domingo, 13 de março de 2011

À rasca por um sonho

Ontem sobressaltei-me.

Vi as ruas da cidade cheias de gente em luta. Apregoavam cânticos que conheço com uma energia que já vi. Também vi os milhares que não caberiam no Largo do Carmo naquele dia longínquo que muitos desses nunca conheceram. Acreditei por instantes que tantos seriam capazes de fazer o que muito menos fizeram há muito mas melhor. Esperei para ver o voto de confiança às palavras de um líder expresso na iniciativa popular. Com o avançar das horas fui percebendo que tudo não passava afinal de um cortejo carnavalesco de derrotados.

Derrotados pela falta da confiança que não têm no único cidadão eleito democraticamente no país. Derrotados pela falta da iniciativa que não conseguem juntar para agir contra a adversidade. Derrotados pela incapacidade de criar um projecto colectivo linear e alternativo.

Acabei por não ficar esclarecido quanto à verdadeira intenção do presidente ao incentivar as massas ao "sobressalto cívico". Gostava de saber se aquele homem silencioso e insondável poderia ser digno do estatuto de herói nacional. Ele, o chefe supremo das forças armadas, teria ao seu dispor os meios de apoio necessários ao estabelecimento de uma nova ordem, de forma pacífica mas eficaz. Um dos muito poucos poderes que lhe deixam. Acaso esperaríamos que ele tivesse sido mais claro do que aquilo que foi? Esperaríamos que ele em vésperas de uma sublevação, anunciada mas sem provas de participação, nos tivesse dito "vão para a rua destronar os impostores que os nossos canhões vão lá estar para vos defender"? Era isto que esperávamos? Não passamos de uns neo-românticos patéticos se estivermos à espera desse dia.

Eu, que nunca acreditei naquele homem, ontem dei-lhe crédito. Por mim ele teria uma chance. Acreditei que ele poderá ter estado ansiosamente a aguardar a reacção das massas e o seu pedido de apoio explícito para poder tornar as palavras que proferiu em algo de mais concreto. Acreditei que por uma vez a voz poderia significar intenção. Pelo meu lado, gostaria de ter sabido a verdade. Gostaria de o ter confrontado com o facto que lhe pudesse justificar o mérito.

Ontem poderia ter sido o dia em que finalmente soubéssemos que esse cidadão eleito pelo povo estava de facto do lado de quem o guindou ao lugar que ocupa. Ontem poderíamos ter ficado inteirados da sua lealdade aos interesses do país mais do que aos interesses de uma Europa de direita que nos oprime. Ontem poderíamos ter conduzido o país por outro caminho. Ontem poderíamos ter ratificado a democracia e tê-la colocado para nosso governo no lugar da partidocracia que nos domina. Ontem um homem pode ter estado a aguardar uma chance para se redimir de toda a culpa que lhe pesa na consciência, mas ao qual não demos nós uma chance pela nossa manifesta incapacidade de reacção.

Sei que sou um romântico que conta histórias. Sei que descrevo um capítulo tão hipotético que me deixaria perplexo se se concretizasse, pelo que teria de aparentemente irresponsável e onírico, mas as grandes façanhas nascem de sonhos assim, e são destas improbabilidades que se fazem as diferenças.

Ontem faltou-nos a capacidade de acreditar em sonhos, desperdiçou-se assim mais uma oportunidade preciosa de definir o caótico. Para amanhã está anunciada uma paralisação dos camionistas, promissora quanto à eficácia que já conseguiram demonstrar noutra ocasião que bem recordo. Poderosos e irascíveis, têm mais força na imobilização de qualquer país do que qualquer governante inseguro acerca da confiança que possa depositar nos governados. Mas falta-lhes a legitimidade numérica das massas, a sua luta é tendenciosa pela particularidade dos interesses que defendem e como tal, por legítima que possa ser no conteúdo, é hermética para a maioria que sofrerá as consequências, eventualmente com maior sacrifício do que o que requeria uma rebelião generalizada.

E é por ter perfeita noção disto que hoje me sinto um bocadinho mais à rasca.



© CybeRider - 2011