quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A feira e o circo

Nasci em plena feira.

Contam-me que tudo era muito caro, apesar de haver brinquedos, farturas e algodão doce, tinha de me contentar com pouco. Nem sempre pude ter os brinquedos que via nos outros meninos. O meu pai era feirante e a minha mãe limpava a tenda e mantinha-nos a logística.

Foi assim durante muitos anos. Tudo funcionava muito bem. Cada feirante visitava as tendas dos outros e pagava para poder ter o que quer que fosse. Havia barracas para tudo, houvesse dinheiro e nada faltaria. A rotação do capital mantinha o sistema. O meu pai pagava pelas farturas, pelos carrinhos de choque, e por algum brinquedo que os trocos sobrantes pudessem comprar. Por sua vez os outros feirantes pagavam pela força de trabalho do meu pai, e assim éramos todos felizes, pelo menos pensávamos que sim. Nesse tempo não havia tantos palhaços nem acrobatas, pelo menos ali na feira. Era tudo gente ordeira e cumpridora, muito ignorantes é certo. A educação também era muito cara, só alguns lhe podiam chegar, e essa era a fundo perdido daí que, pelo retorno invisível a curto-prazo, fosse preterida em benefício da labuta diária. Cresci habituado a ter de comprar bilhete para tudo. Se queria uma volta de carrossel tinha de tirar bilhete, se queria dar um tiro na tenda dos alvos tinha de tirar bilhete, se queria assistir ao espectáculo da mulher barbuda também.

Um dia chegou o circo à feira. Era um adolescente nessa altura, mas ainda me lembro. Todos ficaram muito felizes. As pessoas gritavam, aplaudiam, sei lá...

Nesse dia vi coisas que nunca tinha visto, os meus olhos espantados abriam-se perante a visão de animais exóticos, palhaços multicolores, acrobatas que me pareceram absolutos super-heróis. A princípio foi uma grande confusão, mas com o passar dos dias comecei a perceber que o circo era uma coisa boa. Pagava só um bilhete e tinha acesso a todas aquelas maravilhas. Podia admirar os palhaços, sentado na bancada comum, assustar-me com os ursos e com os leões, apaixonar-me livremente pelas trapezistas, sonhar com as habilidades dos ilusionistas, espantar-me com as manobras arriscadas dos acrobatas.

Mudei-me definitivamente para o circo. Os meus pais também eram admiradores confessos. Mudámo-nos todos. A minha mãe, que antes era responsável pela logística, continuou a sê-lo mas arranjou igualmente um número só dela, também no trapézio. O meu pai era um artista no arame.

Permanecemos assim durante muito tempo. Cresci e tornei-me num saltimbanco multifacetado, palhaço nuns dias, malabarista noutros, menos hábil ilusionista, mas lá tentava a minha sorte. Continuava a pagar bilhete para assistir ao espectáculo, mas era mesmo assim. Todos pagávamos para que todos pudessem assistir. Não havia borlas, mas havia justiça, e de vez em quando tínhamos direito a um algodão doce. Um bilhete, de valor idêntico para todos, dava-nos acesso a todas as diversões. Nada nos era vedado. Foi o mais próximo que estive de um autêntico sentimento de liberdade.

Havia o conforto daquele imenso toldo a proteger-nos da chuva e das intempéries. Deixei de andar com os pés nus e gelados dentro das poças de lama suja.

Um dia disseram-me que tinha de pagar para usar a pista dos carrinhos. Era um estranho, um palhaço, este tinha umas pinturas tenebrosas que não me fizeram rir. Tive medo, ele não era o dono do circo. O circo era nosso. Fiquei muito triste, porque de repente percebi que alguém estava a tentar roubar-nos o circo e acabar com todas as maravilhas que levámos tantos anos a construir. Se vamos começar a pagar por cada coisa de que necessitemos, mais vale que nos tirem já o toldo de cima e me desfaçam as ilusões.


© CybeRider - 2010

11 comentários:

escarlate disse...

isto é o que dá o senhor estar fora uns tempos e nos outros tempos andar eu numa roda viva, agora tive de ler os dois de enfiada e se me pusesse para aqui a comentá-los apanhavam todos uma grande seca e ainda era corrida à pedrada, portanto fico-me só por este
não gosto de circo, sei lá porquê, nunca gostei. em pequena mal falavam em circo chorava baba e ranho que não queria ir, não gostava e eram feios. devia ser a minha fertil imaginação porque dizem-me os progenitores que eu nunca cheguei a ver um. enfim, pancadas cada um tem as suas e essa deve ser a minha.
mas eu até transpunha este texto circense para a história de um certo país e olha que faria muito sentido na minha cabeça... (adiante porque se desato a dissertar sobre esta analogia ainda sou mesmo corrida daqui ou alguém vem cá ler e ainda vou presa)

seja muito bem regressado sr Cyber :) folgo em saber que está bem

CybeRider disse...

Aqui não há cá disso das pedradas, com pedras e assim... Já com uma garrafa de um bom vinho, não garanto que não aconteça.

Mas a tua imaginação, de facto... Olha que essa do tal país... Siiimmmm?... Achas?... Ahhhhhhh, não... Não pode ser...

Obrigado! Só para vos ver por cá já vale a pena. Pena são os humores... E o frio, que não anima...

Mário Rodrigues disse...

Meu bom amigo Cybe,

É como dizes!
Será que todos preferem perder as ilusões de uma vez?
Eu fui ouvindo toda a vida que "mais vale um desengano que passar uma vida enganado!"
Muitas vezes são precisas coragens e vontades. Muitas outras preferimos mansamente ir prescindindo...
Eu acho que tenho coisas que podia prescindir em favor de algumas outras bastante verdadeiras e concretas.

Há palhaçadas, que mesmo estando o circo montado, não se deviam manter.

Um abraço meu amigo

Nilredloh disse...

Caro CyberRyder,

Parabéns, um belo texto profundo e como as cascas de uma cebola, compreensível e totalmente bem conseguido a diferentes profundidades (isto deve ser trauma dos submarinos do Paulo Portas!)

Um abraço, com amizade,

Jorge

Gemini disse...

É verdade, meu amigo, há quanto tempo!

(Fico-me a imaginar o prazer que seria, o sabor que teria uma conversa, daquelas presenciais, com "o culpado"! Mas já agradeço muito o facto de te ter encontrado a escrita! Vir aqui é daqueles vícios que não se curam...

Há espectáculos cuja intenção é iludir a plateia. Mas ao assistimos de livre vontade - e por isso mesmo - sabemos que nos vão tentar "enganar" (o que acaba por defraudar ligeiramente o objectivo, mas faz parte). O que torna curioso o desfecho destes espectáculos, podendo até frustar no final, é se não nos sentirmos enganados! Pode significar incompetência do artista(s), e acabamos por dar como mal empregue o investimento no bilhete e nas despesas associadas ao evento (combustível, portagens, etc.) Teremos alguma responsabilidade por que lhe descobrimos o truque, mas o incompetente será sempre o "artista", foi ele que se colocou a jeito de ser desmascarado... Porém, há os outros "artistas", que sendo incompetentes no papel que se propõem representar, revelam-se mais competentes na arte do engano!

Quanto mais atento penso estar, mais me assalta a sensação de engano... Corrijam-me se estiver.

Cybe, "O" abraço.

CybeRider disse...

Olá Mário!

Tens razão, pelos vistos haverá quem goste de se manter iludido ou mesmo quem prefira a feira ao circo. Mas não foram essas as expectativas que contruí. Continuo a ver a sociedade a brincar à caridade, em vez de dar verdadeiras oportunidades de igualdade aos seus membros. Continuo a não conceber que a utilização da "coisa pública" seja preferencialmente de quem mais possa. Marginalizamos os nossos enquanto auxiliamos outros que infelizmente nada contribuem/iram para o desenvolvimento da nossa comunidade. Avolumam-se injustiças e vejo acabar-se o espectáculo e encerrar-se o pano sem que sinta que vale o bilhete que pago. Talvez não se possa exigir mais enquanto os verdadeiros artistas se exibirem a troco de um prato de sopa.

Um abraço, meu bom amigo

CybeRider disse...

Olá Jorge!

Obrigado. Falas com oportunidade de camadas. Também à sociedade se têm adicionado camadas que já fazem esquecer a génese de um sonho colectivo. Aos submarinos podem acrescentar-se tantas experiências traumáticas, são os blindados do Rui, são os estádios em excesso, e outras grandezas por construir, que são tão bem aceites por uma camada quando outra compreende que nada disso deveria importar enquanto houvesse problemas humanos prementes e poucos recursos para os resolver.


Um forte abraço, bom amigo

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Recordas-me a grande capacidade de encaixe que tens para eventuais e inesperadas desilusões. Tivesse eu alicerces para fundar expectativas de salutar comunicabilidade para além destes parcos escritos...

A montagem do estado social, em que acredito, e que me pareceu a melhor iniciativa desta nação desde a implantação da república, tinha como pressupostos bases de igualdade de direitos comuns a um povo inteiro na afectação dos bens públicos. Não creio que a ideia natural e singela, o princípio, inclua qualquer tipo de engano. No entanto compreendo que os executantes, na defesa dos seus interesses individuais com acesso facilitado pela boa-fé democrática, têm conduzido os ideais de base a uma decadência que não estava presumida no pacote, e que também nos têm instado a acreditar que o sistema é "what you see is what you get", quando na realidade não é. A desculpa da incompetência é mais um capote que lhes serve para ocultar a habilidade exímia com que dominam e minam as ideologias mais puras, sejam elas de que quadrante forem, desde que não se coadunem com o seu profundo oportunismo egocêntrico. Têm o desconchavo de uma fé na populaça ordeira e dominável, que talvez não esteja tão iludida quanto se pensa, mas à qual o próprio sistema retirou por natureza a força da palavra pela vulgarização (já não há palavras perigosas, todas são admitidas e desejadas), mas que pretende por outro lado, este povo, tentar manter os poucos direitos conquistados, um dos quais a paz que os tranquiliza após memórias de guerra enraizadas ainda profundamente no seio da sociedade. Nesta tentativa acabam por não sentir a chegada do opressor sorrateiro que lhes vai limando o que possa.

Este tema levava-nos longe. Prefiro a alegoria, inquieta-me menos.

"O" abraço, Gemini

the dear Zé disse...

meu, acreditas que só agora é que vi que esta coisa finalmente andou?
vou ler os lençóis e já volto.
até já

the dear Zé disse...

é duro quando até se perdem as ilusões
mesmo muito duro

abraço

CybeRider disse...

Olá the dear Zé!

Mas também é duro se as ilusões for tudo o que reste.

Abraço