionado às presas incautas que lhe tentavam em debate intenso resistir; camuflando sentimentos pouco claros que justificassem tal atitude, acabei por ser poucas vezes bem sucedido mas, nas que fui, acabei por encontrar uma injustificada felicidade; algo felina, por desprendida, confesso.

Um dia puseram-me armas nas mãos para que matasse, coisa nenhuma. E estranhei. Estranhei principalmente a sinceridade do gesto. Como uma acusação pendente sobre o meu crânio, capaz de se soltar do pêndulo celeste para me trespassar a essência. Encarei a coisa como um fardo, e fardei-me durante o tempo que me pediram, sem saber ao certo porquê. Afinal pediam-me que usasse capacidades que desconheciam. Mas que eu sabia, sem desejar dá-lo a conhecer, o quanto era exímio na sua execução. Para a sociedade passei por mero amador. E deixaram-me escapar sem que suspeitassem dessa realidade assustadora. Agradeceram-me. Bajularam-me.

Nunca premuniram as ilusões que desfiz, nem as expectativas que gorei às minhas próprias mãos, nem as alegrias de outrem que sufoquei num ápice, sem hesitar. Sempre com a frieza do assassino mais cruel e horrífico.

Criei quimeras também, mas com o intuito deliberado de as abafar. Tantas estrangulei sem remorso.

E disto se fazem as memórias e as saudades, e os arrependimentos. Mais presas para juntar ao meu espólio; também estas que restem terei de matar, a seu tempo. Penso no móbil, calculo a forma.

Sei que por cada desmembramento me pesarão os danos colaterais; que os há. São as réstias de esperança, que se desvanecem em cada entardecer, em cada onda do mar que varre o sangue das entranhas restantes desses pobres entes que reprimo.

Das saudades que mato não necessitava. As saudades nunca aproveitam a ninguém, nem aos que partiram que deixam ali um cabo ancorado, nem aos que ficam e que acabam por entortar o pescoço no vislumbre do navio.

São as horas; tanto tempo que acabo por esventrar e que tanta falta me faria, para continuar a matança.

© CybeRider - 2010

16 comentários:

Pepita Chocolate disse...

Talvez um dos textos que mais gostei de te ler. Matou-me um pouco a saudade de ler algo fantasticamente bem escrito. Mesmo que a palavra matança apareça vezes demais, mata uma fome por coisa bem escritas.

E poupa as tuas palavras a recusar esta minah constatação. Não são elogios. São factos. E contra factos não há argumentos. Por isso, tenha lá tento na língua se me recusar estas palavras.

Haja alguém com algo interessante para escrever, e que dê prazer em ler. A esta hora da noite recuso-me a que o sono ganhe ao comentário.

E se não deste por isso até agora... gostei mesmo deste texto. Porquê? Porque sim!

Um beijinho.

escarlate disse...

hum... e com tanta matança ainda continuas vivo?! então talvez seja porque acertaste na mouche: mataste o que era suposto morrer e deixaste vivo o que era suposto viver.

quase me deste vontade de rever o que terei eu assassinado ao longo da vida... quase... faltou-lhe o quase... quase revi... quase... porque esbarrei logo na primeira e não pretendo matar-me a mim...


(e espero que estejas melhor)

Nirvana disse...

Cada texto um desafio, que acho que nem sempre consigo "matar", isto é, apreender tudo o que pretendes dizer. Mas, mesmo que não o faça, posso sempre interpretá-los à minha maneira :).
Gostei, gostei muito do texto. Tirando os olhares à matador e as armas a sério nas mãos, também terei algumas dessas matanças no currículo. E outras também. Algumas em que fiz por isso, e outras que por mais que eu tente são piores que dez gatos juntos, cada um deles com sete vidas.
As saudades que tentamos matar e que tantas vezes nos "matam", não aproveitam a ninguém, tens razão, mas por outro lado, são elas que nos mantêm ligados ao/aos que preencheram de vida a nossa vida.

Beijinhos, Cybe

the dear Zé disse...

amanhã comento

CybeRider disse...

Olá Pepita!

Palpita-me que a qualidade está nos olhos do leitor. Já que me cerceias, resta-me então agradecer-te e tentar que de futuro não te desaponte.

:)

Beijinho!

CybeRider disse...

Olá Escarlate!

Talvez não seja mesmo para rever, basta sabermos que existiu.

(Como novo sim, obrigado!)

CybeRider disse...

Olá Nirvana!

Enquanto assim for cumprir-se-á o objectivo. Prefiro quando o que faço pode passar a pertencer a alguém, para isso é necessária a interiorização que referes, precisa de ser à tua maneira. Só pode ser assim, de outra forma não valeria a pena.

Beijinho, Nirvana

CybeRider disse...

Olá Caçador!

Sei que é verdade! Também isso me basta.

:)

the dear Zé disse...

Pois, mas passou. Estou a aprender ou reaprender o tempo. Coisas.

CybeRider disse...

Não és só tu!...

Mas passaste, e isso já me conforta!

:)))

Mário Rodrigues disse...

Já que me fazes reflectir, reflicto...
Realmente ocorre-me a possibilidade de já algumas vezes ter apunhalado de morte esperanças e expectativas, alegrias e tristezas...por ventura até momentos de alguma felicidade...isso não me faz sentir lá muito bem! Mas sei que de certeza que o já fiz.

Falas-me de uma matança, uma matança frenética e paradoxalmente subtilmente imparável...deste modo e mais que de qualquer outro, ela apresenta-se-me como inseparável de um só e mesmo acto de natalidade. Parece-me uma cadeia imparável de nascimento das cinzas ou antes de morte de nados...a morte é imprescindível à vida...mas qual vida? Esta sequência de fenómenos e realidades encadeadas podem-se tomar como vida? Qual é nesse caso a definição de vida?

Já sei! É o contrário de estar morto!

Um abraço

the dear Zé disse...

Cybe, o serial killer.

Gemini disse...

Este terá sido o texto que mais senti que muito sentiste ao escrever.

Que te sirva de algum consolo constatares que, a cada matança, garantiste vida, ou possibilidade de vida (vá lá), é de resto com esse objectivo explicito que apresentas as tuas matanças. Mas pareceu-me, no modo como li, que houve delas cujo preço, hoje, talvez não pagasses!

Nesta fase da tua vida terás já passado a zona do torbilhão, navegas agora em águas calmas, crias por isso mais vida!

E não há coisas que vivem da morte?! - Eu tenho sempre fome de te ler, e não a consigo matar!

Abraço.

CybeRider disse...

Olá Mário,

Dessa estranha forma vamos delineando o destino, mais outra das nossas poderosas invenções. E a morte nunca é nossa, pois se se nasce e se morre só, se se nasce e se morre despido... Só poderei reconhecer a morte de outrém, e eles eventualmente a minha. Nunca haverá quem ateste pessoalmente o seu óbito, será essa a única coisa que não podemos comprovar sós, porque não nos pertence. Talvez da mesma forma que nos seja vedado recordar o nosso nascimento e no entanto ele deve ter ocorrido.

Abraço!

CybeRider disse...

Vês tu Caçador, quanta impunidade no mundo?

:)

CybeRider disse...

Olá Gemini,

De facto muitas coisas terão havido a sobreviver à custa do que matei. A sofreguidão com que avançamos pela vida leva-nos a descurar a importância dos cadáveres que abandonamos. Não valorizando os despojos chegamos a nem saber valorizar a vida. Há sempre um momento em que o balanço se nos impõe, nessa altura tentamos valer-nos da memória que entretanto já aniquilámos também, adocicando os factos de fel e sobrevalorizando os de mel, resta-nos a convicção de termos sabido escolher os trunfos que tivemos ao dispôr e acreditar que somos exímios nessa opção; talvez assim se consiga absolver a culpa, ou talvez não... E nesse "talvez" haverá ainda muito a pagar pelas escolhas feitas e pelo morticínio espalhado. Será até ao fim.

Abraço, Gemini