sexta-feira, 4 de fevereiro de 2022

Reencontro

Texto agraciado com o 2º prémio do Concurso Literário Elviro da Rocha Gomes, na modalidade de prosa, promovido pela União de Freguesias de Faro em 02/02/2022


Acordou tarde.

Enfiou os chinelos e foi a arrastar os pés, ainda sonolento, até ao lavatório. O velho do costume ali estava, a mirá-lo de frente, com o pijama em desalinho, os olhos remelosos, um fio de baba ao canto da boca. O olhar entre o mortiço e o reprovador. Tornara-se num estranho, apesar de se terem conhecido há quase setenta anos, quando aquela imagem era a de uma criança, a imitar que fazia a barba, com a espuma do pincel do pai.

Foi até à cozinha. Faltava já a poesia, não havia a música, nem das que acompanham o enredo nos filmes mais tristes, nem outra que se pusesse a tocar no rádio. A vida não vem com música de fundo e a que criara sempre tivera um propósito, a derradeira peça tinha-a dedicado também, como todas as que escrevera em mais de quarenta anos. A partitura ainda amarelecia, pousada no piano empoeirado ao canto da sala, como naquele dia em que ficara só.

O passado, eram farrapos espalhados em pequenos objectos dissimulados na mobília e repartidos no pensamento. Os sonhos, que tinha abandonado na almofada, há muito que tinham deixado de tentar prever o futuro. Quando se esfuma a esperança a alma alimenta-se de memórias, até nos sonhos. As mais queridas estavam no peito, como um punhal a trespassar, constante, impiedoso.

Os dois filhos eram agora telefonemas ocasionais e convites alternados pelo Natal. O apartamento, antes pequeno, tornara-se gigantesco, com a solidão e o silêncio insinuantes atrás de cada porta, grotescos, tenebrosos.

O chá e as torradas encheram o ar de um aroma repetido, aconchegante, pelo que tinha de seguro, em desafio à incerteza da saúde precária suspensa de comprimidos. Placebos, pensava ele.

Com a chávena a aquentar a palma da mão aproximou-se da janela. O habitual formigueiro multicolor lá estava, ali não tinha amigos, todos naquele quadro lhe eram desconhecidos e ele também desconhecido de todos, irreversivelmente.

A sua perpétua misantropia tinha-o deixado naufragado numa pequena ilha, que pairava num oceano de águas calmas, de onde poucos o tinham ocasionalmente conseguido retirar. A maioria tinha-o esquecido, uns levados pela vida, outros pela morte. Haverá pior morte que a do esquecimento? Pensou.

Joana... Enquanto lhe acariciava a mão imaginária. Que falta me fazes. E, sem que saibas, ainda aqui te espero, mais que à luz no horizonte, mesmo acreditando que não podes voltar. Também tu me esqueceste, ou já me terias levado para o teu lado.

Entardeceu. Está frio. Ele acende a lareira, senta-se e pega no álbum de fotos, como costuma fazer a tentar acelerar o tempo que não passa. Estão ali as viagens que fez com ela. Só ele sabe o antes e o depois de cada uma daquelas imagens; momentos que desfilam para além do que vê. Mais ninguém pode compor cada passo desses caminhos, ou a razão de cada sorriso sincero que ali ficou retido. És linda, Joana, para sempre.

Não reparou que se esquecera de abrir a ventilação. O fumo aumentara na sala e quando tentou abrir os olhos ainda a viu, a estender-lhe a mão...

- Joana, és tu!



© Direitos cedidos à União de Freguesias de Faro

terça-feira, 9 de março de 2021

O GATO

in memoriam, 28/8/1934 - 15/11/2019


A minha mãe tinha um gato.

Era um gato especial porque lhe fora oferecido. Eu nunca tinha visto um gato oferecido que não fosse de loiça. Este era de carne e osso. Igual a qualquer outro naquela sua individualidade. Os gatos são individualmente iguais a quaisquer outros, como nós, afinal. Para a minha mãe, eu e o gato, éramos também iguais a quaisquer outros, filhos ou gatos, que pudesse ter tido. E ela nunca teve outro filho, mas gatos teve muitos. Amou-nos a todos à sua maneira, tal como a amámos a ela, à nossa.

Um dia ligou-me muito aflita porque lhe morrera a gata que lhe sobrara. E ela tivera muitas, até ter ficado para sempre sozinha com aquela. Restara-lhe do companheiro com quem vivera, derradeiramente, dez anos. Antes tinham tido em coabitação vários gatos, mas ele morreu-lhe à mesa da sala de jantar e ela ficou só, com a gata. Quando ele morreu não foi a minha mãe que me ligou, foi uma amiga. Ouvi-a em fundo, dolorosamente em pranto, à medida que a amiga me ia relatando como os serviços de emergência médica não o tinham podido salvar. Caíra fulminado, e ali ficou, estendido no tapete, durante horas. Arrepiou-me.

Quando a gata morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi a tantos quilómetros de distância. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dela, da minha única mãe. Foi a amiga do relato quem lhe ofereceu o gato. Quem, em seu perfeito juízo, oferece um gato quase novo, para sempre, a uma senhora idosa que mal dá conta de si? Uma amiga, claro.

A minha mãe ficou só, com o gato. O único filho partira para sempre de casa há mais de trinta anos e vivia a muitos quilómetros, sem lhe poder acudir.

Quando a minha mãe morreu, de velhinha, fui eu que lhe acudi. Só acudimos aos vivos, por isso não deve gerar confusão que a frase seja acerca dele, do gato. Quando nos vimos não sabíamos que iríamos ter de ficar um com o outro, para sempre. Eu era alérgico a gatos e ele, calculo, que não soubesse se seria alérgico a mim. Para ele, ela saiu e voltei eu, que ele nunca vira. Para mim, ela saiu e voltei eu, que nunca o tinha visto.

Agora tenho um gato, mas a minha mãe, que me teve mas que já quase não me tinha, não tenho eu. Fiquei assim órfão para sempre, já quase velhinho. É natural que nem o gato nem eu fiquemos um com o outro por mais outra metade de uma vida, da minha se tivermos muito tempo, da dele se a ceifeira vier com mais pressa para levar um ou outro. Mas ficaremos juntos para sempre, assim como mães e filhos se têm, ainda que à distância de muitos quilómetros.

Como é efémero o sempre, tal qual o ter das coisas.


© CybeRider 2021

segunda-feira, 1 de março de 2021

M U R R A Ç A

O tema da violência doméstica que tem vindo a ser debatido com frequência nos media quase diariamente traz-me a este raciocínio pelo facto de não conseguir encontrar um paralelismo entre os profundos e fecundos debates, discursos e campanhas, e a necessária execução de medidas preventivas por parte das entidades competentes pela sua tutela. Vivemos há muitos anos numa sociedade que se quer do primeiro mundo, num estado de direito que deve zelar primeiro pelos direitos e garantias fundamentais dos seus cidadãos e só depois por quaisquer outros interesses que se justifiquem de relevo para uma putativa imagem internacional.

As queixas de violência doméstica apresentadas às autoridades nacionais rondam as trinta mil por ano, com um número sempre determinado mas potencialmente imprevisível de vítimas mortais. As sequelas psicológicas e sociais são, muitas vezes, irreversíveis.   

O confinamento, que tem sido apontado como causa de incremento da violência familiar, inclusivamente pela Senhora Ministra da Justiça, recentemente, nos meios de difusão correntes, não justifica a enérgica contemplação nem a violenta ataraxia com que permitimos que este flagelo se mantenha. Algo tem de ser feito e podemos começar por coisas muito elementares.

Não passo de mero espectador neste cenário dantesco, mas recordo a retirada dos anúncios do tabaco e das bebidas brancas dos ecrãs dos canais generalistas, sob o pretexto de que matavam enquanto por outro lado vejo manter os anúncios de várias novelas que, não seguindo, incomodam nos momentos em que, pelo meio de tanta publicidade que chego a esquecer que programa estava a ver, sou confrontado com a gritaria e cenas de pugilato com que se procura recordar mais um episódio de cada uma dessas historietas de faca e alguidar aos seus estimados consumidores.

Repugna a hipocrisia com que se deixa passar este triste circunstancialismo, seja a que horas for e sem respeito nem pelo escalão etário do telespectador, nem pelos princípios fundamentais de civilidade e dos mais elementares valores que deveriam enformar a nossa sociedade. É uma vergonha!

Já nem discuto a natureza dos programas em si mas refiro que, a ser tal que outros exemplos não haja para propagandear a sua difusão que não seja sempre a gritaria, a choradeira, o sopapo ou o estrangulamento e a facada, então estamos muito mal. Não creio que seja um retrato digno da sociedade portuguesa, mas creio que é a imagem que se vai interiorizando nos recantos ínfimos da mente humana, e assim envenenando o que pretendemos preservar, ao ponto de se acreditar que essa é a via de resolução normal de todos e quaisquer problemas. A permissibilidade deste triste espectáculo num dos principais observatórios da realidade social, ainda que de forma pontual, ou talvez até por isso mesmo, é de uma tremenda irresponsabilidade.

De nada servem as mesas redondas e os belos discursos enfatuados, de causar brilharete, quando se permite nas representações do real tudo aquilo que caracteriza as vilezas do mais confrangedor terceiro-mundismo. Antes de vítimas da violência no seio familiar, são-no de quem permite que estas práticas e costumes se exemplifiquem continuadamente no dia-a-dia sem restrições.

Deixo a ideia, à reflexão de quem saiba ou possa actuar. Pelo meio de tanta entidade preocupada não encontrei ainda a forma nem o meio de fazer chegar a quem de direito a minha opinião mas vou continuar, pela minha sanidade mental, a procurar. 


© CybeRider 2021

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Anamnese decadente


As memórias são como convivas duma festa.

Das pessoas, umas, depois do convívio, aparecem de mão estendida ou dão-me dois beijos na cara, outras partem sem um adeus. Muitas, voltei a vê-las, visitei algumas, outras visitaram-me, outras gostaria de ter visitado ou que me tivessem visitado a mim. Algumas queria não ter voltado a ver, mas voltei. Outras não vi nunca mais.

Exactamente como as memórias. Calculo que cá por dentro andem em festa, as boas e as más, numa frenética orgia indecente. Algumas aparecem e dizem-me que estão prestes a partir, estendo-lhes a mão ou dou-lhes dois beijos na cara, e vão-se. Outras digo-lhes que fiquem, que tomem outro copo; pretexto para encher o meu e beber pelos dois. Depois vão-se e eu fico, a derreter o gelo do copo, com o coração mais quente, ou por vezes mais apertado. Às vezes fico a pensar nelas, se não seria melhor deixar de persegui-las, deixá-las morrer em paz.

Que a partida das memórias é pior que a partida das pessoas de uma festa. As memórias, quando partem de nós, morrem de vez.

Ainda que venham despedir-se, algumas ficam ali pelo jardim, escondidas num arbusto qualquer à espera que me esqueça eu delas, antes de serem elas a esquecer-se de mim. Mas já vi partir algumas que não voltaram. As que me esquecem deixam mágoa, mas das que me esqueço não me lembro.

São feitas de muitas coisas, umas de acontecimentos, outras de rostos e dentes e unhas, pernas e saltos-altos, bengalas e monóculos, ou óculos e expressões. De quantos decotes já me esqueci?... Memoráveis, partiram; sem aviso, sem um adeus, sem dois beijos na cara. Estranho que as refira porque não me recordo delas e no entanto sei que existiram e que as mantive por algum tempo, mas não sei como posso afirmar isto se me morreram de vez. Lábios carnudos, mãos doces e ásperas, algumas a magoar-me os ossos outras prestes ao fanico, queixos enrugados, cabelos longos a esconder formas sedutoras, olhos azuis, castanhos, verdes, negros, vermelhos também, podia jurar que vermelhos também, uns abertos de espanto, outros semicerrados de dúvida, outros de dó, indecentes, uns fechados de riso, outros a afogar-se em lágrimas, umas poucas de alegria mas tantas de tristeza, corpos disformes a ameaçar-me pesadelos, desdentados, implorantes, vozes.

Vozes… e palavras, algumas ameaçam voltar para me assombrar os sonhos. Temo que algumas possam vir sussurrar por detrás de alguma porta. Nesse dia talvez não passe eu de uma simples memória de mim.

As memórias não envelhecem, vão-se dissipando, tornam-se de vívidas a translúcidas sempre com a idade que tinham quando lhes peguei ao colo e se me agarraram ao pescoço, que é sempre assim que se entranham, pelo coração, nunca pela cabeça.

Há as mais negras, tétricas, de sangue e morte. Ali embrulhadas umas naqueloutras mas estas, quando aparecem, vêm sempre sós e avassaladoras. Algumas não vêm para se despedir. Aparecem para me afirmar que ali estarão por mim, de pedra e cal, como algumas pessoas. Garantem que nunca partirão até ao fim dos meus dias, quer eu queira quer não. Curiosamente, no caso das memórias, nem sempre são as que quero que me visitam com esta garantia, são as outras, sempre sarcásticas e traumáticas. Por mais que lhes grite: ide-vos! Ali ficam a atormentar-me, um dia após outro, até que se escondem num qualquer arbusto do jardim. E posso pensar que partiram, mas sei que acabarão por voltar, dessas nem eu me esqueço, nem elas de mim. Quase poderia jurar que quando voltam se avivam, mas sei que sou eu que as agiganto, sem dar por isso faço-as crescer ao meu tamanho, depois espero pelos dois beijos na cara, mas dão-me um soco e derrubam-me. Fico para ali caído a esbracejar ou agarrado às tripas a tentar fazer delas coração. E quanto mais coração, mais lembranças a saltar-me ao pescoço.

Já não sei se as memórias são pessoas ou se as pessoas não passam afinal de memórias que, a mal ou bem, passam pela festa e, umas de mão estendida outras com dois beijos na cara, ou não, desaparecem um dia misteriosamente e sem rasto.

E as de mim?

Há sempre um sabor agridoce, que sinto, em cada memória de mim.

© CybeRider 2015

sexta-feira, 12 de junho de 2015

O retorno do Messias


Quando voltou, quase dois mil anos depois da primeira vez, já não se lembrava de quem tinha sido. Veio em carne, de uma mãe e de um pai. Não trazia planos escritos nem instruções programadas. Voltou para alertar as gentes de que nunca haveria um deus que lhes perdoasse os pecados. Ele jamais o faria.

Cedo, para se integrar na espécie, se alimentou dos animais que amou e das plantas, como qualquer humano comum. Não trouxe sinais distintivos nem nome que o identificasse. Não foi especial, porque veio sozinho sem pretensões de comando. Desde tenra idade conheceu a paixão e viu que isso era bom.

Aprendeu a comunicar com uma linguagem que nunca conheceu completamente em nenhuma das suas variantes. Nenhuma correspondia totalmente à que tinha em si, por isso a sua tarefa seria tão mais árdua. Também cedo compreendeu que tudo o que dispunha era de uma parca e vulnerável humanidade. A única diferença que trouxe dos outros mortais foi a sua própria individualidade. Tentou confirmar se outros teriam uma, em muitos casos chegou a pensar que não.

Com tão poucos poderes nunca reconheceu ter salvado alguém, nem permitiu que alguém se recordasse de por ele ter sido salvo. Não pôde por isso curar os doentes, nem dar a conhecer que tivesse alguma vez semeado o bem à sua volta. Chorou muitas vezes sozinho perante as suas incapacidades; nas poucas em que se permitiu fazê-lo em público foi por coisas triviais. Nunca contou ao mundo que aquilo a que chamam galáxias são o imenso público que, sem crítica, pena ou aplauso por qualquer hipotética glória, assiste ao improviso que decorre neste pequeno palco esférico e azul.

Não trazia consigo promessas de imortalidade ou de paz porque não eram sua intenção. Para os compreender cometeu heresias contra si e contra os falsos deuses panfletários, os únicos propalados, e também algumas pequenas violações às leis dos homens, talvez, que são complexas as leis dos homens. Acabou por se tornar quase tão humano como eles. O mal e o bem, por conceitos terrenos já muito debatidos, não lhe ocupavam de sobremaneira o pensamento, aprendeu-os à laia humana de forma a praticá-los ou evitá-los como era corrente ver fazer. Tentou sempre evitar acto que envergonhasse eternamente a humanidade pois que esta lhe pertencia. Cumpriu este desígnio com determinação apesar de constatar que os seus, agora congéneres, não tinham muitas vezes esse cuidado.

Cedo também comprovou a falibilidade das suas forças. Repudiado desde criança por não ser um ás nos desportos, e por padecer das doenças comuns dos mortais pela natureza que o trouxe, nunca esperou reconhecimento nem pediu lições ou directivas aos céus, porque o único pai que teve era de carne e osso.

A primeira recordação que tinha da frágil compleição da sua estrutura física para cumprir os desígnios da sua mente, aconteceu por volta dos seus catorze anos. A necessidade do relato seguinte justifica-se por ter sido um marco que o acompanhou toda a vida e que lhe ensinou o arrependimento:

Por essa altura já ele amara platonicamente outras crianças como ele, sem que alguma vez o tivesse expressado ou tivesse sido correspondido. Amélia era uma criança doce, pacata e de trato fácil, vestia de forma convencional e a sua voz, maviosa e segura, contrastava com o semblante tímido injustificado, por ser dona de uma beleza invulgar. Ela teria a idade dele num corpo de mulher feita. Ele sempre se furtara a perceber a maneira carinhosa com que aqueles belos olhos negros o envolviam, assim como o sorriso especial que ela lhe dedicava quando por vezes lhe dirigia algumas palavras tímidas. Um dia porém, encontrava-se ela na presença de outras amigas, por alturas do intervalo das práticas mundanas do templo, numa sala apinhada de outros praticantes como eles, quando ele ia a passar por Amélia ela sorriu-lhe daquela maneira singular à qual ele correspondia, mais por simpatia que por interesse. Num gesto arrojado que Amélia terá forçado contra a sua habitual sobriedade, ela resolveu em tom de brincadeira, e talvez para criar entre ambos um efeito de proximidade, atingi-lo com um pontapé no traseiro. Perante o gesto imprevisível, a reacção dele, impulsionada pela presença da vasta audiência, foi explosiva. Ao ver que o seu braço se libertara, tentou sem sucesso conter o movimento elástico com que a sua mão, para seu desespero, se abateu na face da única criança que declaradamente até então o amara, como só naquele instante ele percebeu, sem ter alguma vez sido correspondida. Pesaram-lhe para sempre as lágrimas que de imediato brotaram dos olhos de Amélia, mais pelo sabor amargo da injustiça que da dor, bem como a memória da sensação gélida que subitamente lhe acometeu o peito. Quedaram-se alguns segundos em silêncio, olhos nos olhos, e nunca voltaram a trocar uma palavra desde aí.

Foi também por essa altura que confessou a seu pai o desprezo que trazia pelos bens materiais, sem que alguma vez aquele tivesse compreendido a sua atitude. Essa posição, que lamentou algumas vezes por tudo o que o impediu de fazer pelos seus poucos discípulos, levou-o a um destino por vezes frugal que acentuou a forma imperceptível como passou pela humanidade. Desde o início compreendeu que a sua vinda fora de novo um infeliz desperdício, perante a ignomínia que encontrou e a incapacidade de meios para propagar a sua doutrina.

E foi por isso que na fase inicial da sua adolescência conheceu o ódio, ao culpar pai e mãe pelo seu regresso, que invariavelmente lhe custaria a morte física, que olhava como qualquer humano com respeito, por constituir o limite derradeiro desta sua nova acção no mundo. Aprendeu a seu tempo a amadurecer as emoções. Compreendeu por fim que os seus pais carnais, meros receptáculos do poder divino, pouco tinham afinal a ver com o seu aparecimento de cuja culpa era ele o único titular.

Anos mais tarde, numa experimentação singular, resolveu unir a sua à vida de uma mulher, limitando desta forma a vida de alguém terreno à pouca exuberância da sua de natureza sobre-humana. Conseguiu, entre outros, o milagre de que ela nunca o culpasse por isso. Cedeu a vícios dos comuns mortais, mais em desafio à vida que pelo desconhecimento de malefícios. Desta forma estabeleceu os seus próprios limites aos excessos por ter verificado que as diversas formas de prazer rapidamente o seduziam.

Dos outros milagres que realizou, há relato de ter deixado um descendente, fruto de ter conhecido em sentido bíblico, para compreensão do conceito. Por uma ocasião terá transformado o vinho em água.

O estranho episódio carece de explanação mais cuidada. Tenhamos em mente que as crenças dos homens, têm como cânone de pureza divina o exemplo de um acólito, versado em empirismos e presente na terra em momento simultâneo à sua primeira estada, que teria em dada ocasião transformado água em vinho; acto reprovável, conhecidos que são os efeitos que as drogas produzem na mente humana, levando os sujeitos aos actos mais tresloucados.

O milagre que se relata aconteceu por volta dos seus cinquenta e três anos de idade e não teve testemunhas conscientes que o possam comprovar. Por ocasião de um farto banquete que um seu discípulo se propôs ofertar-lhe, que consistiu em três travessas de enguias fritas, uma de choquinhos, acompanhadas de outras duas de batatas fritas e uma de salada, tudo isto para duas pessoas, quis a má sorte que ao servir a última das cinco garrafas de vinho, quatro de verde e uma de tinto, o precioso líquido sanguíneo tenha gotejado em abundância nas suas calças. Perante o riso do discípulo e do dono da casa de pasto que chegou a referir que o discípulo teria de ressarcir pela peça estragada, ele, ciente do mau agouro que aquele facto lhe traria ao ambiente doméstico, terá passado os dedos sobre as nódoas sem que um ou outro dos presentes notasse, tendo-as feito milagrosamente desaparecer. Pelo que se diz não há testemunha que o ateste, sendo que as calças, que ainda existem, facilmente o comprovam.

Consta que deixou pequenos e esparsos relatos escritos ao longo da sua existência, que muito poucos leram e menos criticaram, desconhecendo-se o actual paradeiro destes valiosos documentos. Sabe-se que num neles afirmava que perante o niilismo pandémico que grassa na mente humana não lhe restará outra solução que não seja regressar dentro de dois mil anos, já que tal como da primeira vez, quando foi confundido com o outro que lhe roubou todo o protagonismo, também esta tentativa foi um rotundo insucesso.

Do seu destino sabe-se muito pouco, não sendo descabido afirmar que possa ainda vaguear entre nós.



© CybeRider 2015

segunda-feira, 25 de maio de 2015

Espelho d'alma

Por duas vezes, duas, no espaço de um mês, sou confrontado com um maluco a atravessar a passadeira no momento em que o semáforo abre para mim, nem o mesmo maluco, nem a mesma passadeira, na minha cidade. Por duas vezes, duas, fico parado à espera que cada maluco atravesse. Tenho pressa, a vida é muito curta e sei que o tempo se pode acabar aqui, por isso ninguém tem, ninguém pode ter, mais pressa que eu, só deus se quiser salvar uma vida, matar um leproso ou um órfão faminto, por compaixão. Penso que podia ser eu um daqueles malucos se ficar um bocadinho, só um bocadinho, mais maluco, talvez já ali à frente, no próximo cruzamento que tenha um semáforo, não o mesmo, outro, que aquele já está ocupado por deus que me espera. Se me demorar mais um pouco encontro-o, ou ele a mim. Sei que, se me demorar mais um segundo morro, aposto que morro. O outro maluco babava, arrastava os pés, inclinado para a frente num ângulo impossível, o olhar vazio em frente, não me viu. Este desenhava corações no ar, enquanto falava com os pássaros numa linguagem que só eles entendiam, olhou-me como se eu fosse um pássaro, mas não falou para mim. Voei pela janela e peguei-lhe numa mão, para que andasse mais depressa puxei-o com força, antes que as forças me faltassem e desfalecesse. Deus. ao fundo, gritava-me que não o puxasse, que me castigaria matando dois pássaros. Por duas vezes, duas, o motorista atrás de mim, nem sempre o mesmo, e verifiquei bem que não era o mesmo, que ainda me lembro bem do outro, tanto quanto me lembro bem deste, buzina e dirige-me impropérios, nem sempre os mesmos... Não temo mafarricos, pois se só deus tem o poder de matar os pássaros. Ainda tenho calma, nem sempre a mesma, mas ainda tenho esse nível de maluquice. De cada vez acabo por avançar, depois de cada maluco a salvo, e fico a pensar que afinal o maluco sou eu, talvez nem sempre o mesmo, mas sou eu decerto. Naquele minuto precioso fico mais perto do próximo semáforo, onde deus me aguarda em silêncio. O semáforo está vermelho, paro. Ele continua ali de pé. Só eu o vejo, porque sei que ali está por mim. Olha-me como se eu fosse um pássaro e por momentos fico curioso em ouvir as batidas do meu coração, não ouço. Talvez tenha ficado lá atrás, transplantado no último mafarrico, que falta lhe teria feito poder ter o meu coração. Quis ali e além ser um polícia, cheio de galões e medalhas, e ter um cassetete de borracha muito longo e um outro de aço, mais curto, para que todas as minhas crianças e as deles me vissem ali e além ganhar o próximo semáforo, logo ali à frente. Mas não sou e o meu coração não o ofereço sem que me dêem provas de que o merecem. O semáforo abre e Ele começa a atravessar pela passadeira. Sou o primeiro da fila. Carrego no acelerador a fundo e passo-Lhe por cima, ainda motivado pelo som estridente da última buzina e pela memória da outra, e com todos os impropérios ainda presentes. Presto assim um serviço à humanidade, para consolo de todos os que me seguiam na fila. Foi esse o último dia em que alguém morreu na terra.

© CybeRider 2015

Espelho d'aço

Por duas vezes, duas, no espaço de um mês, sou confrontado com um maluco a atravessar a passadeira no momento em que o semáforo abre para mim, nem o mesmo maluco, nem a mesma passadeira, na minha cidade. Por duas vezes, duas, fico parado à espera que cada maluco atravesse. Tenho pressa, a vida é muito curta e sei que o tempo se pode acabar aqui. Penso que podia ser eu um daqueles malucos se ficar um bocadinho, só um bocadinho, mais maluco, talvez já ali à frente, no próximo cruzamento que tenha um semáforo, não o mesmo, outro, que aquele já está ocupado. O outro maluco babava, arrastava os pés, inclinado para a frente num ângulo impossível, o olhar vazio em frente, não me viu. Este desenhava corações no ar, enquanto falava com os pássaros numa linguagem que só eles entendiam, olhou-me como se eu fosse um pássaro, mas não falou para mim. Por duas vezes, duas, o motorista atrás de mim, nem sempre o mesmo, e verifiquei bem que não era o mesmo, que ainda me lembro bem do outro, tanto quanto me lembro bem deste, buzina e dirige-me impropérios, nem sempre os mesmos... Ainda tenho calma, nem sempre a mesma, mas ainda tenho esse nível de maluquice. De cada vez acabo por avançar, depois de cada maluco a salvo, e fico a pensar que afinal o maluco sou eu, talvez nem sempre o mesmo, mas sou eu decerto. Quis ali e além ser um polícia, cheio de galões e medalhas, e ter um cassetete de borracha muito longo e um outro de aço, mais curto, para que todas as minhas crianças e as deles me vissem ali e além ganhar o próximo semáforo, logo ali à frente.

© CybeRider 2015