Estávamos em 1967.
Um Verão escaldante. O Chico dos retratos tinha o cavalo de cartão pintado e a máquina de fole para caçar veraneantes e eu era um dos putos que descalços esvoaçavam entre os calhaus da terra batida que formava a zona de acesso à praia da Caparica. Tisnados como tições, por passarmos ali as manhãs como lagartos, divertíamo-nos entre banhos com correrias, gritarias ou a dar chutos na bola. Não sabíamos jogar à bola; brincávamos à bola, que não é a mesma coisa. Um dos putos que brincava comigo era o filho do cabo-de-mar de serviço à praia naquele dia. Recordo o momento como se fosse hoje e até do nome dele me lembro, mas evito a menção porque agora, ao fim de quase quarenta e sete anos, já lhe posso perdoar. O referido agente aproximou-se de nós quando eu mostrava um tesouro aos meus amigos, um pedaço de papel amarrotado que me retirou suavemente das mãos. Um cromo do Eusébio, que me tinha saído, se bem recordo, num rebuçado; no tempo em que os rebuçados davam cromos. Olhou para o cromo e para mim e com um sorriso malicioso perguntou-me que raio de maricas era eu para andar com uma fotografia de um homem enfiada nos calções. Perante a chacota dos outros mariolas resolvi conter o "cabrão" que nos saía com facilidade, talvez com receio da chapada que não se faria esperar e, furioso, arranquei-lhe o papel das mãos.
A vergonha não durou tanto que não andássemos dali a pouco aos pontapés à bola outra vez, mas as palavras nunca as esqueci. Não me chamaram maricas muito mais vezes, ao longo dos anos fui trocando o cromo do Eusébio por fotos de namoradas, e ele deixou de jogar à bola, coisa que eu nunca cheguei a aprender. Mas de quando em vez, lá aparecia o Eusébio na televisão e lá me lembrava daquele fatídico dia em que tinha sido maricas por andar com uma fotografia do meu ídolo na algibeira. Talvez por isso não idolatrei muito mais ícones pela vida fora. Talvez também porque não conheci ao meu primeiro ídolo outras referências, que as teria, mas também por sentir que o Eusébio valeu por si próprio, como eu gostaria de valer por mim. Aprendi assim a viver com essa mariquice, essa e a de me comover com a grandiosidade das coisas mais simples.
Por isso tenho dado por mim surpreendido com alguma comoção que tenho sentido ao ouvir as palavras mais simples nos testemunhos dos amigos do Eusébio. Talvez mariquices dum país em que, de tanto nos fazermos fortes, aguentamos como titãs outras coisas de que qualquer maricas se queixaria em pranto.
Há um Eusébio em cada português, menos ágil, mas ainda assim campeão de resistência à adversidade.
Hoje porém a maioria é de maricas como eu.
© CybeRider - 2014
4 comentários:
esqueci-me do comentário ó meu deus
Não reparei nisso.
Eu ainda sou do tempo em que havia um fotógrafo com um cavalo de madeira, ou talvez fosse outra figura, a memória já me falha, e com uma máquina pousada num tripé. A mim (ou aos meus pais!), nunca me caçou.
Também sou do tempo dos cromos, mas o ícone do momento era o Futre, e maricas era quem não fazia a colecção! :))))
As crianças conseguem ser bem cruéis, mesmo que não haja intenção do acto, com aquilo que dizem. Por vezes, a culpa não é delas, mas dos adultos que lhes transmitem o viver. Daí que, talvez o filho do cabo do mar se tivesse limitado a repetir o que ouvia, sem pensar...
Olá, João! Ainda bem que vieste. O meu recomeço por aqui é ainda mais incerto, mas é sempre um grato prazer "ver" os amigos.
Eram de facto outros tempos. Muitas vezes a violência passava para além das palavras. As explicações eram poucas, os actos tinham de valer por si. Até ser maricas era um defeito com que se ofendia, hoje é feitio. Houve muitas evoluções positivas que, sendo pequenas, dão esperança. Muita civilidade tivemos de aprender sozinhos.
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