segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O valor de um amigo

Faltei-lhe ao casamento.

Não, já não foi ontem. Foi há muitos anos.

Ainda me pergunto como fui capaz. Afinal, já nos tínhamos comprado um ao outro com tantas confidências. Pequenos negócios a início, como que a testar a fidelidade entre cliente e fornecedor. Riscos maiores depois, aos poucos, enquanto crescíamos no poder da idade. Tínhamos mesmo investido já, um no outro, algumas vezes a fundo perdido, aquela paciência e atenção que só dedicamos aos melhores. Ambos sabíamos que um bom cliente, como um bom fornecedor merece, de vez em quando, uma atenção.

Escolhemos os amigos como produtos exóticos, ou como bens em segunda mão. Com propriedade, diria. Todas as cautelas são poucas, como se soubéssemos antecipadamente o valor do que estamos prestes a depositar nas suas mãos. Pouco, decerto para muitos; imenso, quando se trata das nossas próprias emoções e sentimentos, ainda que possamos não ter uma justa consciência disso.

Até não gosto particularmente de casamentos. À parte do banquete habitual, pouco há ali que me comova. Quando se trata de um amigo porém, de um dos verdadeiros, daqueles com quem já temos uma larga experiência negocial de trocas e destrocas de atmosferas, aí existe de facto um dever. Pode tratar-se de um momento difícil, encoberto naquela teatralidade de festa e exuberância. Daí que o recorde. Falhei-lhe num momento vital. Não deve ser apenas nos bons momentos, afinal, que o amigo deve estar presente. Nestes, de incerteza, também.

A vida trata de nos suprir, como numa imensa montra, com os potenciais amigos que podemos ter. Nunca nos dá um exórdio que nos diga por onde aquela pessoa passou, se terá defeitos decorrentes de uso prolongado, ou se será eventualmente perniciosa para a nossa integridade após ingestão, como um fruto tropical que nunca tenhamos visto. Daí que o risco possa ser grande, mas haverá algo que nos aproxima, mais um mistério talvez, e que nos leva àquelas trocas em espécie que referi no início. Com a habituação acaba por vir a confiança e a recíproca lealdade.

Recordo-me que envidei todos os esforços para que naquele dia não faltasse. Dizem que não há ninguém insubstituível. Para ele, e para um compromisso profissional inadiável, eu fui insubstituível naquele dia, e optei. Nesse dia o poder do dinheiro falou mais alto e comprou-me por um valor irrisório, em abono de um futuro, por definição sempre incerto.

Compramo-nos e vendemo-nos aos amigos numa potencialmente infindável troca em espécie. Não há dinheiro que possa substituir essa troca. O dinheiro tem no entanto uma estranha capacidade expurgante; quanto mais se recebe mais solitário se fica. Não sendo necessariamente uma contrariedade, não deixa de ser uma condição. Há um equilíbrio ténue e insofismável entre o que podemos ganhar e aquilo a que podemos dar-nos ao luxo de perder em cada arbítrio. 

Encontrámo-nos uma única vez algum tempo mais tarde. Partilhámos uma hora de almoço em que me contou imensas anedotas, em disfarce de tudo o que poderíamos ter dito. Ouvi-o atentamente. Não houve uma troca autêntica, antes uma declaração unilateral de despedida, encoberta pelas piadas que senti com amargura, incapaz de lhe responder, por compreender a profundidade daquela demonstração de superficialidade para mim irreconhecível. Mudou de casa pouco tempo depois, ao que soube.

Não há maior pobreza que não ter senão, e apenas, o dinheiro; mas pior ainda se for pouco.

Apesar disso duvido que no meu lugar ele não tivesse feito a mesma coisa. Teria havido porém uma diferença abissal:

Eu era muito pior que ele a contar anedotas.


© CybeRider - 2010

22 comentários:

alyia disse...

Algo me escapa neste texto... ou então... algo não se conjuga comigo... sei lá...

uma vez escrevi
"Amigo? Amigo é alguém com quem mantenho uma relação muito especial, com características muito próprias. Alguém em quem confio, por quem nutro um imenso carinho, de quem discordo e com quem discuto sem que a proximidade seja abalada, até porque a concordância não é imposta nem exigida, mas o respeito pela diversidade sim, com quem converso mesmo em silêncio, que se afasta fisicamente permanecendo sempre ali, com quem mantenho uma intimidade completamente assexuada porque amigo não é homem nem mulher, é amigo. Tudo o resto, na melhor das hipóteses, será um potencial projecto de amigo."

ou isto:
"e dos Grandes Amigos que podem ser de pequena ou grande estatura, viver do outro lado do mundo, aqueles que estão sempre lá nas horas chatinhas, choram e riem por, para e connosco, fazem qualquer coisa por nós em troca de nada e nunca dizem que são amigos, porque... não precisam dizer!!"

amigo... amigo não precisa estar fisicamente presente, amigo não tem obrigação, amigo não se consegue definir na integra... amigo... é amigo e pronto

ahhhh e não gosto de casamentos! para além de me darem cabo das finanças, são uma grande seca apesar do copo d'água

CybeRider disse...

Olá, minha amiga! :)

Se só fizermos o bem a outrem sem nada esperar em troca poderá ser por idolatria, compaixão, ou simples inocência ou masoquismo.

E isso tanto vale para o que eu faça, como para o que me façam a mim.

Não será amizade. Da mesma forma que paixão não é amor. A reciprocidade é fundamental, ainda que possa ser à "posteriori".

Aqui falei de valor. Sem tirar o brilho às belíssimas palavras que transcreves, não estamos a falar do mesmo.

Não falei da subjectividade desta amizade ter acabado a uma mesa a contar anedotas, ou das vezes que suportámos um do outro portas fechadas nas respectivas caras sob pretexto de querermos ficar sós, que aconteceu (pois, gente doida!). Falo do valor objectivo; e de como o seu preço pode ser tão baixo quanto a troca de um simples dia de trabalho por um compromisso que para alguém poderia ser a segunda presença mais importante, ou tão alto como custar-nos o emprego para satisfazer um capricho de outrem.

E isso sendo indeterminável é, objectivamente, um preço.

O desfecho dependeria da subjectividade de cada um. Ser amigo é também respeitar que esse desfecho possa não ser o que nós lhe daríamos.

alyia disse...

oh Cyber todas as nossas acções (até as nossas intenções, até os nossos pensamentos) têm um preço. a isso também se chama viver. escolher caminhos (nem sempre os melhores), tomar decisões, pesar opções...
uma coisa é certa Cyber, a parte boa que viveram juntos ninguém vos tira e se ficou na memória (na tua pelo menos) já valeu, não?!

CybeRider disse...

Pois... Durante algum tempo ouvi isso e pensava na etiqueta com um valor estipulado, talvez pelo contexto em que o ouvia. Seria mais fácil negar as coisas, dizer que tinha afinal sido um engano. Mas não foi. Por isso não guardo rancor, há coisas que talvez seja melhor acabarem quando não se justifica a sua continuidade, esse imperativo muitas vezes é superior à vontade das partes, de uma ou de ambas, e talvez seja mais genial o primeiro a reconhecê-lo.

Mário Rodrigues disse...

Já há algum tempo escrevi um texto a falar disto. Felizmente para os leitores, poucos o entenderam e nenhuma importância lhe deram, o que na verdade era o que merecia.

Nós, por muito que o tentemos combater, somos tendencialmente e com algum eventual involuntário esquecimento, oportunistas e egoístas; penso mesmo que se trata de uma questão biológica que se prende com o instinto de sobrevivência. Não obstante nem sempre assim é porque fazemos uso do carácter e da educação para os contrariar, mas isso não é garantido.

A tomada de consciência de tal termos feito, é em si um sinal de que na realidade aquela pessoa tinha efectivamente alguma importância para nós, apesar das pseudo explicações "antropo" culturais...

Abraço

Nilredloh disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
CybeRider disse...

Jorge,

Agradeço encarecidamente que me expliques isso em linguagem de gente. Acho que não mereço que faltes ao respeito deste sítio onde sempre foste respeitado. De facto só um estado anormal poderá explicar um disparate desse tamanho.

Aproveito para te esclarecer que este espaço é livre para o bem e para o mal, mas considero que serve principalmente para minha diversão pessoal. A tua, lamento, mas é-me secundária. Essa atitude não me causa qualquer divertimento, pelo que não é de todo desejável. Espero que te retractes e se assim entenderes apagues tu essa alarvidade, que só a ti prejudica. Este é o respeito que neste momento te concedo sem que o mereças, porque estás a repudiar princípios de convivência que estimo.

Obrigado e as melhoras!

CybeRider disse...

Olá Mário!

Epá, és perverso! Já li o Recanto quase todo e não me consigo lembrar... Agora já li o Recanto quase todo e não consigo encontrar. Já puxei tanto pela tola que já tenho uma distensão no pescoço e não consigo chegar lá. Sinto-me culpado pelo que relatas. Sinto-me tolo porque não entendi. Sinto-me menos amigo do que deveria ter sido porque não te pedi que me explicasses, porque não é verdade que o mereças. E agora?...

Talvez o nosso egoísmo provenha de não termos senão os nossos sentidos para compreendermos o mundo. Os dos outros são-nos estranhos, o que faz do egoísmo um estado natural. As apropriações que fazemos são como dizes, algo que precisamos. Para nós queremos tudo, para os outros conseguimos por vezes desejar algumas coisas, muitas das quais não quereríamos para nós.

Queria para mim o teu texto, vou continuar à procura.

Abraço

Mário Rodrigues disse...

Meru mui caríssimo Cybe,

Rejubilo em ver que, desta vez, fui eventualmente mais capaz de explanar o que me passa pelo "sótão". Vejo que reflectes no que eu reflito...

Quanto ao texto é o seguinte:

http://recantodossuricates.blogspot.com/2010/02/proposito.html

Um abraço

Mário Rodrigues disse...

Não é "Meru", mas sim "Meu"

Vez como eu não mereço grande crédito...

CybeRider disse...

Mui ilustre Mário,

Obrigado pelo caminho das pedras! Por vezes apanhamos um atalho e perdem-se pérolas que teriam muita utilidade. Afinal, ali havia muito mais que uma resposta a alguém. Falas dos óbices que nos limitam, eu tentei focar a questão negocial. O Sol é só um e os reflexos acabam por se decompor nas várias cores que formam o feixe de luz, mas este é um apenas a iluminar-nos a todos, meros espelhos a reflectir todos a mesma coisa, as sintonias podem ser apenas coincidências, mas a direcção para onde apontamos o brilho não será.

Não precisavas de ter voltado com o mero... Guardavas isso para uma (grande) almoçarada. Mereces crédito ilimitado, sempre foste muito bom pagador!

Abraço!

Nilredloh disse...

Caro CybeRider...

estou envergonhadissimo... vim aqui espreitar os teus textos... e nao me lembrava de nada, de nada tao brutalmente estupido e ofensivo que tivesse escrito... vim aqui totalmente bebado, com alcool e comprimidos. Peço perdao ao Mario Rodrigues, que teve a grande classe de nem ter perdido tempo de me ligar um tostao furado. Meus caros amigos, perdoem-me, que eu nao sabia o que estava a fazer! Acho que tentei, nas mais tristes condiçoes, ser engraçado. Enfim... peço muita desculpa!

Um abraço com amizade,

Jorge

CybeRider disse...

Olá Jorge!

Não quero falar pelo Mário. Por isso falo por mim.

Depois desta tua nobre atitude, fico arrependido de não ter sido suficientemente teu amigo (que não era) para ter apagado eu próprio aquela barbaridade, mas recordo umas palavras sãs que me deixaste há dias e que se referiam a camadas. Também a amizade as tem. Pelo meu lado removeste uma que poderia ofuscar a ideia que mantive a teu respeito. Nestes dias todos acreditei que o Jorge que "conheço" não é o que me entristeceu com aquela atitude, os links por isso permaneceram (e lamento que o teu email não tenha funcionado, ou teríamos resolvido isto muito mais cedo).

De futuro já saberei que não merecerás a exposição de provas que te embaracem, terei mais cuidado. Pelo meu lado te peço que no dia em que eu proceda no teu sítio de igual forma, saibas também o que terás a fazer.

Um abraço, com (agora mais) amizade.

Nirvana disse...

Ah! Tinha mesmo saudades dos teus textos, Cybe! Já uma vez ou outra não concordei com tudo, eu sei. Desta vez, não sei. Ponho-me no lugar do amigo que esperava o amigo no seu casamento e ficaria desapontada por ele não aparecer. Ponho-me no lugar do amigo que não compareceu e entendo o seu dilema. Cada história tem sempre duas faces, ou não haveria histórias, não é?
A amizade, a meu ver, nem sempre é fácil. Não o sentimento em si, mas a relação com a outra pessoa. Acho que olhamos sempre as coisas sob o nosso ponto de vista, pensamos o que nós teríamos feito se fossemos o outro e nessas situações temos sempre a tendência de assumirmos que faríamos o que deveria ser feito, a atitude considerada correcta. Coisa que nem sempre fazemos quando somos nós o amigo. Passamos a vida a dizer que não somos perfeitos, que ninguém o é, mas quantas vezes exigimos essa perfeição dos outros?
Como dizes, "Há um equilíbrio ténue e insofismável entre o que podemos ganhar e aquilo a que podemos dar-nos ao luxo de perder", mas nem sempre a escolha é uma opção.
Beijinhos, Cybe

Nilredloh disse...

Caro CybeRider,

Muito obrigado!

Um abraço com toda a amizade, do Jorge

Mário Rodrigues disse...

Boas tardes Jorge,

Desculpas me não deves! Se devesses, ter-te-ia contactado em off. Na dita mensagem, e isso é uma virtude dos que estão verdadeiramente, iniciaste com identificação do teu estado. A partir daí, tenho eu obrigação, de ignorar e esperar a tua explicação se tal considerasses. Esperei, consideraste.
Se eventualmente mais quiseres falar, usa o meu mail pessoal.

Um bem-haja e boas festas

Mário Rodrigues

Nilredloh disse...

Ola´ Mario Rodrigues,

o meu muito obrigado.

Os meus votos de Boas Festas e de um Ano Novo com muita Sau´de e Felicidade,

Jorge

CybeRider disse...

Olá Nirvana!
Que não te inquietem as discordâncias, não estou assim tão habituado a elas, são normalmente mornas e decadentes, prefiro as sãs discórdias. A opção é sempre difícil quando não temos de optar entre o melhor e o pior, entre o bem e o mal, entre o bonito e o feio. Há uma diferença fundamental entre os caminhos que traçam a vida que queremos e a vida que nos é permitido viver. A primeira dependerá em muito das escolhas que fazemos entre premissas antagónicas, já a segunda dependerá bastante dos caminhos por que optamos quando não estamos absolutamente seguros do seu desfecho.

Beijinhos, Nirvana

Gemini disse...

E agora Cybe, já lhe descobriste o valor?

Numa simplificação recorrente da amizade assume-se que "o amigo" jamais estará ausente nos maus momentos. Outros dizem isso e um pouco mais; que, "o amigo", "também" aparece para brindar os nossos bons momentos.

Terá esse teu "amigo" tentado, por algum momento, colocar-se no teu lugar? Terá ele tentado avaliar a dor que sentias por não poderes estar presente nesse evento tão especial?
Um Amigo, no lugar dele, teria feito esse exercício. Porém, o egoísmo dele parece ter provado que a tua amizade tinha mais valor e DEVER para com ele, do que a dele para contigo.

Penso que não perdeste um amigo, já ele...

"O" abraço, Cybe.

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Em 1760, Mikhail Lomonosov publicava a sua "Lei da Conservação das Massas", divulgada mais tarde no Ocidente por Lavoisier, ficando conhecida por "Lei de Lavoisier", segundo a qual "Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.". Custar-me-ia tanto limitar por leis a amizade que prefiro importar esse princípio básico dos cientistas para o domínio etéreo dos sentimentos. Nada impede uma coisa de se transformar numa coisa igual, por isso mantenho a esperança. Sei que se conseguir chegar a velho serei surpreendido pelo resultado de muitas transformações que decerto me hão-de mostrar erros que cometi no passado. Até por isso seria errado tecer já juízos de valor de uma coisa que aconteceu há menos de vinte anos. O egoísmo pode ser um defeito grande, mas não impede a amizade, por outro lado, nestes domínios, há poucas perdas unilaterais.

O Abraço, Gemini

Gemini disse...

Ó Cybe, uma coisa que se transforme numa coisa igual, por muito que se não queira, é já outra coisa, pois deixou, de facto, de ser a coisa inicial, ainda que apenas durante o período em que se transforma numa coisa semelhante, mas esse processo de transformação torna-a uma coisa diferente.
E se uma amizade com o desfecho que descreveste se transformasse na mesma amizade, imagino-a passível de fracassar perante cenário semelhante, e por isso condenada.

É do "nosso amigo" que devemos compreender o facto de ele nos faltar ao casamento, não de um conhecido que nos peça desculpa por não poder ir e nós aceitamos prontamente. Um conhecido não sofrerá com a ausência na "nossa boda", um amigo sofrerá, em última análise, porque sabe que estamos a sofrer com a ausência dele.

É a superação de situações destas que destingue os amigos dos conhecidos.

Abraço, Cybe.

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Há coisas que por diferentes que se tornem produzem os mesmos resultados, em muitos casos são os resultados que contam. Quem me repudia por não me aceitar como sou não perde a minha amizade, terá eventualmente caminho a percorrer, ou talvez tenha eu. Poderá perdê-la se violar princípios que defendo que o afastem da pessoa que considero, mas isso é outra coisa. Por isso te falo da potencial velhice, se até lá ele me bater à porta recebê-lo-ei de braços abertos, ou pode ser que em velho perceba eu erros que possa ter cometido. Do que ele terá sentido não sei, posso apenas imaginar, mas estás certo quanto ao que sinto até hoje, embora não me possa refugiar num pretensa hipótese de ter tomado decisão diversa; teria colocado muito em risco, tanto que até a mim me custa perceber, por isso só posso perdoar-lhe o erro em que incorreu por me ter eventualmente avaliado de forma errónea, e continuar a ser seu amigo, apesar de desconhecer o seu paradeiro.

Abraço, Gemini