terça-feira, 27 de outubro de 2009

Um jardim no paraíso

Quem quer saber sobre o jardim onde passeio?

Já vos falei da rapariga do fato de treino rosa? Sim, bem me parecia… Mas não vos falei do coreto, nem do rio maravilhoso que se avista cheio de barquinhos de papel, ou não, talvez papel ainda grosso em toros de madeira bruta, a aguardar que a imaginação os lamine. Só vendo de mais perto.

O laguinho com peixes dourados e cágados; pois, com acento, para acentuar a diferença. Os cágados, assim acentuados, são pequenas tartarugas que espreitam entre os nenúfares e que se escondem de timidez ao menor movimento. Quando a água do lago está limpa pode-se vê-los a desaparecer num nadar bamboleante para se esconderem nas rochas do fundo, perante a indiferença dos grandes peixes dourados. A água filtra a imagem dando-nos a sensação de que tudo é bem maior. Os grandes peixes são afinal bastante mais pequenos, mas como poderei explicar de que tamanho são os peixes? Digamos que ficariam mal num tacho de caldeirada mas preencheriam a rigor uma caixa de filetes enlatados, tirando a cabeça e as barbatanas, seria isso.

Ainda sou do tempo… Que sou, de facto. De todos os tempos, mas recordo quando o coreto se enchia de musica e  a turba se acotovelava, adomingada, para escutar as melodias fanhosas que emanavam dos metais. Não me consta que os peixes ou os cágados, assim com acento pois claro, espreitassem entre os nenúfares. Só nós, ficávamos ali impávidos a olhar, com as cabeças de fora, sem chegarmos às copas das frondosas árvores que sombreavam a calçada e as flores surdas.

Não vos falei das fieiras de casinhas brancas, oitocentistas com telhados de quatro águas, que circundam o jardim, nem da forma intensa como a sua cor branca salteada de amarelo tende a subverter o anil da água do rio que ali já é do mar. Nem dos cães, nem das aves que pousam nas tais árvores de copas inalcançáveis, que subvertem o passeio e os fatos imaculados dos que escutam a banda do coreto; os cágados, assim com acento, ficam serenos perante os cágados sem assento, que a pé se besuntam com os dejectos dos cães, vadios mas gentis e independentes, e se maculam pelas aves que os escolhem à minúcia para lhes tingir as vestes. Nem dos assentos raros, onde as mães trocam as fraldas, sujas sem acento, dos bebés que choram a reclamar do tal som fanhoso que emana dos tais metais, nem do exalado aroma, imperceptível pelo perfume que paira das corolas expostas aos domingos de Primavera.


Hoje passei pelo jardim onde o coreto alimenta as pequenas ervas que brotam do lajedo onde os sapatos dos músicos costumavam marcar o compasso. Não há peixes no laguinho, foram substituídos por pacotes de tons metálicos, já sem batatas. Os cágados teriam assento, porque ninguém se senta nos banquinhos do jardim. E o aroma é do peixe grelhado.

À porta do restaurante daquela rua antiga vejo-as a grelhar, as sardinhas gordas que encheriam uma lata, sem a cabeça nem as barbatanas. E fico a pensar se não serão afinal aquelas sardinhas douradas os peixinhos que me levaram do laguinho do meu jardim. 


© CybeRider - 2009

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Quando a fama me vem de longe

Maria Madalena tinha reputação de rameira.

E não é fácil manter uma reputação por dois mil anos. Ao fim desse tempo começou a ter a fama de ser companheira de Cristo, o grande pensador, que reuniu a seu lado doze discípulos, os iluminados que o ouviam atentamente nas divagações, em desprestígio dos iletrados que constituam mero comprovativo de popularidade. Filho de um humilde carpinteiro, não terá também sido fácil ao pai vê-lo deambular pelas ruas, ser perseguido pelas suas ideias que, segundo os relatos, pregava e que também a ele valeram uma reputação, com seguidores até aos nossos dias.

Mas não é de fé que hoje falo. É a reputação em si que me interessa. De onde nos vem a fama imprevista? Que motivos nos levam a pretender manter uma reputação para além das nossas convicções?

Quantas vezes as nossas atitudes mal interpretadas nos designam consequências que nunca pensámos carregar?

Se não me espanta que nos queiramos livrar de certa mácula que passou a público no nosso passado, já me espanta que recorramos a uma pretensa reputação que defendemos para não aderir ao apoio de alguma ideia válida à qual, não fora a reputação, aderiríamos sem hesitar.

O conceito de reputação é ambivalente. Se nos desconcerta quando nos mancha a imagem por ser falsamente acusatória de algo indigno, por outro lado pode ser um trunfo a exibir se for falsa mas abonatória de qualidades que nem temos.

A reputação é o juízo que fazem do que somos. Como tal, sempre imperfeito. Apesar disso, insistimos em defender a que supomos ser boa, aquela que nos abre as portas de certo clube a que desejamos pertencer, mas que não nos aceitaria pelo que somos, apenas pelo que parecemos ser. Por este facto nego-me a aceitar qualquer tipo de reputação como ferramenta. Ainda quando me abrem portas por pretensa reputação, teimo em apresentar provas de que encaixo no convite. Este simples facto deixa-me liberdade para aderir a tudo o que pretenda e conviver com quem queira, sem receio de ferir susceptibilidades. Não sou eu que tenho de me cercear para que o clube me aceite. É o clube que tem de me aceitar exactamente como sou, se assim não for não me serve, sem que sequer questione se servirei eu ao tal clube.

Na diluição social a que a complexidade da vida nos remete, somos levados a puxar de galões virtuais para nos defendermos do desconhecido. Se sempre me baterei pela defesa das injustiças que me cometam, não me revejo numa realidade em que me tenha de suster num conceito ambíguo e falacioso para justificar as minhas convicções, no intuito de daí obter dividendos.

Não pretendo contribuir para a elaboração de algum tipo de reputação digna. Ainda que seja um perfeito canalha, sê-lo-ei seguindo os meus próprios princípios.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Os contos sem dono

Ao olhar para o que escrevi no passado, compreendo que nunca podemos saber até que ponto o que registamos num momento vai, se é que vai, tocar alguém.

Olho para aquilo e parece que foi escrito por outrem. Muitos dos conceitos que afagavam as palavras sei que os perdi, talvez para sempre. Falta-lhes a envolvência com o meu âmago, que talvez só exista no preciso momento em que exponho o que me vai na alma. E no entanto a caligrafia é minha, o caderno também.

E fico a cismar se não terei sido de facto outra pessoa, de que já não recordo a essência, mas que deixou coisas escritas, para eu ler. Talvez numa época antiga em que sei que estive, porém com méritos e fraquezas que entretanto perdi.

Demoro a convencer-me. De repente, compreendo que não sou o meu autor favorito e perco alguma confiança na minha habilidade. Nunca poderei voltar a escrever daquela maneira, as ideias, algumas aparentemente fantásticas, que volto a abraçar com um sorriso. Perderam a força genética para sempre, já não chegam de fio a pavio.

Comprovo que ganhei experiência, mas verifico que perdi qualidades. Este reconhecimento assusta, porque lhe sinto a irreversibilidade. Perdi muito do brilho aventureiro e vanguardista que encobria o temor de inovar.

Algumas ideias atemorizam-me ainda por já não ter memória daquele vilão. Outras apaixonam-me e fazem-me querer conhecer a alma por detrás do pensamento, mas já não a encontro.

Pensamentos que escrevi, contos que imaginei, soltaram-se da minha alçada e partiram para um horizonte a perder de vista. É como se ficassem para ali, sem dono. Até que me reconquistem o coração e os volte a chamar meus.

Por vezes as coisas resultam mesmo assim. Não lhes falta o fundamental. Mesmo algumas ideias conexas surgem renascidas, outras não. Extraem-se novas interpretações, novas críticas, novas paisagens. As cores, sendo outras, estão lá, mas o quadro já não é o mesmo, e não mudou apenas a moldura... É o enquadramento da obra, e as personagens, sempre dinâmicas...

É como rever um filme de que se gosta, uma e outra vez. Nunca se vê o mesmo filme da mesma maneira, nem quando já se conhecem os diálogos de cor. Há sempre um pormenor que surge, em que não tínhamos reparado. Os filmes de que não gostamos é que é pior, mesmo assim só me recordo de ter abandonado uma sala uma vez. Esforço-me. Nem sempre consigo, mas esforço-me.

Há vezes em que reconheço a pouca qualidade do que realizei. Noutras acabo por encontrar ali qualidades que desconheço. Raramente...

Nestes devaneios sou levado a pensar que não haverá talvez maior injúria para o criador que a crítica pelo infinitésimo.

Custa-me olhar para uma pintura, e aqui o abstracto ou não é logo por si muito relativo, e dizer apenas que tem umas belas cores. Haverá algo mais redutor?...

Ou admirar uma fotografia e dizer simplesmente que tem uma boa escolha de tons, um belo contraste. Sou até capaz de o ter feito. Talvez quando não conheço o autor e não apreendo a ideia à primeira. Depois disso não. Por uma questão de respeito prefiro ultrapassar essa fase e tentar compreender a ideia para além da imagem. Ligá-la pelo menos ao meu mundo, e dizer de que forma me toca. Ou apreender algo de novo, se possível. Se não tenho tempo ou imaginação para ver mais que o imediato, mais vale ficar calado que tratar o artista como se fosse aprendiz.

Que a experiência do fotógrafo, do escritor, do pintor, do músico, devem ser garantias de que a técnica não é o fundamental, antes o resultado. O maior ou menor cuidado na técnica dependem do perfeccionismo de cada um, e podem obviamente restringir muito esse resultado final. No entanto não deve ser a crítica a esses pormenores que o artista espera ao expor a sua obra.

Se sorrio porque alguém disse que escrevi bem. Sou muito capaz de chorar de alegria se compreenderam o que quis dizer.

Afirmo-o num libertino e egoísta tom de alerta. Revejo-me em muita crítica minimalista. Mas todos estamos no mundo atentos a reacções. Assim, faço-me rir ou faço-me chorar. Quando escrevo nunca me sou indiferente.

E sei que haverá quem se surpreenda com isto.

Mas a obra vale por si. Se não me compreendo hoje, quem sabe, talvez amanhã.




© CybeRider - 2009

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Anatomia do beijo

Há os húmidos; os secos; os repenicados; os apaixonados, os que gostariam de o ser; os de carinho; os respeitosos; os consoladores; os terapêuticos; os indecorosos; os consentidos; os fingidos; os repudiados; os roubados; os glamorosos; os decadentes...

Tantos... E tão poucos.

E se o sentido que têm pode ser vasto, a forma não o será menos. Se os lábios põem na prática o que a mente já arquitectou, muitas vezes é a língua que lhes dá o vigor para iniciar a orquestra dos sentidos.

Mas isso já sabem... Já todos sabem. Porque hei-de vir aqui perder-me em conceitos que toda a gente conhece?... Que asco!...

Ah! Há os que doem...

Que os há! Já ouvi dizer. Há os que sabemos derradeiros, de alguém que parte para sempre, por vezes até para melhor. Partir para melhor... Esta expressão que me causa estranheza. Como se ao quebrar a loiça lhe amplificasse a qualidade. E, no entanto, às vezes que bem sabe!...

E os que dão nos mortos? É estranho que se beijem os mortos... É um beijo para nosso consolo, que eles não sentem... E apesar disso...

Mas adiante, que são os vivos que escrevem História.

Como é o último beijo de quem se separa para sempre, depois de uma relação profunda e cúmplice. Falo daquelas verdadeiras; que sensação vibra em quem sabe que aquele é o último? Quantas vezes de alívio, outras tantas de receio. E pensa-se nisso? Pensa-se que será "aquele" "o último"?... Melhor quem não saiba, diria eu; se soubesse...

Não sei.

Sei que, por grande que seja o alívio, terá de doer um pouco; pelo que não se construiu mas que comprovadamente se destrói. E vem aquela réstia que nos cheira a liberdade. "Finalmente só". Só, inseguro; carente; às vezes. Perdido, mais vezes; diria eu, como disse que diria outras coisas, que afinal não sei. Mas outras vezes apenas saciado, sem vontade de mais.

E que "saciado" pode ser menos que "carente" também não sei. Mas disse-o, se o disse é porque o penso, se o penso é porque o acho. Acho... Um tesouro, mais um. Escondido... Penso... Num beijo; que nunca se chegará a dar, aquele que ficará para sempre pendente, depois do derradeiro. Aquele que esperámos repetir um dia mas que se afundou na esperança. A esperança, essa tal que morre, também ela, sempre solitária.

E dói, mais que nenhum, o beijo do nosso filho; o que aquela senhora bem vestida limpa da face com o pequeno toalhete, sem notar que reparamos... E esse, sei que dói. E talvez doa como nenhum outro. E há-de doer para sempre, porque não lhe é avó mas me é madrasta.

E porque a vingança se apura em tacho frio, ou num mero beijo que se não dá... Há mortos que nunca hei-de beijar; porque não podem limpar, depois, o meu beijo da face pútrida.



© CybeRider - 2009

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Alma de campeão

É raro...

Melhor... É muito raro ver alguém fazer peito à violência, que grassa, com atitudes de bravura individual. Vemos sim todos a escudar-se institucionalmente, mas a assumir exemplos de clara fraqueza na situação concreta, algumas vezes com razoabilidade mas em muitos momentos nem por isso, com que se deparam no dia-a-dia.

Não falo do confronto com meliantes, mas mesmo de atitudes mais mundanas, e principalmente da violência psicológica que nos asfixia.

Não é necessário medirmo-nos à pancada. É mesmo da postura que não se assume que falo, e que consequentemente nos enfraquece.

Nesta mariquice em que se vai tornando a vida colectiva, no super proteccionismo que procuramos de um Estado que não nos conhece mas que queremos, a saber porquê, uma mãe; na timidez que se assume como norma quando é preciso intervir, devíamos apelar mais ao nosso lado biológico de animais com capacidades de defesa, que ainda existam intrínsecas ao nosso ser, e que deveriam estar aptas a surgir quando as institucionais falhassem.

Não somos decerto super-heróis, mas ajudava lembrarmo-nos de que a forma física não devia servir só para cultivar aparência. Deveríamos estar aptos a mostrar que não somos lesmas indefesas prontas a que nos esmaguem com o sapato.

A falta de atitude interventiva torna-nos na vítima potencial, pronta a ser predada pelas feras argutas, e mesmo pelas acéfalas. Não cultivamos a aura que as faria olhar-nos de soslaio e temer pelas consequências de nos obstruírem o caminho. Assim somos como meras ovelhas indefesas face à matilha de lobos, em que só o número de potenciais vítimas no rebanho as pode salvar; pelo facto de, na escolha dos lobos, a sorte caber a algumas em detrimento de alguma sua irmã que será devorada. Esta forma de defesa não é digna de quem se encontra no topo da cadeia alimentar. Envergonha-nos na biologia.

Tivéssemos algum brio, não na imagem mas na essência, e haveria menos barrigudos. Fisicamente mais aptos ficaríamos mentalmente mais sãos. Consequentemente mais auto confiantes, em sequência mais altruístas.

Não estamos apenas a engordar fisicamente. É também a gordura moral que nos vai tolhendo os movimentos, roubando aos poucos a agilidade mental que nos tornaria mais aptos a colher direitos e mais prontos a executar deveres. E tantas vezes vemos direitos a ser exigidos sem que se pense na contrapartida...

E a tenacidade? Pelo contrário! Quebramos à mais pequena adversidade. Sem capacidade argumentativa para ripostar à altura, principalmente por falta de robustez.

Mimados, é o que estamos. Pensamos que merecemos um doce só porque pretensamente nos portamos bem. Mas os lobos crescem em tamanho e em número, e levam-nos a razão, os direitos e o prémio.


Devíamos ter um bocadinho mais de alma de campeão.





© CybeRider - 2009