Por duas vezes, duas, no espaço de um mês, sou confrontado com um maluco a atravessar a passadeira no momento em que o semáforo abre para mim, nem o mesmo maluco, nem a mesma passadeira, na minha cidade. Por duas vezes, duas, fico parado à espera que cada maluco atravesse. Tenho pressa, a vida é muito curta e sei que o tempo se pode acabar aqui, por isso ninguém tem, ninguém pode ter, mais pressa que eu, só deus se quiser salvar uma vida, matar um leproso ou um órfão faminto, por compaixão. Penso que podia ser eu um daqueles malucos se ficar um bocadinho, só um bocadinho, mais maluco, talvez já ali à frente, no próximo cruzamento que tenha um semáforo, não o mesmo, outro, que aquele já está ocupado por deus que me espera. Se me demorar mais um pouco encontro-o, ou ele a mim. Sei que, se me demorar mais um segundo morro, aposto que morro. O outro maluco babava, arrastava os pés, inclinado para a frente num ângulo impossível, o olhar vazio em frente, não me viu. Este desenhava corações no ar, enquanto falava com os pássaros numa linguagem que só eles entendiam, olhou-me como se eu fosse um pássaro, mas não falou para mim. Voei pela janela e peguei-lhe numa mão, para que andasse mais depressa puxei-o com força, antes que as forças me faltassem e desfalecesse. Deus. ao fundo, gritava-me que não o puxasse, que me castigaria matando dois pássaros. Por duas vezes, duas, o motorista atrás de mim, nem sempre o mesmo, e verifiquei bem que não era o mesmo, que ainda me lembro bem do outro, tanto quanto me lembro bem deste, buzina e dirige-me impropérios, nem sempre os mesmos... Não temo mafarricos, pois se só deus tem o poder de matar os pássaros. Ainda tenho calma, nem sempre a mesma, mas ainda tenho esse nível de maluquice. De cada vez acabo por avançar, depois de cada maluco a salvo, e fico a pensar que afinal o maluco sou eu, talvez nem sempre o mesmo, mas sou eu decerto. Naquele minuto precioso fico mais perto do próximo semáforo, onde deus me aguarda em silêncio. O semáforo está vermelho, paro. Ele continua ali de pé. Só eu o vejo, porque sei que ali está por mim. Olha-me como se eu fosse um pássaro e por momentos fico curioso em ouvir as batidas do meu coração, não ouço. Talvez tenha ficado lá atrás, transplantado no último mafarrico, que falta lhe teria feito poder ter o meu coração. Quis ali e além ser um polícia, cheio de galões e medalhas, e ter um cassetete de borracha muito longo e um outro de aço, mais curto, para que todas as minhas crianças e as deles me vissem ali e além ganhar o próximo semáforo, logo ali à frente. Mas não sou e o meu coração não o ofereço sem que me dêem provas de que o merecem. O semáforo abre e Ele começa a atravessar pela passadeira. Sou o primeiro da fila. Carrego no acelerador a fundo e passo-Lhe por cima, ainda motivado pelo som estridente da última buzina e pela memória da outra, e com todos os impropérios ainda presentes. Presto assim um serviço à humanidade, para consolo de todos os que me seguiam na fila. Foi esse o último dia em que alguém morreu na terra.
© CybeRider 2015
2 comentários:
fáquingue gude
De facto ri-me duas vezes, duas.
Abraço :-)
Enviar um comentário