in memoriam, 28/8/1934 - 15/11/2019
A minha mãe tinha um gato.
Era um gato especial porque lhe fora oferecido. Eu nunca tinha visto um gato oferecido que não fosse de loiça. Este era de carne e osso. Igual a qualquer outro naquela sua individualidade. Os gatos são individualmente iguais a quaisquer outros, como nós, afinal. Para a minha mãe, eu e o gato, éramos também iguais a quaisquer outros, filhos ou gatos, que pudesse ter tido. E ela nunca teve outro filho, mas gatos teve muitos. Amou-nos a todos à sua maneira, tal como a amámos a ela, à nossa.
Um dia ligou-me muito aflita porque lhe morrera a gata que lhe sobrara. E ela tivera muitas, até ter ficado para sempre sozinha com aquela. Restara-lhe do companheiro com quem vivera, derradeiramente, dez anos. Antes tinham tido em coabitação vários gatos, mas ele morreu-lhe à mesa da sala de jantar e ela ficou só, com a gata. Quando ele morreu não foi a minha mãe que me ligou, foi uma amiga. Ouvi-a em fundo, dolorosamente em pranto, à medida que a amiga me ia relatando como os serviços de emergência médica não o tinham podido salvar. Caíra fulminado, e ali ficou, estendido no tapete, durante horas. Arrepiou-me.
Quando a gata morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi a tantos quilómetros de distância. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dela, da minha única mãe. Foi a amiga do relato quem lhe ofereceu o gato. Quem, em seu perfeito juízo, oferece um gato quase novo, para sempre, a uma senhora idosa que mal dá conta de si? Uma amiga, claro.
A minha mãe ficou só, com o gato. O único filho partira para sempre de casa há mais de trinta anos e vivia a muitos quilómetros, sem lhe poder acudir.
Quando a minha mãe morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dele, do gato. Quando nos vimos não sabíamos que iríamos ter de ficar um com o outro, para sempre. Eu era alérgico a gatos e ele, calculo, que não soubesse se seria alérgico a mim. Para ele, ela saiu e voltei eu, que ele nunca vira. Para mim, ela saiu e voltei eu, que nunca o tinha visto.
Agora tenho um gato, mas a minha mãe, que me teve mas que já quase não me tinha, não tenho eu. Fiquei assim órfão para sempre, já quase velhinho. É natural que nem o gato nem eu fiquemos um com o outro por mais outra metade de uma vida, da minha se tivermos muito tempo, da dele se a ceifeira vier com mais pressa para levar um ou outro. Mas ficaremos juntos para sempre, assim como mães e filhos se têm, ainda que à distância de muitos quilómetros.
Como é efémero o sempre, tal qual o ter das coisas.
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