sábado, 28 de fevereiro de 2009

O aquário

Dou mais uma volta, agacho-me, ponho outra pedra na boca.

Há outros. Andam por aqui, às voltas, como eu.

Vermelhos, azuis, verdes, a maioria cinzentos - bolas... Acho que não posso falar das cores, ainda alguém diz que não gosto deles, que me considero... - grandes, pequenos. (Cuspi a pedra.)

É tudo tão bonito lá fora! Aqui andamos todos às turras. À espera que a comida, como de costume, nos caia do céu; hoje ainda não veio. Tem havido atrasos... Mas quando cai fica tudo bem. É um "fartar vilanagem". Nunca como muito. Fico com digestões difíceis. Mas gosto de ver os comilões, encher o bandulho, pode ser que assim não me comam a mim.

Acho que andamos todos com vontade de saltar pela borda. Mas só de pensar nisso parece que me falta logo o ar.

(Ponho outra pedra na boca...)

Olha! Um tubarão frade... Estes é que a levam na boa. São tão grandes que nada lhes toca. Nadam por aqui, às voltas, como quem quer formar um cardume, mas acabam por nadar sozinhos na sua magnificência. Não adianta esperarmos ajuda. Aquele corpanzil dá-lhes pouca agilidade. Há quem diga que são inofensivos. Acho que consomem muito oxigénio. (Volto a cuspir a pedra). Ouvi relatar casos de cardumes em transe por terem ficado com pouco oxigénio no cérebro.

Têm cá aparecido muitos peixes-palhaço. Esses é que ainda vão animando isto com o seu colorido. (Lá estou eu com as cores...) Dá gosto vê-los, às corridas, aos saltos, enquanto a comida não chega.

Invejo o peixe-lua. Feio e lentinho, não se importa com coisa nenhuma. Fica ali a meia-água, abrindo e fechando a boca. Sem se queixar, sem comentar...

Espantam-me os atuns. A velocidades incríveis. Cardumes maciços que voam por aqui sem olhar a pormenores. Batem sempre no vidro, mas continuam a correr, malucos, como se nada fosse.

Têm cá posto também muitos peixes-escorpião; demasiados. Têm um veneno muito intenso. Podem paralisar-nos em segundos. Há que nadar mais ao largo... Não fazer muitas ondas, até porque se as fizermos entornamos o resto da água e ninguém se safa, que já vai havendo pouca.

Olho para o céu, logo ali a centímetros. Tão prateado... Parece uma folha de alumínio. Se calhar é...

Vou até ao vidro. Por vezes vêm aqui dar pancadas, como se pensassem que podemos sair. Ou para brincarem connosco... Parecem dizer que lá fora é melhor. Não sei... Nunca lá estive. As pancadas fazem-me dor de cabeça. De resto, tenho medo que me falte o ar...

Vou até ao fundo. Está sujo... Não nos limpam isto, nem mudam o areão. Como é que se pode viver nesta pocilga? Alguns de nós é suposto comerem a porcaria dos outros. Não sou desses especialistas, limito-me a olhar enojado. Até quando?...

Um dia destes ainda descruzo as barbatanas. Vão ver!

Amanhã!

Se vierem os tubarões-martelo, pode ser que com umas marteladas...


(Ponho outra pedra na boca...)


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O melhor do Mundo

Deve ser uma sensação e tanto!

Acho sobretudo que para chegar lá é preciso estar bem preparado.

Estamos demasiado habituados à mediocridade, ao mediano. Temos sempre termos de comparação para a esquerda e para a direita e para cima e para baixo.

O melhor perde esses azimutes.

Depois de se ser o melhor só se pode decair, o que é uma sensação má. Resta-nos viver na melancolia das recordações, polir as medalhas, contar as proezas aos netos e ganhar umas curvas de cintura.

Mesmo o mais egocêntrico dos mortais não passa sem esses paralelismos. Olha o mundo à sua volta e estabelece os seus padrões. Diferente é ser "O Padrão".

Há de facto uma coisa em que sou o melhor do Mundo. Claro que tinha que me vangloriar, não é fácil carregar este peso. Confesso sem modéstia que sou o melhor do Mundo a ser eu próprio.

Qual Cristiano Ronaldo? Qual Michael Phelps e as suas brocas? Ninguém conseguiria viver comigo como eu. Aprecio como ninguém o bem-estar dos copos que bebo e saro como me apraz as mazelas dos trambolhões que consequentemente dou.

É nesta medida que posso avaliar o que sente um verdadeiro campeão. A luta diária por manter a pontuação, o tiro certeiro em cada prova, o pisar do travão na curva certa, as lágrimas dos piores momentos, o cortar da meta em primeiro lugar -mesmo que não tenha conseguido alcançar os outros concorrentes- é que mesmo aí, na recta final, ninguém se deixa ultrapassar por mim como eu próprio.

E as tolices que me vejo a fazer para conseguir chegar onde chego... Ah! Tantas coisas para contar...

Garanto que se todos me considerarem uma desgraça, ainda assim, ninguém se sentirá mais desgraçado do que eu.

Mas vibro em cada campeonato. Com medo constante que alguém ouse tirar-me os louros e me faça sentir a inveja de saber que esse alguém seria um "eu" muito melhor, com os meus defeitos, as minhas limitações, as minhas parvoíces. E ganhar a medalha por isso...


Agora que estou lá, só me falta mesmo encarar a minha decadência. Não é fácil, digo-vos.


© CybeRider - 2009

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Os seus documentos por favor

Não critico as profissões alheias. Se são pagas acredito que façam falta, e pronto.

Chego a perceber que alguém queira de facto vir a ser polícia, para além dos sonhos de infância. É como ter um carro de bombeiros na garagem, ou vestir-se de mulher nas horas vagas.

Não partilho destas taras, terei outras, mas compreendo-as.

Quanto às profissões, são muitas vezes uma questão de oportunidade, ou falta de imaginação, mais do que escolhas. Destas imposições resultam diversas incapacidades, é também um facto; destes factos somados resultará talvez a maioria das críticas transversais à nossa sociedade.

A imagem negativa que temos da polícia é normalmente a de um bando de tecnocratas ou opressores que se limitam a fazer-nos a vida negra por "dá cá aquela palha". Esta relega qualquer ideia positiva que também sabemos, no entanto, que existe.

O que deveras me preocupa é a minha própria reacção à figura fardada que, colocando-se alarvemente à minha frente, no meio da estrada, me interrompe momentos de puro prazer ou labuta, de braço esticado e me faz encostar.

Penso logo: "- Isto não vai correr bem!" - e normalmente não corre...

Ou passei o radar que não vi numa zona de 50 a meio de um descampado; ou acaba por me descobrir a falta do selo novo do seguro que deixei no porta-luvas quando o recebi por não ter estado ainda válido para colar no vidro; ou atendi a porra do telemóvel porque aquele cliente que me paga dois ou três salários por ano à empresa não é de deixar à espera.

O facto de ser um pecador inveterado não deveria no entanto justificar a grande repulsa que sinto daqueles momentos. Por isso resolvi ir mais fundo. Não sou um criminoso porque tenho carro, penso em abono dos bons costumes e crença ingénua nos cânones sociais. Os pecadilhos que cometo não me irão deixar sem pão na mesa; não chegam a isso. O que será então?

Que força misteriosa me faz pisar o travão a fundo e gastar um centímetro de pneu cada vez que detecto o tal carro civil mal disfarçado na berma, mesmo que vá a cem à hora numa zona de noventa? Se prevarico não devo pagar?

Nunca fiquei feliz por ser parado pela polícia. Talvez na mesma medida em que não ficarei por ser parado por um ladrão. Aquele, de abordagem muitas vezes atabalhoada e confusa detém o poder de me privar de coisas que aprecio, tal como o outro.

O ladrão porém fá-lo sem injustiça, é o caçador que procura a presa que por acaso podemos ser nós. Temo-o tanto como ao leão que se puder me arranca um braço. Da mesma forma, não lhe reconheço racionalidade nem espero compaixão; talvez sobreviva se o conseguir saciar. É perigoso, por circular dissimulado à nossa volta, mas é também uma força selvagem que não controlamos.

Com o polícia a coisa é diferente. Reconheço-lhe racionalidade, em certa medida. Mas sei que o poder que lhe é conferido não visa o meu perdão por algo que, sem afectar ninguém, violou uma norma escondida num calhamaço qualquer que não li e que até pode mudar amanhã. Sei que vou pagar o primeiro pequeno erro como se fosse o enésimo. O pequeno "fora de prazo" com dias de trabalho árduo para repor o que me tirar.

Fico dividido, entre confiar na entidade que me deveria proteger, ou fugir do tirano que me oprime e que me pode privar da minha liberdade se lhe faltar ao conceito, ainda que pessoal, que ele tenha de "respeito". Que acontece, caso eu tente apelar a um eventual bom senso.

E sei também que ou é isso ou cinco anos de tribunal.

Acabei de escrever isto e resta-me concluir que, se o fiz, é porque gosto da Polícia.

Redimido, estou a pensar seriamente apresentar-me todos os dias na esquadra e, em confissão, explicar as minhas acções, ainda que as encontre inocentes, e pagar livremente um "X" por todos os desaires que me mostrem ter cometido.

Assim, sim! Vou tornar-me um cidadão exemplar! Afinal o segredo é simples:

- É tudo uma questão de dinheiro! Se o entregarmos à polícia já os ladrões não o levam.



© CybeRider - 2009

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Net rápida

A Teia

Começou por um fio
E uniu um com outro
Dois pontos do vazio

A frio teceu e viu
Soltar a rede que cresceu
Sem as amuras do navio

Puxou de fio a pavio
Esticou cada filamento
Tudo num corrupio

Cada canto ela mediu
Com precisão geométrica
Quase a causar arrepio

E eis que por fim surgiu
A armadilha mortal
Que a aranha construiu

Mas dessa besta fatal
Nasceu para grande espanto
Uma forma afinal
De manter em cada canto
Cada presa dessa teia
A tocar outra que tal
© CybeRider - 2009

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

O burro avariado

Ia a travessar Olhão, deparei-me com uma fila de trânsito. Pouco comum aquela hora.

O castanho da pelagem contrastava com o negro do alcatrão.


O animal cigano jazia imóvel. O dono, a polícia, os passantes, olhavam incrédulos.


Não é como no National Geographic, nem quando os leões os comem. Aqui toca-nos a alma. Estamos mais habituados a ver a divindade ressuscitadora das mãos humanas que a morte de um animal de tracção assim na rua.


Ficou deslocado. Como num engano. Era um adereço de outra cena, talvez de uma planície alentejana, nunca da cidade. A realidade a mostrar-nos o surreal de Dali. O píncaro da esquizofrenia.


Já fiquei com um carro avariado na estrada, nunca com um burro. Há de facto muitas coisas para as quais não estaríamos preparados se se nos acabasse a tecnologia. Bastantes tão fundamentais que a nossa própria sobrevivência estaria em causa.


Coisas banais para os nossos avós são-nos herméticas. Coisas que a humanidade tinha como seguras e fundamentais há milhares de anos hoje desapareceram nas brumas do tempo.


O meu bisavô talvez tivesse sabido lidar com o animal avariado. Naquele tempo os transeuntes não olhariam com tal estranheza o acontecimento; lamentariam a sorte do homem, não a do burro. A estrada não seria negra de alcatrão. A sombra não seria de um prédio de vários pisos, talvez de uma alfarrobeira. A polícia não teria comparecido, até por não ter tido o telefone a tocar; mas se passasse seria a cavalo ou de bicicleta.

Hoje, ali, todos pareciam perdidos.



Quanto ao dono do burro, ainda me questiono se teria direito a veículo de substituição.



© CybeRider - 2009

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Estupidez não é essência

Inteligência

Ser inteligente é ser
Como toda a gente.
Nem mais nem menos diferente
Do homem que planta sozinho
Uma árvore no caminho
Para depois colher os frutos,
Que revolve os calhaus brutos,
Deles faz brotar a vida
Como quem cria um filho
E consegue pôr-lhe um brilho no olhar
E transmitir-lhe a medida indefinida
Da felicidade por chegar.

É olhar de frente e dizer.
Apontar sem fugir.
Ser humilde e dar,
E tolerar.
E fazer acontecer o que
Conseguimos dentro de nós
Realizar.

Ser inteligente é ser
O animal que quer viver
E conhecer.
Vencer e convencer sem derrubar.
Deixar algo de bom
Para alguém recordar.

É a conquista
Sem derrotar ninguém.
É acreditar no que se alcança
Ao ensinar a uma criança
O que acreditamos ser bem.
E nunca baixar os braços.
Manter
As convicções que nos enformam,
Mesmo que soframos o escárnio
Daqueles que nos ignoram.

Ser inteligente é ser
Feliz só por viver
E viver para poder ser
Feliz por viver
Mesmo onde ninguém quis.

Ser inteligente é ser.
© CybeRider - 2009

domingo, 22 de fevereiro de 2009

Pesadelo horrível

Dei por mim rodeado de polícias. Tinham-me apanhado em flagrante delito a retirar notas falsas de uma máquina multibanco. Haverá crime mais hediondo?

O facto de as notas de 5 serem cor-de-rosa e as de 500 serem verdes indiciavam à partida uma marosca que não apreendi; era tudo um ardil. Não estranhei nem a presença das de valor mais alto, mas recordei uma coisa sobre os meus sonhos: são definitivamente a cores.

Por algum motivo a máquina avariada debitava notas pela inclusão de uma sequência banal de dígitos. Se bem me conheço, após o gáudio daquele enriquecimento sem justa causa, restava-me ligar aos serviços do banco e devolver a maquia que não era minha por mérito. Mas fui apanhado antes de provar as minhas intenções e acordei assim que destrincei as incongruências.

Juntar "notas falsas" e "multibanco" num sentido de proveito próprio, coloca-me à partida no topo de uma lista de marginais a quem a sociedade passa a cuspir na cara se lhe derem azo a isso. Não importa se o multibanco é algo que todos utilizemos no dia a dia e que as notas falsas nos possam vir parar às mãos no troco mais inocente. Se isto chega a notícia sou logo lapidado em público.

Assim como juntar "Charles Smith" à palavra "arguido" o torna de imediato num dos malandros mais execráveis. Para mim é, por enquanto, apenas um sujeito que ficou a dever quinhentos paus (eram mesmo escudos, há quinze anos, ou mais) a um amigo meu. O Mundo é mesmo um laguinho de patos.



Nem de propósito o telefone toca. A polícia está junto ao meu carro... Mau...

Afinal tinha deixado a janela aberta ontem à noite. Antes isso...

Tinham recebido um telefonema. Que mistério... Como eu estava em pijama, foram-se embora. O carro lá ficou mais uma hora... De janela aberta.

Há pouco tempo podia deixar as chaves à fechadura da porta de casa que ninguém assumiria isso como um caso de polícia. Isto agora do carro é logo um acontecimento. Um carro de janela aberta, bem estacionado há algumas horas... Ai, ai... Que excentricidade!

Ainda por cima ninguém me pôs nada lá dentro; ao menos o valor que me sonegaram os polícias do sonho, mas não.

Vá lá que não era um descapotável senão vinha nas notícias. Já vejo as parangonas: "Carro estacionado sem capota em zona habitacional".

Mas a realidade é assim. Mistura-se com as nossas fantasias, por vezes com uma oportunidade assustadora. Quando é ao contrário somos malucos. Assim, se não formos provavelmente ficamos.


© CybeRider - 2009

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Sonho de um cosmopolita

ALDEIA SERRANA

Há uma terriola
Onde os telhados são musgosos;
A água caldosa;
As pessoas rugosas;
As pedras barrentas;
O Sol macilento;
As sombras mortiças;
Os carreiros tortuosos;
A Igreja sertaneja;
Os sinos brejeiros;
As candeias oleosas;
As cabras maltesas;
Havia também meninos,
Muitos, pequeninos,
Passarinhos...
© CybeRider - 2009

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

A relatividade do absoluto

Não suporto que me digam: "Tenho a certeza absoluta!"

Essa panaceia de ansiedades é para mim uma tormenta de aflição.

Olho para o meu saco de certezas e só encontro relativas.

Uma certeza absoluta está para as minhas convicções como o euromilhões para a minha carteira, e acho também que as hipóteses de algum dia vir a ter uma ou outro são as mesmas.

Para mim chega-me ter certezas; estou sempre disposto a avaliar a sua precisão e faço-o com frequência. As absolutas é que são uma chatice; com este epíteto deixam de ser passíveis de verificação, de pertencer ao reino do questionável, para se tornarem em dogmas que nos subjugam.

"-Ah! Mas as relativas não são certezas" dirão os puristas.

Pois as minhas são!

E justifico-as das dúvidas razoáveis com o seguinte argumento:

Uma dúvida razoável é algo efectivamente parecido com uma certeza relativa, enquanto aquela porém padece de um menor grau de verificabilidade e elementos de prova, esta é facilmente comprovável; embora na maioria das vezes nem precise de o ser pela sua evidência.

Assim, tenho a certeza relativa de que a minha morte é certa. Mas tenho a dúvida razoável de que tal venha a acontecer. Se por um lado é fácil de provar que a minha morte é certa, bastando para isso pôr um baraço ao pescoço e demonstrá-lo, por outro gostaria que alguém me apresentasse provas concretas de que cá ficarei para sempre.

Assim são as minhas certezas. E nesta medida, sempre que ouço alguém afirmar que tem a certeza absoluta de alguma coisa sinto que há coisas na vida que estão destinadas a bafejar alguns mas às quais o acesso me está incondicionalmente vedado.

Sinto-me vilipendiado nos meus direitos. Atingido na minha sanidade mental.

Por isso persigo, por vezes com bastante determinação, algumas certezas absolutas chegando nalgumas dessas aventuras a sucessos incontestáveis.


Tenho a certeza que hoje me chamo António, até que ponto com os acordos ortográficos não me chamarei, afinal de contas, João?


© CybeRider - 2009

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Nunca vás com estranhos!

A auxiliar do cabeleireiro foi buscar-me à escola primária.

Não a conhecia. Não peguei na mão que me estendeu.
Fui o último a sair da escola.

Já lá vão quarenta e tal anos. Nunca me esqueci.


Aos meus sete ou oito anos, uma figura feminina pretendeu desta forma violar um dos cânones que enformam o meu início de ser humano. Quem a mandou não se lembrou dos meus ensinamentos; ela não previu aquela consequência; eu limitei-me a cumprir ordens (onde é que já ouvi isto?...).

Foi a minha primeira lição de como o "mero cumprimento de uma ordem" nos pode trazer consequências nefastas.

Ostracizado no recinto de recreio cheguei a temer o pior. Que tivesse sido a derradeira chance de sair dali, que a minha interpretação do comando pudesse ter estado errada, enfim, de tudo me passou pela cabeça.

Senti que a minha decisão me tinha deixado cimentado àquele terreno para o resto da minha tenra vida. -Mas não arredei pé! Afirmo, a justificar o meu impasse.

As lições de isolamento são talvez as que mais perdurem. Talvez por isso a prisão seja a medida justa para os piores (de)feitos. Ou quiçá o legislador tenha sido também o último a sair da escola há muitos anos.

Raramente aquela (então) jovem terá feito tamanho esforço para ter uma companhia e, ainda assim, sido tão rotundamente rejeitada. (Espero eu, sinceramente.) A aparente tentativa de sequestro fora afinal o desejo imenso de cumprir uma missão.

Não consigo imaginar como isto terá afectado as nossas vidas.

Para mim: os louros carcomidos de uma vitória sobre um pretenso inimigo, que mais não era que uma vítima inocente do campo de batalha.

Para ela: uma derrota retumbante perante um adversário que, por definição; armamento; capacidade estratégica; entre outras razões óbvias, não estava à altura.

Estes embaraços em campanha geram decerto inúmeras vitórias e heróis que o não são pelos apanágios do beligerante, senão por meros circunstancialismos e formas de olhar para o território agreste à sua volta.

Ainda hoje justifico alguns "impasses". Muito poucas vezes me limito a cumprir ordens; procuro e prefiro encontrar formas consensuais de atingir objectivos.

Continuo a seguir o proverbial conselho de não ir com estranhos. Tento conhecê-los antes de ter de os acompanhar.

Em relação à senhora... Não iria com ela à mesma. Mas tinha-lhe pago um cafezito.

© CybeRider - 2009

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Este carro é teu?

Causava-me calafrios.

Nunca ouvi esta pergunta num contexto positivo em relação ao meu carro.

Ora era seguida de sonoras gargalhadas que me faziam sentir qualquer coisa a encolher, ou de um silêncio sepulcral que me fazia desejar ter à mão os sais Eno para alegrar o estômago.

É que parece saída do manual "Como catalogar e etiquetar para sempre um homem em 10 segundos". Não importa o que faça ou diga.

Aquilo parecia apontar a dedo a essência do meu ser.

Por outro lado, nas vezes que as minhas mãos acariciaram a pele do volante de uma verdadeira "macchina" ou fui profusamente atravessado por olhares de soslaio pelo vidro, com vontade de me arrancarem uma orelha à dentada, ou de terror como se eu fosse o campeão olímpico de carjacking.

Há coisas que não combinam. A minha relação com automóveis enquanto objectos de culto é um bom exemplo.

O meu primeiro carro foi um Renault 4L. Nascemos cerca da mesma altura. Com os nossos 19 anos, e amigos como éramos, nunca me fez confidências. Bem vistas as coisas talvez tenha sido melhor assim, as melhores relações por vezes são as que não têm passado. Como nunca o via sair sozinho tinha nele uma confiança quase cega, que ele nunca traiu.

Enquanto eu tirava um prazer absoluto da condução daquele cangalho, todos os que tinham de me acompanhar sentiam que estavam a entrar na barca de Caronte.

Depois vieram outros. Mas não há amor como o primeiro.

Há qualquer coisa de mágico na aquisição de um carro novo que dá ao dono o ar prazenteiro de uma promoção. No meu caso, esse almejo, era decerto a busca por um desfecho agradável para a minha resposta à temida questão: "este carro é teu?"

Nesta busca por um final feliz ser-me-ia mais fácil que a vida fosse como nos anúncios ou andássemos todos de bicicleta.

Hoje a minha auto-estima alimenta-se ou evacua-se mais das minhas acções que das opiniões alheias. Sem necessidade de impressionar senão o meu ego, estou mais velho e tenho a pele mais dura. O carro é uma ferramenta ou mero meio de transporte. Perdi-lhe a noção de culto.

E a outra pergunta que para tantos tem resposta fácil e idealista: "Que carro gostavas de ter?" traz-me sempre à ideia o Renault velhinho, de quilometragem inconfessa, que me libertou nas primeiras estradas da vida.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Futuro Adeus Passado

Xk45670 segurava na mão imóvel um pequeno papel ressequido.

O olhar emitia um brilho avermelhado.

O cérebro, a uma velocidade vertiginosa, processava milénios de informação trocada, repartida, reunificada, destilada, organizada num conglomerado de nanométricos favos de colmeia.

Olhei melhor. O pequeno papel era afinal uma fotografia... A minha fotografia.

Xk45670 dirigiu-se à janela. O olhar azul captou a linha do horizonte. Lá em baixo o deserto metálico estendia-se a perder de vista.

Ele sabia que HZ54638 estava apenas a segundos de distância. Viu-a chegar, tocar com os pés no solo metálico estranhamente natural, o revestimento cromado do seu corpo mudar de cor, libertando uma pequena nuvem de poeira cósmica.

O jacto de nitrogénio líquido repôs os valores térmicos normais que restabeleceram as funções cerebrais aos habituais 100%.

A escuridão eterna circundava o vasto mundo gelado, seco, esterilizado, que reflectia apenas alguma radiação do espaço.

Ela entrou no quarto sem luz. Ele dirigiu-se a ela sem palavras. Há muitos séculos que todos comunicavam de outra forma. Agora a vida eterna era uma questão de peças em stock, o tempo e a história não faziam sentido.

A conquista de novos planetas hospedeiros era finalmente uma realidade que a nossa frágil biologia nunca tinha permitido enquanto infectáramos a Terra na nossa forma carnal.

Cada um era agora detentor de todo o saber humano acumulado. A maioria das ciências que conhecêramos era-lhes porém inútil. As artes, manifestações sem sentido. As causas defendidas e guerras travadas, totalmente indecifráveis de causalidade. Não havia governantes nem governados porque todos tinham exactamente os mesmos conhecimentos e consequentes poderes.

Uma pequena caixa pairava como que por magia. A seu lado uma pequena esfera de terra estava também assente no espaço.

À pequena luminosidade que emanava da janela vi-o colocar a minha fotografia na pequena caixa e recobri-la com a terra, que facilmente se moldou à clausura, como quem guarda uma relíquia antiga de um ente querido. Numa das paredes, completamente vazias, abriu-se uma tampa e a pequena caixa transparente deslizou para o encaixe perfeito no espaço agora criado.

Sem sentimentos, a pequena lágrima que lhe rolou pela face era inexplicável. Teria de mudar o retentor que vertera a gotícula.


Acordei com um estrondo.

Ainda não compreendo como é que a torradeira foi atravessar o monitor do computador.



© CybeRider - 2009

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Afonso - o bem cheiroso

Qual Rudolfo?

O Casanova? Tampouco!

Conquistador houve um: O Afonso!

Compreendo finalmente a razão de se ter estudado tanto sobre o Afonso, que nunca houve tempo de fazer chegar os programas de História sequer à Implantação da República, quanto mais ao Estado Novo. Mas sobre o Afonso... Qualquer falha nos enviava a anátema das Orelhas de Burro. Ainda hoje! Não saber da briga com a mãe; das zangas com os primos, filhos da Ti Urraca; do espadalhão de ferro bruto...

Correndo o risco de ficar para sempre no imaginário das crianças, num nível equiparável ao Mandrake ou ao Fantasma (traduzido para o século XXI, qualquer coisa entre as Tartarugas Ninja e o Incrível Hulk), não havia ano lectivo em que o Afonso não fosse abordado com pompa e circunstância.

Pelos vistos naquela altura a população não se dividia em 50 - 50. Estavam todos com ele. Melhor que numa maioria absoluta do parlamento. Todos convenceu que os aromas de Espanha não nos viriam a entusiasmar.

Sem abrir mão do Presunto de Chaves em favor do salpicão Revilla, nem da desfaçatez da paella face ao arroz de grelos com biqueirões, batalhou, batalhou, seguiu os cheiros afastando-se dos maus ventos, e pronto. Ficámo-nos adormecidos 900 anos.

Que laços de amor podemos nós traçar com a nossa cultura menos ancestral? Que heróis de referência encontramos no nosso passado mais próximo que lhe possam chegar aos calcanhares; à pele grossa das plantas; às palmas encortiçadas, como côdeas de casqueiro; à tez bronzeada pelas constantes incursões pelas planuras e montes lusitanos?

Até o cognome lhe atribui à partida o afecto de bem mais de metade da população inteira duma assentada. Nem tanto dos homens por despeito, mas dos restantes, por desejo.

Imagina-se-lhe logo o perfil sedutor, o bigode retorcido, o sorriso mariola, a figura escorreita e viril no topo da cavalgadura.

Ah! E o escudo! O escudo... Um bocadinho afinal da nossa identidade! Onde já se viu alguém escudar-se por detrás de um euro?...

Que Governo pode competir com isto?

Sem popularidade q.b., limitam-se a agradar a metade duma minoria. O desencanto, o desespero, afasta os restantes (chega-se a ouvir os seus suspiros nos dias de escrutínio) que, com razão, não querem saber de imitações e insistem na continuada busca duma referência.

Vá lá que temos o D. Sebastião que há-de vir a pôr ordem nisto.

(Que alguém lhe peça é que não traga o escudo. Para pior já basta assim...).


© CybeRider - 2009

domingo, 15 de fevereiro de 2009

3 livros e safamos isto!

Veio sem livro.

Este país complexo, com um povo complexo, leis complexas, políticas complexas, situações complexas, não traz um guia, um esquema, um folheto bera que fosse.

Abre-se o pacote e damos com isto. Tudo desmanchado.

Ainda falam das mobílias do Iquêah (Aiquía). Isto é pior!

Como querem que consiga juntar as peças e que faça alguma coisa de jeito se não sei onde isto tudo encaixa?

Nem que fosse em espanhol - ou castelhano, ou lá como é.

Olha... Ainda por cima falta a cola... Bom, mas isso desenrasca-se.


Que irritação!

Dá vontade de pegar nisto e jogar tudo fora! Dar um pontapé nesta treta toda!

Chego a compreender os que já nem se importam de esfolar a pintura. Desde que dê para usar...

Deixa lá ver outra vez... Se calhar sou eu que não tenho jeito...

Não...

Acho que isto não dá com isto...

Ah, já sei! A garantia! Isto, se calhar, está é estragado. Não sou eu que sou estúpido. Afinal até já montei coisas complicadas que funcionaram. Antigamente... Era mais novo... Tinha mais paciência... Ora o livro da garantia... Estava aqui... Ou estou a fazer confusão?

Hum... Também... Já passaram mais de dois anos... Ainda vão dizer que fui eu, que dei cabo dalguma peça, que usei as ferramentas erradas... Sei lá...

Ainda pego no carro e vou lá pedir o livro de reclamações. Trata-se assim um consumidor?

Estou é com pouca gasolina...

Vão ver que ainda tenho que ficar com isto assim.



© CybeRider - 2009

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Dia dos Namorados

Dedicado à mulher mais fantástica do Universo


Amor é

Oferecer-te um nada
Tirar-te um pouco
Contar-te uma piada
Ficar-te com o troco

Dar-te suspiros
Acordar-te feliz
Trocar-te abraços
Beijar-te o nariz

Escrever-te uma carta
E pedir-te o selo
Perder-te os chinelos
Guardar-te um cabelo

Partir-te o coração
Colar-te os pedaços
Compor-te uma canção
Mostrar-te palhaços

Corromper-te a solidão
Rasgar-te a roupa
Desarrumar-te o quarto
Deixar-te louca

Pedir-te que esperes
Deixar-te ouvir
Dizer-te o que não queres
Empurrar-te e sorrir

Entornar-te as compras
Sujar-te a casa
Limpar-te a boca
Deixar-te em brasa

Agradecer-te o dobro
De tudo o que te faça.


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

A fábrica de gelo

Fui há cerca de cinco anos ao Palácio de Estói, perto de Faro.

Penso que por esta altura será a "Pousada de Estói", que deveria ter surgido já no ano passado mas...

Enquanto deixei o canadiano a tirar fotografias com a sua HP digital, ainda raras por cá na altura, ele embevecido com o aroma a história e o pitoresco das figuras e traça rococó dos edifícios e azulejaria, fui por minha conta respirar o ar fresco e apreciar a sombra do arvoredo, agradável por aquela hora de almoço.

Eis senão quando me deparo com um leão... Não era.

Era uma tabuleta onde se lia "Fábrica de Gelo".

Guardo aquela imagem. Não tinha máquina para a fotografia, e acho que o canadiano nunca ia compreender o meu interesse por um edifício ruinoso e vazio ao ponto de me emprestar a dele, cheia de preciosidades para levar dali a momentos para o Novo Continente (não é o do Belmiro).

O caminho sinuoso levou-me à despedida no aeroporto, e a casa. Pensava como seria possível, no início do século passado, fabricar gelo com trinta e sete graus à sombra. Quando a maioria das casas não tinha esgotos, nem luz eléctrica, nem computadores. Quando a maioria das pessoas não sabia ler, nem escrever SMS's. Quando o burro que as levava ao mercado não tinha GPS, nem ABS, nem HDTV. Quando o inglês que hoje falamos soava ao chinês que a maioria ainda não apreendeu.

E havia uma alma a fazer gelo no meio do Algarve.

Não consegui saber mais nada sobre a fábrica. Nem se os trabalhadores saíram com a crise de 1929. Não havia guia (à hora de almoço, digo eu em eufemismo), a vegetação tentava a reconquista, como em tantos outros monumentos, os panfletos inexistentes perduram até hoje.

A História, as histórias, as gentes, os cheiros, as cores, estão todos no meu pensamento.

E gostava que tivesse sido assim.

© CybeRider - 2009

O Palácio

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Povo CENSURADO

Nasci no tempo em que a popularidade era determinada de forma totalitária.

Víamos o que nos mostravam. Ouvíamos o que podíamos ouvir. Dizíamos o que nos deixavam dizer. Era popular o que podia ser e sobretudo quem podia ser.

Alguns dos mais aplaudidos hoje foram muito pouco populares então. Respeito-os em parte por isso. Sem esquecer que as possibilidades de adquirir popularidade hoje em dia são mais vastas pelos determinismos que alguns então defenderam.

Alguns ancestrais detentores de grande popularidade sobreviveram à mudança e mantiveram índices de popularidade elevados. Souberam agradar a gregos e a troianos ou tiveram a habilidade de não remar contra a maré do regime de então, o que se traduzia numa das formas possíveis de conquistar a almejada popularidade.

Numa altura em que podermos manifestar-nos de forma quase incógnita e abrangente é um dado adquirido e um direito incontestável para muitos, e antes de pensarmos que istoestátudoàderivaesóumpunhofortedarácontadisto, talvez seja o momento de reconhecer que a nossa sociedade continua a ter mecanismos de regulação ética e comportamental.

Além dos óbvios, meras ferramentas importadas de outros regimes e sociedades - nomeadamente a lei imposta que cerceia a querida liberdade, as forças de segurança que, necessárias e incontornáveis, nos recordam por vezes excessos de outros tempos - todas debatidas em muito por outros, saliento a que se me afigura mais importante e talvez menos evidente de todas as formas de manter o controle da sociedade, e por isso esquecida.

Em democracia pura, os poderes (governativo, legislativo, executivo, judicial) dos governantes pertencem por definição aos governados. E quase seria possível governar em pé de igualdade com os regimes totalitários não fora a ausência da censura.

No entanto ela existe. Não me refiro às escolhas e aos vícios que hoje também determinam o que vemos, ouvimos e -pasme-se- consequentemente dizemos. Refiro-me a algo muito mais selvagem e abstracto. A Popularidade!

Em democracia o popular é aceite e o impopular recusado. Ah... Se os nossos governantes pensassem nisto... A nossa sociedade era o nosso paraíso. Por outro lado, agora que reparo... A maioria dos portugueses é mesmo muito pouco popular...

© CybeRider - 2009

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Sãos como peros

Importantes são os bons. Os que (quase) não falham.

A julgar pelo horizonte a 360 e numa perspectiva curta, apetece-me avaliar a veracidade dessa ideia. Senão vejamos, passámos de uma turba que se animava com os pobres escravizados aos ricos - os bobos da corte - para uma tribo global, maioritariamente pobre, a quem os ricos hoje animam.

E com as crises aumenta o poder dos entertainers, aguçam-se-lhes as destrezas e enchem-se-lhes os bolsos.

Acorrem políticos, jornalistas, comediantes, entendidos em vastas matérias de teor hermético à vasteza do numero de fiéis. Todos com os mesmos intuitos: impor-nos ideias, vincular-nos a ideais, em suma, encher os bolsos e dar-nos música.

Pois, que eu também como.

Não preciso é de contrapartidas milionárias para isso (não que não queira), que não mas dão. Sou afinal um mau entertainer, não tenho o acordo das massas e chego a irritar a minha parca audiência.

E afinal com que matérias acabamos por aliviar as nossas vilezas e rancores?

Com os pequenos defeitos de cada um transpostos para o geral pelos senhores do entertainment. Desde a dificuldade individual em pagar mais impostos, por não sermos mestres na realização de receitas, passando pelos vícios individuais transpostos para o colectivo com a consequente degradação da sociedade (crime - dizem eles), passando pelos pequenos trejeitos ou hábitos de linguagem menos correctos de que os comediantes tanto gostam para compor os seus bonecos.

Salvam-se, nas artes, as peças que não se baseiam na fraqueza humana. Que as haverá. Essas, dizem, levam-nos ao céu. E quase nos fazem acreditar que há algo de divino para além do ser das coisas.

Pois todas as outras acabam por confirmar o que já suspeitava. São na realidade os maus desempenhos que movem a sociedade. Sem eles não haveria lugar à crítica nem à miséria. É o operário que na sua mediocridade do salário mínimo alimenta o gestor, paga ao conferencista, ao futebolista, vota no entertainer, cai no ridículo, e passa fome se for preciso para manter a máquina oleada e os seus ídolos sãos como peros.

© CybeRider - 2009