segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Um dia, hão-de ver!

Um dia vou ter um blogue.

Uma dessas modernices, um blogue. Vou ter um, cheio de dia, cheio de vida. Vou contar todas as alegrias e tristezas, o cheiro do pão quente pela manhã, o telefonema que me irritou e que me deixou tão tenso que nem consegui comer a sopa que derramei sobre a roupa. Vou-me divertir à grande, aliviar a pressão dos dias que me ensombram. Vou colocar as fotos mais incríveis, com as festas mais vibrantes, vou fotografar os cães da rua e os pássaros nos beirais, ou as dicotomias que me apeteçam. Nunca mais hei-de passar indiferente, todos saberão onde estive e invejarão cada camisola que pus para lavar.

Vou cifrar todos os textos, para que os possa reivindicar sempre que mos roubem. O algoritmo complexo há-de prever que a combinação de certas sílabas se conjuguem numa frase que só eu conheça e possa apontar à prova; como viver sem propriedade privada?

E desengane-se quem pensar que um blogue vale por si. Não! É um pilar de apoio de uma vida, vazio se esta não tiver sentido, robusto se a vida for plena. Aliás, um blogue é como um filho, e há quem os troque, quem passe horas a escrever tonteiras e nem se recorde se beijou o filho ao chegar. Há quem durma com o blogue e esqueça o parceiro carente. Eles não esquecem, e hão-de amaldiçoar certo autor vezes sem conta até um dia.

E sempre se deixa um traço fugaz no mundo. Sim, porque afinal os filhos morrem, em incentivo da proliferação da espécie, talvez; preferencialmente depois dos pais, ainda assim... Como prolongar a nossa existência até que nada mais reste? Mais fácil de acarinhar, sem termos de lhe limpar o rabo, o ranho, nem dar dinheiro para que o gaste na primeira tolice mal parida que lhe passe pela testa, o blogue é tendencialmente eterno, quando nos vamos também ele fica; principalmente se não testarmos que o apaguem ou não deixarmos senha de acesso.

Nesse dia vou escrever com vontade. E será à séria, sem caixas de seguidores, sem comentários, sem contadores que me iludam. Que me interessa o que digam, quem diga, e quem cuspa? Em mim ninguém há-de! Vão lá comentar o demo que os pese... Será assim, sem chatice, ninguém me há-de deixar a pensar senão eu e o que eu queira.

E sonharei com encadernações bonitas para as minhas páginas... Para os meus meninos. E com vê-los somados em piras como que prontos para imolar, só por mim, que levarei a cabo o crematório para lançar segundas e terceiras edições que se lhes seguirão convulsas, e que só eu saberei ler. Mas serão meus, das minhas exclusivas tripas, sem mulher ou amante que inveje por ter de lhes chamar também seus.

Assim como este ou aquele, que conhecerão, de ler e chorar por mais ou menos, mas principalmente sem linhas de conveniência, nem ligações ou recomendações para algo nem alguém que se admire ou a quem se agradeça.

Deixar-me-ei de funambulismos, será tudo pela certa.

E será assim também, como hoje, cada momento como se fosse sempre o último.

Será um dia, hão-de ver...

© CybeRider - 2009

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Há datas que não se repetem

Faz hoje uma data de anos. Foi a primeira chapada que apanhei. Foi a primeira vez que me separei de alguma coisa. Foi a primeira vez que houve uma primeira vez. E foi-o de facto para uma data de gente, expressão curiosa esta, porque de uma data se trata de facto.

Não fosse a data que hoje recordo e o mundo nunca teria tido esta data para mim; nem as outras. Não recordo o brilho da ria, nem se havia barcas e trombetas, nem se os anjos estavam tristes por uma alma cair do céu. Não recordo se o tipo que me bateu tinha óculos, não recordo gritos de dor, nem manchas na brancura do linho, nem lágrimas de alegria. Calculo que me deram banho, calculo que alguém terá ficado feliz, eu não.

Mas que importava a minha felicidade?... Ouvi dizer que foi importante para alguns, pelo menos naquela altura. Sei que sim, porque já fui feliz num dia como esse, a bom rigor em contraponto à felicidade do visado.

Não sei se ela lhe tinha arrancado os botões da farda, nem se ele lhe tinha corrompido a lingerie. Sei que pelo menos num dia ele não me condenou à latrina, e ela não disse que lhe doía a cabeça. Deviam ser belos, os jovens são sempre belos, e gostaria de pensar que estavam apaixonados. Talvez ela tivesse chorado, e aquela fosse a forma que encontraram para vencer a tormenta e dar corda a um futuro; talvez se tenham envolvido e revolvido em seguida e pensado que o futuro era afinal uma piada de mau gosto. Nunca o saberei. Mas sei que aquele gesto, que o tempo felizmente não me mostrou, teve consequências que eles não poderiam prever naquela altura. 

Também gostaria que tivesse sido um anjo a perder-me por anos a fio, mas pode ter sido um demónio. Não tenho pressa em descobrir, mas calculo que um dia voltarei para preencher esse vazio. Até lá não tenciono preocupar-me com a tristeza que um ou outro possam estar a sentir, apenas me palpita que voltarei; um ou outro, talvez fique feliz por me tornar a ver. Não tenho vontade de contar por onde andei, hoje ainda não.

Lamento se fui objecto de uma troca celeste e se algum apanhou com os torrões mais cedo por minha causa. Depois do mal feito já não há remédio. Hoje alguns, algures, estarão a berrar como eu berrei e algumas senhoras que terão arrancado os botões da farda aos maridos há nove meses, ou a quem estes tenham rasgado as calcinhas num gesto de carinho, estarão a sofrer uma alegria igual à que aqueles dois sentiram, resta-me desejar a esses novatos que tenham menos desgostos, que serão outros, que sejam menos.

Pela primeira vez aquele gesto longínquo aparece referido, preto no branco, culpem-nos a eles, não a mim. São esses desconhecidos os únicos responsáveis por esta leitura. Esse será para mim o único facto digno de nota.

Que eu já o sabia, a novidade, essa é toda vossa.


© CybeRider - 2009

sábado, 21 de novembro de 2009

Selvagem por um dia

Sinto o animal que me agasalha, tolhe-me a memória, invoca os instintos e esqueço tudo o que aprendi para passar a perscrutar a selva à minha volta. O rio porém meteu toda a água na mala e partiu para parte incerta, levou com ele a chuva que nunca mais voltou.

Na estepe árida procuro o abrigo onde passe a noite, sempre longa, tão longa que hei-de escrever sobre isso, se a memória não me falhar. É o sangue que me domina, o faro apurado que me instiga a prosseguir entre a vegetação moribunda, os pequenos troncos secos que afasto já sem sentir os pequenos golpes que retalham a pele. O vento em fuga constante ressalta nas folhas secas e leva algumas com ele, com um ruído em surdina. Não me lembro do vento, nem das folhas. Já esqueço o rio, que talvez nunca tenha visto. Só o presente é intenso. Esqueci os nomes dos outros... Há uma cara ou outra que ainda recordo, por pouco tempo. Tão pouco que quero guardá-las para sempre, e troco as datas sem saber quando celebrarei outro aniversário.

As maneiras que tive já não as pratico, deixei a etiqueta e os modos. Agora é tudo em bruto, sem medo e sem trégua. Não me confrontem no meu meio, serei vencedor. Aqui terá de ser segundo as minhas regras! Paz, nunca mais, aqui não. Talvez algures, se esse sítio existir. Já não me lembro. Perdi a História e todas as histórias que me contaram.

Ainda saberei amar pai e mãe?

Sinto porém o apelo do clã, desses recordo e acalento o cheiro e a vontade de proteger e partilhar. Só desses. A memória que não me lembro de ter tido, essa pressinto que partiu; os nomes; as caras; as datas; os locais... Nem me lembro se tenho ouvidos, se algum dia ouvi algo do que me dissessem.

Que outra fogueira arde para além da que queima no peito?

Há-de haver quem não sinta o cheiro a doce da toca. Há-de haver quem não sinta o sabor a sangue das feridas, que estraçalham a alma.

Que havia sonhos, futuro, esperança. Se ao menos me lembrasse onde os enterrei. Sem rio não tenho norte, resta-me deitar-me no leito e revolver os torrões. Não me lembro da última vez que sonhei. O instinto há-de guiar-me ao covil.

Que bem me sabe esta maçã.

Não há retorno porque perdi as memórias. Selvagem por um dia, selvagem para sempre.



© CybeRider - 2009

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

D. Quixote de lata

Miro a paisagem desmontado do meu Rocinante de lata.

Não fora o penico de plástico na cabeça e ninguém diria a loucura que me invade as entranhas. Queria uma bacia de barbeiro, mas já não havia. Não faz mal, este apetrecho serve o propósito. Imagino-me majestático, imponente. Passam-me pela ideia os momentos mais felizes, aqueles em que a lata da minha armadura brilhante, que era brilhante então, não estava suja e amolgada como agora, não...

- Ah, Dulcineia... Lembras-te? Como tudo era fácil... Não haveria moinho de vento que me fizesse frente. No entanto, só tu me compreendias.

Para o resto do mundo eu era apenas um visionário insolente. Alguns achavam alguma piada e juntavam-se ao meu séquito, outros nenhuma e combatiam-me com tenacidade.

O que me vai faltando é a lata. Falta-me a lata para pedinchar favores, falta-me a lata para corromper ideias obtusas e abafar as línguas viperinas que tartamudeiam à minha volta. Falta-me a lata para ferir susceptibilidades de quem se arroga o direito de me tentar profanar princípios e exigir que inexplicavelmente os pretira. Sem lata para ripostar acato desacatos que nunca aceitaria na temeridade da minha sã loucura. Tendencialmente espero que o Sancho Pança me resolva os problemas, ele com o seu pragmatismo e boçalidade. Esqueço voluntariamente que um mero escudeiro nem saberá o que está em risco.

Vejo-me a forjar uma pretensa timidez absurda, com a habilidade exímia com que forjei a armadura brilhante que um dia enverguei e parti para o desconhecido.

Lata não me faltou então, para conquistar o meu parco território, tampouco para me declarar à Dulcineia, que me aceitou a triste figura. A minha armadura sobreviveu tantas pelejas, removi-lhe o pó de cada refega tanta vez... Agora já não. E desiludo-me ao ver no meu reflexo a pálida sombra do guerreiro audaz, que nunca prestou vassalagem para conseguir os seus intentos.

De armadura velha e oxidada, descubro as cãs e olho o horizonte. Sem lata que me proteja fico indefeso, de penico de plástico na mão.


© CybeRider - 2009

domingo, 8 de novembro de 2009

Hiperglicémico

Cirando por um mundo de feira.

Pessoas de massapão, cães de alcaçuz, gatos de caramelo, pássaros de chocolate.

Os bebés são de marshmallow, têm de ser! Toda aquela fofura, e a tonalidade rósea da pele... Os de chocolate também são deliciosos, e mais fáceis de definir: perguntei a um dos putos doces da rua que nome dava aos marshmallows, ele disse que eram "borrachas"...

Borrachas não é o mesmo. De látex serão aquelas bonecas para adultos, curvilíneas, que se passeiam provocantes e desejáveis. Mas a essas chamam-lhes "borrachos", e vou-me perdendo em conceitos, porque me parecem doces também.

Atravesso a faixa de tarte de alfarroba. As viaturas de rebuçado multicolor interrompem a marcha e deixam-me atravessar pelo tracejado de açúcar em pó. À minha volta o pão-de-ló gigante toma a forma de edifícios decorados na base por troncos de chocolate apetitoso encimados por fios de ovos dourados, nestas tardes de Outono.

O mar de granizado azul estende-se a perder de vista, a enorme rodela de laranja parece brilhar intensa e soberana a enfeitar-lhe a orla ao fim da tarde; como num coquetel requintado, onde os montes que sobressaem são pedaços de frutas saborosas embebidos na delícia, serpenteados por traços de licor de ginja. 

Vejo alguns cumes cobertos de creme chantilly delicado, que parece escorrer para os vales polvilhados de polígonos de compota de tomate, atravessados por linhas de gelatina verde prontas a juntar-se ao doce oceano.

Saltito por entre as poças de açúcar em ponto pérola que caiu do algodão-doce espesso que pairou sobre a cidade de manhã.

Chego a casa, abro a porta de morgado de amêndoa, tenho a roupa embebida em melaço. Que bem me vai saber o duche, abro a torneira que jorra a magnífica calda de pêssego. Não há senão doçura no mundo que vejo e que me proponho saborear.

São as atitudes dos diabéticos, que ao deturpar a culinária, adulteram a confeitaria e tolhem os pasteleiros .


© CybeRider - 2009