quinta-feira, 22 de abril de 2010

Relancionamentos

Vá lá... Não te rias. Não me ofendas. Saberás que me maltratas?

 

Não sei quando me apareceu esta estranha tendência.

Foi há muito que comecei a cativar o gosto, a definir uma preferência inusitada por um certo tipo de coleccionismo. Antes de me começarem a cercear as vistas e a devassar os intentos.  

"Fecha a boca! Olha que entra mosca!"

E eu fechava. E desviava o olhar, como se temesse que me espetassem as agulhas de tricô num olho. Que se tricotava à mão, naquele tempo. Ainda vesti muitas camisolas que as mãos maternas prendadas mostraram ao mundo, e a mim. Tricotadas com aquela paixão com que os meus olhos passavam das suas mãos para os dela, e os meus lábios se entreabriam.

Depois vieram tios e primos, amigos e amigos de parentes. O homem da mercearia, o Justino da papelaria sempre aziado com os catraios, o leiteiro e o padeiro.

"Olha lá o danado do moço! A olhar para mim... Sou muito feia? Sou?..."

Durante anos pratiquei esse fetiche. Bambaleando as pernas no banco do autocarro ou do cacilheiro. A viagem era sempre curta, ou parecia; a paisagem sempre variada, e as moscas iam-se mantendo à distância. Eram os rostos que me interessavam, a posição das orelhas, os trejeitos, o tamanho do nariz, a estranheza da calva. Embriagava-me aquela variedade.

"Que foi? Nunca viste?"

Começaram depois a disparar. E eu, envergonhado, corava e não respondia. Tinha vontade de lhes explicar, que não. Que nunca vira aquela composição bela de traços e formas, de cambiantes e gestos. Mas nunca fui bom com as palavras, principalmente as faladas. Estragavam o momento e desviavam-me a atenção do cerne do meu interesse.

Com o passar dos anos fui aprendendo a respeitar mais as moscas e a controlar melhor a maxila. Perdi um pouco daquele ar idiota que tão bem me identificava. Sinceramente, era também mais fácil coçar o queixo, onde a penugem despontava, de boca bem fechada.

Os olhos deixaram de me obedecer tanto. Passaram a centrar-se em objectivos mais sexistas e menos adequados ao meu fascínio genésico, dava por mim a mirar inexplicavelmente outros alvos, com cobiça mas sem desagrado. A paixão porém permanecia, mas a boa-educação também. Aprendi com facilidade a não olhar directamente nos olhos dos mais hierárquicos, a não devassar as senhoras casadas; nem, para meu interesse, as solteiras de mau humor. Interiorizei o grande poder que um olhar detém, evitei utilizá-lo a eito como arma temerária, mas também aprendi que há quem afira a honestidade pela tenacidade com que o sustentamos no diálogo, o que não se compatibiliza com muitas das situações que referi. Talvez por isso nos enganemos tantas vezes nos juízos apriorísticos.

Nesta complexidade ainda me surpreende como consegui amansar algumas feras e trazer brasas à minha sardinha, mas consegui.

 

Dei por mim há dias a passar por pessoas sem as ver.

Porque me conheço bem, sei que isso não é bom sintoma. Temo ter deixado de acreditar que valorizem o meu olhar, mas temo sobretudo ter deixado de procurar a beleza naquilo que me rodeia.

Por isso, não te rias, não me ofendas. Não estranhes se vires um estranho a olhar para ti com ar pasmado, e de boca aberta à espera da mosca. Sou só eu, inofensivo, a admirar a tua beleza e a incorporar-te na minha colecção. E será até bem natural que, de ti, nada mais queira.

Nesse dia estarei a caminho da minha cura. Até lá, desejem-me as melhoras, ou a mim ou ao mundo.

 

© CybeRider - 2010

14 comentários:

Pepita Chocolate disse...

Eu é que fico sempre de queixo caído, cada vez que cá venho...

Não entra mosca, mas não me sai da cabeça como é que alguém consegue fazer de coisas tão simples, um texto tão delicioso e cheio de subtilezas...
Gosto das personagens com nome, e muito pouco desse apoucamento que fazes de ti...

Mas no fundo, se a beleza ou a fealdade te deixam de boca aberta, acredita que qualquer uma delas é ditada pelos teus olhos. Porque se fosse pelo coração, não haveria fealdade no mundo.

Quanto aos relacionamentos são muitas vezes, tão somente visitas que, de relance, nós deixamos que batam à nossa porta. E se distam, com o tempo.

Beijinho.

Continuo a gostar de ler. Muito. (tinha de dizer isso, porque os elogios têm de ser dados quando merecidos.)

Mário Rodrigues disse...

Não temas. Bem sabes que isso é para quem deve...
Não acredito que deixes de procurar as belezas que te rodeiam. Tornar-te-ias amorfo e apático, mesmo indiferente, o que não és de certeza.
No entanto, esforça-te nesse processo de observação. Conseguimos ver coisas que pareciam imperceptíveis, principalmente se estiverem a falar...

Um abraço

P.S. - As melhoras do mundo

Nirvana disse...

Quando comecei a ler pensei que o título tivesse a ver com relacionamentos, depois fiquei em dúvida se seria com relance, porque muitas dessas pessoas, coisas, por quem passamos e olhamos todos os dias, o fazemos de relance, nos poucos momentos em que não estamos embrenhados no trabalho ou nos nossos próprios pensamentos, e nos permitimos apreciar o exterior, e a ficar de queixo caído perante as belezas que nos rodeiam.
Não me acredito que deixes de procurar a beleza naquilo que te rodeia. Mais do que a beleza, que continues a ir mais além, a valorizar o que está por trás da beleza.
Depois de escreveres este texto, como poderias não ver a beleza? Pois, quem não é capaz de apreciar a beleza não é capaz de transportá-la para as palavras.
Por isso, desejo as melhoras ao mundo. Esse sim, precisa de melhorar.

Beijinhos, Cybe

the dear Zé disse...

Tu não sei, mas o mundo precisava mesmo de uns arranjinhos, uma melhorazitas...

E sei muito bem do que falas, também a mim me fascina olhar pessoas...

Abraço moço

escarlate.due disse...

pronto, não corro risco porque efectivamente este "a admirar a tua beleza e a incorporar-te na minha colecção" nunca seria o meu caso
já o inverso... portanto toma cuidado Cyber, quando vires uns olhos fixos, a fazer relatórios mentais... pode muito bem ser a je :)

Gemini disse...

Não vês que são esses olhos, e outros como os teus, que tornam o mundo melhor?! Afinal a beleza está em quem observa, nem sempre explicita no alvo de observação...

Eu recuso-me a deixar de ser assim, como te descreves, e se isso é estar longe de uma cura, então Cybe, que me saiba manter assim; mal! E por isso, se me perguntarem como estou, afirmarei convictamente:

Quando mal, nunca melhor!

Um abraço.

CybeRider disse...

Olá Pepita!

É bem verdade que que o coração retira a fealdade ao mundo. A questão é que tenho sempre tentado apreender o que este maravilhoso mundo me oferece de bandeja, aprendi também, com o tempo, a ver o lado bom da maioria das coisas, às que não achava belas reagia principalmente com indiferença, se bem que me autocriticasse por alguma falta de intervenção por algumas vezes. O inquietante é que cada vez me surgem menos coisas que me mereçam realce, e a indiferença parece apoderar-se de mim de uma forma que desconhecia. Mas tenho esperança.

Beijinho

P.S.: E embora pareça, não sou indiferente aos elogios. Obrigado! :)

CybeRider disse...

Olá Mário!

Tornar-me amorfo e apático é a doença que temo me esteja a consumir. Recuso-me porém a sentir-me culpado por ela, falta-me encontrar a causa justa para a maleita, mas sinto que a beleza se desvanece. Sinto-me a invejar a juventude e a temer a velhice, encontro pouco apoio no que me rodeia para visualizar o detalhe que anima, antes vejo o todo que me submete. Submisso não sou feliz e torna-se difícil criar sem apreender algo de positivo, isso seria o combustível da alma, mas escasseia.

Tento aplicar a surdez na apreciação da beleza das coisas, acho que quando falam escondem muitas vezes o que verdadeiramente são, para ouvir já é necessário um conhecimento mais profundo que não se limite a um relance. É uma arte. Não será por acaso que alguns que me toleram têm bastante mau génio, mas não os repudio por isso, sei bem aquilo que são. Nessa arte sou também um aprendiz.

Um abraço

CybeRider disse...

Olá Nirvana!

Os relacionamentos de relance não deixam de ser relacionamentos, alguns podem marcar-nos mesmo por muito tempo. E há aqueles pequenos instantes capazes de atear uma verdadeira paixão que nos pode fazer voltar a um local cheios de esperança e pensar naquele instante por dias a fio, principalmente quando o poder do olhar é trocado com alguma (e especial) intensidade. Diria que podemos levar muito tempo a tentar encontrar esses poucos momentos singulares, e belos.

Há que manter a paixão, concordo contigo que sem ver beleza nada de belo conseguimos criar, faltará a motivação.

Mantenho a esperança nas melhoras do mundo, como tu acreditas e mo recordas na frase que me emprestaste para este espaço, lembras-te?

Beijinhos, Nirvana

CybeRider disse...

Olá Caçador!

Não me surpreende o teu apetite pelo belo. Basta viajar pelos teus vários bosques para ver a forma certeira como o caças. Exemplar, afirmo sem receio. E se há panaceia que nos anime será mesmo essa, ir lá e tomar às colheres, tenho seguido esse receituário e aguardo melhoras para breve.

Para o mundo é que já não sei que cataplasmas aplicar...

Abraço!

CybeRider disse...

Olá Escarlate!

A beleza é das coisas mais subjectivas. Diz-se que "olhos que não vêem, coração que não sente", no entanto os cegos também amam. Talvez a beleza seja algo que se pressente. Este juízo a somar ao diálogo dos búzios que se sentam à minha mesa e que não falam pelos cotovelos, mas pelos vértices das suas conchas, leva-me a ter de contrariar a tua afirmação.

Que estranho seria se ao dobrarmos a mesma esquina nos quedássemos embasbacados um com o outro! Haja quem nos salve desse embaraço!

:)))

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Como podes não sentir o apelo de devolver a beleza ao mundo? De onde te vem então a inspiração para as coisas tão belas com que nos brindas? Crês tu que tudo isso é inato? Não te posso contradizer, mas gostaria de aprender o teu segredo, agora dava-me imenso jeito!

Abraço! :)

Milu disse...

Belíssimo texto, mas o que mais me tocou foi aquele parágrafo onde falas da tua mãe, e das camisolas por ela tricotadas, testemunhas de mãos prendadas que garbosamente mostravas ao mundo. Em tempos também eu fiz camisolas e até calcinhas para o meu filho, mas eram tricotadas à máquina. Teria ele um ano de idade, quando imbuída por um desmedido sentimento de protecção por aquele adorável bebé, tão adorável que o considerava uma dádiva divina e, por isso me perguntava frequentemente o que teria eu feito para merecer tamanha felicidade. Era tal o meu afecto, que desejei criar o meu próprio emprego para não ter necessidade de entregar o meu filho aos cuidados alheios, já que não confiava em ninguém, para mim, é mesmo verdade que quem vê caras não vê corações. Tinha sempre presente, que um bebé é um ser completamente indefeso, basta não saber falar!
Imaginei-me a criar inspirados modelos que venderia por bom dinheiro e, deste modo, teria o meu filho sempre ali, à minha beira. Tirei, portanto, um curso e comprei uma máquina, mas o meu sonho bem depressa se desfez, é que o adorável bebé passava a vida a puxar os fios, a desmanchar as peças, e a exigir atenção e muito colo. Chegou o dia em que tive de mandar o negócio às urtigas, mas entretanto, o bebé já tinha cinco aninhos e já sabia muito bem apontar o dedo, ou seja, falar, caso lhe fizessem mal. Certo é, é que ele gosta de ver as fotos onde está vestido com a roupa que lhe fiz. Especialmente uma, onde não contente com os desvelos que apliquei na confecção de uma camisola ainda lhe estampei com dois gatinhos de tecido. Ele adora aquela foto! São as pequenas coisas, que fazem as grandes histórias da nossa vida.
Já me aconteceu ver um estranho a olhar para mim de boca aberta, mas não deve ter sido por ter ficado ofuscado pela minha beleza, que a não tenho! Terá sido por outro motivo! O fecho das calças aberto não foi, porque eu estou sempre a conferir esse pormenor. :D
Um beijinho

CybeRider disse...

Olá Milu!

A história que gentilmente me deixas leva-me a pensar nas injustiças que terei cometido com as criações da minha mãe, mas deixa-me principalmente o ponto de vista que poderia ter sido o dela. Há sempre outro ponto de vista quando fixamos o olhar em alguém, por isso o nosso olhar é já um relacionamento.

A beleza é algo de intrínseco; são as comparações, os egoísmos, a abundância, a ignorância tantas vezes, que nos turvam as vistas. E se fosse eu, Milu? Talvez fosse, e não seria por teres o fecho aberto, garanto-te! :D


Um beijinho!