domingo, 30 de maio de 2010

A terceira lei de Newton

"Para cada acção há sempre uma reacção, oposta e de mesma intensidade."

O Newton sabia-a toda. Tanto que fica assim explicado!

Toda a dedicação ultrajada pela realidade que nos reprime. Vezes tantas que a tentativa de aproximação gera a repulsa. E os vice-versas que nos corrompem a solidão. O telefone toca. Dá-me aquela vontade tão familiar de o atirar pela janela.

“Estou?…“

Estou, farto que me façam puxar pela cabeça. Já por um braço ou por uma perna levam-me para todo o lado. Pela cabeça, não. Resisto. Temo a cedência ao que desconheço, procuro sempre enraizar-me aos meus tubos de ensaio virtuais onde deixei os sentimentos fumegantes, em análise.

Estou, em sofrimento quando a apatia se entranha. A sensação do inútil, do tempo que me aproxima do cadafalso, inexorável. É a sedição que me empurra à acção, tantas vezes intempestiva, tantas vezes também relampejante e tempestuosa. Tanto mais quanto a apatia me devore. A chuva e o frio que emanam da minha alma atormentada geram vagas de tolerância, que não mereço. Sorrio. O telefone paira-me a centímetros dos dedos, entre o merecido descanso e a janela aberta para aplacar o calamitoso Verão, fora de horas. Por instantes não sei onde irá parar, é a fraca aragem que o transporta, em simbiose com a pequena força com que tenta impor-se ao calmão, talvez também fruto do fenómeno newtoniano. Eu queria a janela, consequentemente, ele quer o descanso. Alguém queria que ele parasse de tocar…

“Estou?...”

Estou, como um pequeno insecto no vislumbre do canto em que aquela vespa agarra a sua aranha, entre as pequenas patas finas mas titânicas, o abdómen contorce-se-lhe enquanto espeta o ferrão erecto, obsceno, uma e outra vez. A aranha abandona-se ao consentimento, como dois amantes que o degredo tivesse separado um dia e se encontrassem agora. Mas ali não é o amor que os une, talvez por isso todo o acto seja de uma imaculada perfeição, não existem factores exógenos, nem história que os reprima. Assim, não me vêem. Sinto-me como o tarado que não deveria estar ali a mirar tanto empenho naquela união casual, mas não gratuita. Por isso afasto-me, a pensar se daquele ódio ocasional não nascerá um amor sem tempo, infinito e desejável. Sem saber ao certo se quero ser vespa ou aranha. Sei que quando sou vespa o meu dia tem sequela. Nunca me consigo imaginar noutro lugar. Já me convenço de que nasci para envenenar. Envenenar suporto, tiro sempre partido das minha inoculações. Mortifico-me porém se me sinto envenenado, temo por isso ferrão que me trespasse. E no entanto…

“Estou?...”

Estou, ciente de que as vespas são tão grandes que nem as vejo. E o resultado da sua acção talvez só o saiba daqui a meses. Passo assim cada dia, apreensivo por poder vir a parir diabo que me coma. Mas talvez, pela lei de Newton, seja eu parido por anjo que me adormeça.

Por esta lei, da física elementar, só o bem morre com culpa.


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Cá-ca-rá-cá-cá-cá... cá-cá...

Até nem me importarei de pagar mais impostos.

Pago-os porque a lei o impõe e a consciência me dita que o devo fazer para beneficiar do meu estatuto de cidadão. Cidadania compreendo.

Este estatuto deveria assegurar-me a tutela que considero fundamental para a manutenção da sociedade em que estou inserido. É para isso que pago impostos, que sou sugado pelo colectivo que sinto alimentar numa percentagem bastante injusta, principalmente porque sagra a precariedade. A justiça é precária; a educação é precária; o trabalho é precário; a saúde é precária obrigando-me a preteri-la sempre que possível pelos serviços de privados autónomos, como eu, que também não tenho tempo para aguardar sem ela nem a cura, meses a fio, o que protelaria o meu bom desempenho fiscal, e sem ressarcimento que me reconheça o esforço; a assistência social não foge à regra; agora a economia é precária também. Só a contribuição dos cidadãos parece evadir-se a esse modelo.

Se para além dos contributos que me exigem, sou ainda vítima da acção de grupos de meliantes que me roubam o que resta, e de onde como, e que coloca em perigo a minha integridade física e psíquica, ou a dos meus, a minha função social começa a parecer-me principalmente uma obra de caridade pela qual não estou a ser suficientemente agraciado.

Já quero saber pouco de que partido ocupe a cadeira do poder. Mas parece-me que, seja qual for, desde que viva da caridade alheia para assegurar o comando das operações, deveria abandonar a arrogância e a prepotência, sob pena de nos estar a tornar a todos em meros servos revoltosos.

Algo estará profundamente errado se diariamente nos sentirmos inseguros, ao executarmos as tarefas normais do dia-a-dia, sempre a olhar para o lado à espera da próxima extorsão ou da próxima violência.

Não sei bem como, mas há grupos de ladroagem a agir no metropolitano de Lisboa. Nas ruas também me levaram quatro rodas, que me trocaram por tijolos de que não precisava. Atacam diariamente. Não creio que a sociedade devesse consentir que quem quer que fosse pudesse ser assaltado ou roubado em locais de utilidade pública, no decurso da sua vidinha normal e contributiva, sem contrapartida. Principalmente quando eu tenho de pagar quando falho.

Antes de gastar, investir, orientar em processos mais ou menos duvidosos que envolvem riscos típicos da acção dos privados em busca de mais-valias de seu exclusivo risco e responsabilidade, como eu faço, entendo que o Estado assim pseudocapitalista, que não me suporta financeiramente, deveria cuidar das suas galinhas-dos-ovos-de-ouro; nós os contribuintes, caso não tenham reparado.

Se temos de encarar esta realidade como normal, pelo menos que conste na declaração de imposto uma dedução específica, mais que justa, onde figure a totalidade do património lesado porque, pela fatia que me toca, sem indemnização ou amortização equitativas estou a ser diferenciado. 


Até esse dia, em que haja um pouco mais de justiça social, cá fico a aguardar pouco pacientemente a próxima punhalada, de mãos e pés bem atados, que também nisso este tutor é inexorável, concedendo o direito de defesa apenas a quem nada tiver a perder.

Já estou quase lá.



© CybeRider - 2010

domingo, 9 de maio de 2010

Deprecada

Vai, feiticeiro! Espera-te a tribo a Oeste.

Que anseia por te ver sair do ventre do pássaro mágico que te transporta.

Vai, curandeiro albino! Desce ao terreiro onde os gritos das danças da chuva hoje não se ouvem. Reúne as hostes celestes e pacifica as negras almas. Exorciza os demónios que os poluem e exorta as almas puras que apazigúem os espíritos crentes, que os outros já estão em paz. Perdoa a culpa dos pecadores dos homens e faz erguer aos céus eternos o éter dos que partiram na tua fé.

Nomeia o inominável, que os acalme. Ergue o teu bastão e controla com a tua magia o tresmalhado. Reúne a manada cega e dá-lhe destino. Revigora-lhes as colheitas com os teus poderes abissais e o som das tuas cabaças.

Que o Sol e a Lua te obedeçam para que a noite e o dia voltem a reinar nessa terra cinzenta, queimada, poluta.

Tu que falas com os deuses de todas as línguas, pede misericórdia para esses indígenas e abençoa-lhes as chagas que os envergonham. Transforma a água que bebem em néctar que lhes sare todas as maleitas.

Milagreiro puro, virginal e imaculado, escuta a voz dos homens e transmite-lhes o conhecimento do infinito, para que se imbuam de novo daquilo a que chamam esperança.

Envergonha-os, da nudez em que deixam desprotegidos anciãos e infantes, irmãos e irmãs. Mostra-lhes que os deuses não têm conchas nem jogam nas cartas o destino que os submeta. Aceita as suas dádivas e sacrifícios sentidos no pó do terreno soalheiro.

Leva-lhes às cabanas modestas, que habitam, o brilho divino que há muito esqueceram. Pede por eles à terra que lhes seja firme aos passos e leve no sepulcro. Apela às ossadas dos ancestrais de tantas cruzadas, que te adornam as vestes, que renovem o poder incomensurável dos amuletos que trazem agora à tua presença.

Escuta-lhes todos os rumores, medita no compasso dos tantãs que te celebram, como se fossem dedicados a mim.

Faz com que as bestas lhes sejam de novo inferiores. Liberta-te da opulência e da soberba. Diz-lhes a verdade sobre os meus poderes, explica-lhes que apenas criei o universo, pouco mais posso. Mas não uses o meu nome em vão. Os poderes são dos homens, não de um deus.


Nunca acreditarão se tu próprio não acreditares, que podes fazer o que te delego.

Prova-lhes a minha existência; como provarei daqui a dois mil anos, em consequência da tua conquista, que terás existido.

E esquece as epístolas, que o correio anda atrasado.

Eu, to ordeno! Cumpre-o, sob pena de te tornares num deles e passares também tu a adorar-me. Bem sabes que essa é a sua maldição.



© CybeRider - 2010

sábado, 1 de maio de 2010

Trabalho... A quanto obrigas!

Há quem passe pela vida a meio gás, sem se aperceber de como tudo poderia ser tanto melhor ou pior que o que se viveu. Sempre em velocidade de cruzeiro. “Velocidade” só se deveria aplicar ao que fosse inebriante e incauto, a velocidade de cruzeiro é na realidade uma pasmaceira que nos atrofia e nos enraíza ao solo sem capacidade de elevação que nos aumente a adrenalina, como se nos encaixasse sempre na história de que já conhecemos o fim.

E houvesse história de que não conhecesse o fim… Mas conheço-os todos. Reduzi tanto os pormenores singelos dignos de nota que qualquer biografia não me mereceria mais que três linhas, como os dias que tem a vida, não fosse um tremendo esforço para me normalizar em tarefas e pormenores.

Até por isso quando ouço falar em excesso de velocidade me parece um contra-senso. Nada do que seja rápido deveria ser considerado excessivo. A velocidade deveria ser justamente avaliada como um bem, a assegurar e desenvolver, em prol do progresso e da eficiência. Esta afirmação não me enobrece. O meu pensamento é carbónico, lento de pasmar. Chego a adormecer a meio de um pensamento, principalmente ao serão depois de deitado, e nem pensar em tentar juntar na ideia duas coisas ao mesmo tempo, em vez de adormecer ficaria para aí comatoso. Os meus diálogos são por isso bastante aborrecidos, não será fácil dialogar com um interlocutor que leva meio dia para recordar um nome ou várias horas para descrever um facto, entrecortando cada ideia com pausas enormes. Tento dar uma certa musicalidade às frases, para não ter de reanimar quem me intercepte. Mas ainda assim a coisa resulta mal.

Quando é absolutamente necessário elaborar algum discurso imediato acabo por me impor um regime ligado no “nível médio de asneira”, tem riscos calculados e tem funcionado até aqui. Mas acabo a pensar nas coisas que disse e sofro bastante ao compreender todo o potencial que poderia ter aplicado, estivesse eu munido de neurónios mais reactivos.

Até coisas de que possuo imensos pormenores não fluem na hora certa, acabo por recordá-los só quando o receptor já desapareceu no horizonte. Um campeão olímpico estaria em vantagem, em poucos passos actualizava a conversa. Eu fico para ali agarrado ao telefone, a recordar o número, a carregar nas teclas ao acaso… Acabo por deixar para o dia seguinte.

Como agora, por exemplo, tenho a certeza de que havia qualquer coisa que queria escrever hoje, tinha de ser hoje, mas sei lá…

Se ao menos me lembrasse de que dia é hoje…

Ou se me lembrasse do que escrevi há um ano…


© CybeRider - 2010