segunda-feira, 29 de junho de 2009

Duelo ao Sol

"Eles eram três.
Dois castelhanos e um holandês.
O holandês, forte e feio, saca das pistolas...
Zás! Pás!
Pensam que os matou?...Não!...
Vou contar a estória, como se passou..."

No original, este início repetia-se como na do Repete, que tinha um irmão chamado Repete Repete, e outro chamado Repete Repete Repete; indo o Repete Repete e o Repete Repete Repete com a mãe às compras, qual é que ficava em casa?... Pois...

Pior que estas só a da formiga que prendeu um pé na neve, que deixo para outro dia.

Na minha versão porém, menos monótona talvez, o desfecho é diferente.

Eles eram três.
Dois lusitanos e uma princesa.
A princesa, esbelta e astuta...

E neste passo deixo-me de rimas porque, além de mentir, iria desvirtuar a beleza do texto.

O momento acontece numas férias de Verão. Sob o Sol abrasador, lugar comum em que a estrela imensa não se refugia, mas nos obriga a nós a procurar um lugar fresco e sombrio. Seguiram juntos até à esplanada, junto à piscina.

Gelados, aguinha fresca, dois dedos de amena cavaqueira.

Os dois lusitanos que eram amigos pensavam, cada um a seu jeito, que o controle da situação lhes pertencia. Aquele duelo ao Sol não se desenrolava aos olhos de um juiz, nem houvera, ainda, bofetadas com luva branca. Sentados em traje balnear, fingiam aguardar a digestão para o apetecível mergulho no lago azul de onde irradiavam os brilhos dourados que os deveriam atrair para o objectivo inicial, aquele que servira de argumento para o encontro.

Sabiam-no ambos. Só um poderia sair daquela situação de queixo erguido. Um deles ganharia o troféu; o outro, trespassado, abandonaria para sempre o cenário pré-idílico que se adivinhava entre os dois restantes.

A conversa foi-se alongando, sempre afável, amena, prazenteira. Um verdadeiro momento de quase pura amizade que todos, mesmo a princesa, sabiam não poder acabar assim. Os risos, os sorrisos, os espantos, os olhares dos três, disfarçavam a guerra aberta que se travava em cada sílaba que emanava de dois.

A digestão, essa, não era já desculpa para coisa nenhuma. Amigos como eram, os lusitanos recusavam-se ambos à estocada mortal.

Subitamente a princesa, altiva e soberana, lançou o repto. "E se fossemos dar uma volta?"

Penso que dois lusitanos nunca terão tido ideia tão semelhante a cruzar-lhes a cabeça. Antes a morte, verdadeira e definitiva, que o abandono da contenda sub-reptícia que se desenrolara até ali, de forma tão inglória. Mas se tivesse de ser, iriam ambos aos confins daquele mundo.

Foi então que a princesa, sábia, majestosa, olhou para um dos lusitanos e disse: "Podes ficar a tomar conta das toalhas?..."

E foram... Ela e o outro, em direcção ao horizonte verde e fresco da imensidão do amplo jardim que se estendia até ao final do entardecer.

Não foram contudo felizes para sempre.

Anos mais tarde, os lusitanos encontraram-se. Antes de se trocarem os detalhes dos destinos até aquele dia, aquele que ficara com as toalhas olhou o outro (que pensava já ter esquecido tudo o que havia para esquecer, por muita água levada a muitos moinhos) nos olhos, e timidamente disse-lhe: "Sabes, sempre cheguei a andar com ela..." Mas o outro, antevendo-lhe a mesquinhez, já lhe voltava as costas, afinal talvez a recordar algumas tardes que, para ele, não se tivessem ainda perdido no tempo, essas sim dignas de nota.

Há segundas escolhas que ficam bem melhor por referir... Ou caladinhas, ou assim...


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 26 de junho de 2009

É a última vez que bato num morto

Para um republicano, a morte de um rei é algo bastante inócuo.

Se o rei ocupa o cargo por sufrágio directo e universal, sem lhe correr nas veias o sangue azul da destrinça, haverá talvez que avaliar de que lado colocamos os sentimentos.

Pelas imagens, previsíveis, da multidão maioritária à volta das exéquias do Rei da Pop, pergunto-me que semelhanças terei com esses meus irmãos.

Gosto de música, pop também em consequência. Não posso dizer que tenha vibrado ao som do Thriller. Aqui começo logo a sentir-me minoritário, afinal foi o mais vendido de sempre, eu não comprei...

Ouço os elogios ao génio, classificação que aceito em termos genéricos, mas que não reconheço nos confins das minhas preferências. Interrogo-me sobre que razão me levaria a uma eventual homenagem póstuma. A quem? Ao músico genial, esquecendo o ser humano hediondo? Assim como homenagear um féretro com um braço, voltando costas ao que contém o resto do corpo? Como separar as coisas e manter a minha integridade com os meus princípios?

O meu lado comezinho, não dissocia neste caso, a imagem do músico da daquele ser estranho, da personalidade controversa, antropofóbica, depressiva, birrenta, inconsequente, mariconça, prepotente, egocêntrica, frágil no pior sentido, de argumentação incongruente e desconexa, que me atiçava a mais sórdida repulsa sempre que aparecia nos meios de difusão social.

Na minha forma simplista de introspeccionar esta reacção alérgica, descubro sem espanto que o meu subconsciente me dita que aquela pessoa nunca me seguraria num braço para me evitar uma queda num precipício, porque teria medo que lhe germinasse algo de estranho que o levaria a uma morte certa. E por mais que me esforce, isso para mim é razão suficiente para justificar tudo o que não sinto pelo seu desaparecimento.

Isso a somar à falta de estima que teria de si próprio, que me é também um factor de depreciação; a confusão com que tentou iludir a natureza, que o tornou também único, onde confundiu cores, misturou conceitos sem nunca saber colocar o preto no branco, tornando-se assim aos meus olhos o mais xenófobo de todos os humanos.

Louco, talvez, mas sem a loucura que advém da genialidade. Antes daquela de quem perdeu tantos neurónios que deixou de se distinguir das coisas irracionais.

Sem deixar de sentir que este texto me empobrece e me desgasta como ser humano, tenho contudo de admitir dois méritos ao defunto: o de, por vontade própria ou falta de habilidade, não nos ter escondido nunca as taras que o enformavam. Nesse aspecto, mais honesto ou incauto, do que eu. Noutro plano, o de ter tentado mostrar ao Mundo que é possível acreditar em sonhos e tentar transformar a vida de forma a realizá-los. Por não ter como super-herói o Peter Pan, não deixo de homenageá-lo por isso. E aqui começo a pensar se não estarei a ser injusto...

O seu desaparecimento exalta-me a tristeza que sinto pela morte do aspirador, do micro-ondas ou de um candeeiro de salão. Irrita-me até talvez, como me inquietaria ver que me fariam um funeral milionário a algum desses apetrechos, mas principalmente que isso se converteria em dias de trabalho para todos os jornalistas do Mundo.

E porque não compreendo o que sente aquela turba a que não me anexo, e porque ao repudiar o "Rei da Pop" me torno ainda mais impopular, sinto de facto a solidão que me persegue.

E acabo por concluir com algum sentimento:

Morreu o Michael Jackson, ficarei assim mais sozinho.


(Tivesse eu reduzido o texto a esta última frase...)



© CybeRider - 2009

terça-feira, 23 de junho de 2009

O par de botas

É pungente ver um militar a chorar.

Por coisas que não vêm ao caso fui, há muitos anos, incorporado num esquadrão de cavalaria. Nos quatro meses que durou a instrução militar ocorreram diversas vicissitudes inerentes à aprendizagem e adequação dos mancebos com o objectivo de tornar aquele grupo, absolutamente heterogéneo, numa unidade de combate uniforme e digna.

Os laços de camaradagem que se foram naturalmente desenvolvendo, e moldando aquelas personalidades muito jovens, parceladas em características individuais distintas, rapidamente tenderam a uniformizar-se num espírito de entreajuda exemplar.Vistos alinhados na parada, ninguém lhes imagina muitas vezes a perícia requerida para a apresentação a preceito, as horas de tentativas goradas no apuramento do rigor técnico da marcha, do aprumo da postura, da cuidada exibição do fardamento.

O Nascimento, nunca conseguiu atingir os mínimos olímpicos que o qualificassem como um militar mediano. De botas baças, fivelas e crachás untados, aliados ao visual estranho dos óculos de lentes grossas, seria a antítese do militar perfeito.

Recordo-me de uma ocasião em que fazíamos os últimos preparativos para a última formatura do dia. Aquela que antecederia o prémio de podermos passar o ansiado fim-de-semana fora do aquartelamento. Com o apuramento das técnicas aprendidas, o grau de exigência dos oficiais também aumentava quanto ao aprumo requerido, sendo sobejamente sabido que qualquer deslize anormal poderia alterar a permanência, de dois dias de sonho, em dois dias dentro da unidade de pesadelo.

Pela porta da sentina ouvi um soluçar... Aproximei-me devagar e vislumbrei o Nascimento agarrado às botas. As mãos farruscas, a escova entupida de uma massa preta, o suor a escorrer-lhe pela testa...

- Então pá, que é lá isso?... Vá, tem calma!...

Balbuciou qualquer coisa imperceptível. Aproximei-me mais um pouco, para tentar ouvir, enquanto perscrutava se não se teria ensandecido de vez. Perante a minha segunda ou terceira insistência, já preparado com o meu manual mental de psicanálise de bolso, consegui extrair-lhe a temida confissão:

- Não consigo... Não sei engraxar as botas... Desta vez não me safo...

Não vos disse que o Nascimento era médico, pois não?... É que de facto era. O senhor doutor, que se tinha atrapalhado com os papéis ao ponto de estar "naquele" curso de milicianos, que se atrapalhava com o abotoar da camisa, que era sempre o único com o passo certo na formatura, e pelo qual fizemos tantas flexões que as mangas das fardas já se queixavam para nos acomodar os braços, estava a ter uma crise de identidade com as suas lastimosas botas, sem compreender que assim, às três pancadas, é que assentariam bem.

- Dá cá as botas, pá. Repara!

Disse-lhe, num tom paternalista. E engraxei-lhe as botas... Como se fossem as minhas, talvez até melhor! Mostrei-lhe como fazê-lo, e mascarrei as minhas mãos na bedunguice com que ele as maculara.

O Nascimento... Que no dia seguinte já nem me reconheceria entre os outros camaradas. O Nascimento... Sempre aluado e perdido no seu mundinho de cientista louco.

Sóis e luas sucederam-se muitas vezes, um ano passou pelo outro... Baralhei-me por cidades e vilas. Ora eu teria vinte e dois... Sete anos mais tarde, quis a natureza dar-me uma razão de existir.

Recordo-me da alegria do dia em que saímos, ela e eu, com essa razão nos braços, para a primeira vez a céu aberto. Passámos a porta da maternidade, entrámos no carro, aconchegámos a alcofinha e fizemo-nos ao vento cálido de Verão.

A questão surgiu mais tarde, quando ela me disse:

- Olha lá, para matar a sede, eles davam um soro ao bébé, mas não faço ideia que soro era...

Centro de saúde. À saída, ela trazia um ar de espanto. Eu ficara no carro. Ela conhecia-o, eu já o apontara na rua. Tinha sido "o Nascimento" que, com tanto país, tinha incompreensivelmente vindo morar para a mesma capital de distrito que eu, a atendê-la no Centro de Saúde. E dissera-lhe que... "soro... soro... soro..." E conforme ela me descrevia a coisa, eu imaginava as mãos dele, a enegrecerem-se-lhe de graxa. "...só se for soro fisiológico!..."

Ora, soro fisiológico, como saberão, é água com cloreto de sódio; que eu não sou médico, eu estive no curso certo de milicianos, não por minha vontade, mas estive. Em suma, água salgada.

É dos livros, que beber água salgada, se for muita, de modo continuado, faz mal... Calculo que a um recém nascido fará pior.

Fomos calmamente a uma farmácia, onde o doutor, este genuíno, nos esclareceu que o soro glicosado do hospital era para substituir com aguinha fervida, que no entanto muitos bebés se contentavam com o leitinho. Pois, o meu não.

Ensinei bem, ao Nascimento, como engraxar as botas. Nunca teve de ficar lá nenhum fim-de-semana, pelo menos por causa disso...

Naquele dia desejei que não, confesso. Desejei, não lhe ter escutado os soluços, que ele tivesse levado as botas emboladas de massa para a formatura, que tivesse ficado lá castigado naquele dia, e que com a depressão se tivesse enforcado com o cinto, que não sabia enfiar pelos passadores das calças!

Assim, vou sempre lembrar-me que na sequência do nascimento do meu filho, tive de o salvar de outro Nascimento, esse que soneguei a um fim talvez merecido, que viabilizei em contranatura.

Como se alguém pudesse imaginar que, ao engraxar aquele par de botas, estaria a pôr-me a jeito de arranjar o meu.

© CybeRider - 2009

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Disfunção eréctil

Há quem também lhe chame falta de inspiração.

Olhamos para esta folha em branco e ficamos a pensar se algum dia voltaremos a conseguir preenchê-la, com aquelas ideias luminosas de antigamente.

Há maneiras fáceis. O recurso à pornografia pode ser uma. Podemos pegar num matutino (leia-se televisão, rádio, internet) e agarrar a via imediata da crítica aos políticos, aos jornalistas, aos comentadores. Pode falar-se de futebol, de Fátima, do fado...

Mas quando se pretende um desempenho perfeito, há que ter em conta os preliminares que nos conduzem com mais segurança ao ambicionado êxtase. Há que acariciar cada curva de cada palavra, passar a língua pelos conceitos mais audazes, beijar cada concavidade do imaginário, vibrar com cada metáfora que arrebita, gemer com as hipérboles menos óbvias. Há que gostar do paladar do suor que brota da refega... (Sentem?... O palpitar destas reticências?...)

Não será de seguir o trilho de imaginar o "como" do funcionamento da coisa. Quanto mais pensarmos "como" vai acontecer, mais depressa nos iremos deparar com a inibição, com o fracasso, com a desilusão de constatarmos que, afinal, já não é como dantes.

Tem de ser incontrolável, inexplicável, irracional mas simultaneamente consciente. Uma força anímica que não se comanda nem se compreende. Que existe, e pronto!

Quanto mais racionalizarmos a possibilidade de vir a acontecer ou não, mais somos levados a práticas onanísticas que só dificultam as coisas. Pensamos nos assuntos, gastamos os temas antes de os transpormos para aqui, e concluímos que à altura de tentarmos brilhar com o nosso desempenho, já nos falta a motivação que queimámos egoisticamente.

A leitura do que os outros escrevem transforma-se nas imagens e sons indecorosos e imorais que nos apaga a libidinosa veia literária e, quanto maior a qualidade do que lemos, mais dúvidas teremos de que o nosso desempenho venha a estar à altura.

É aqui que admiro o gigolo, que consegue a performance desde que lhe paguem. É que, comigo, nem que me paguem a coisa resulta!...

Não sei como é num cérebro feminino. No meu funciona de facto num paralelismo atroz. Quanto mais pensar nisso menos hipóteses terei de sucesso. Sei, por aprendizagem e constatação, que há-de vir o dia em que tudo se normaliza, em que conseguirei o tema orgástico que fará de mim o herói da noite; aos meus olhos, pelo menos.

É a angústia de não lhe saber o"quando" que me atormenta.

Por fim fica-me sempre a dúvida. Sei que para alguns foi demais, para outros não chegou para começar. Inquieta-me a precocidade que resulta dessa ansiedade em provar que "posso".

E ainda não inventaram o Viagra de que preciso. Aquele que provoque aquela Tensão Uniforme Singularmente Agradável (TUSA) para as ideias que me faltam.


Resta-me desejar que tenha sido tão bom para vocês, como foi para mim.





© CybeRider - 2009

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Blind Date

Ao Cabra de Serviço

Os anonimatos com que por vezes nos resguardamos servem muitos fins.

Já presenciei algumas opiniões acerca dos escritos anónimos que enchem a blogosfera. Já vi defender que o pseudónimo que nos protege é uma forma de nos ocultar de intenções malévolas e que constitui uma forma de anonimato.

Tenho defendido que nos ocultam de quem pretendemos ficar ocultos. Principalmente daqueles para quem o nome verdadeiro não terá nunca qualquer importância, nem o que fazemos, porque nada disso é o que somos.

Houve um telefonema, um encontro marcado. Um "talvez" que saiu dos lábios, no lugar do sim que de imediato baqueou no coração. Uma chave na ignição, alguns quilómetros. Receio? Talvez, o de poder não estar à altura, o de poder não corresponder a expectativas que se tivessem criado em quem convidou. Nada mais.

A meio percurso a sensação de que me dirigia de facto para um "blind date".

Nada mais errado. Ocorreram-me as recomendações de pai. O exemplo contrariado que teria de lhe justificar... Mas como?... (Ele há-de ler este texto. Compreenderá a diferença.)

De repente estava entre amigos de longa data. Faltava apenas saber quem era quem. Já os admirava a todos.

Tantos momentos já partilhados entre pseudónimos e longe de uma realidade que nos atrofia. Tantos textos escritos e lidos, trocados numa base quase diária. Textos que dizem mais de nós que todas as conversas que a medo vamos entabulando com muitos dos que nos ouvem, estes de quem conhecemos nomes de registo, e profissões. Estes de quem ocultamos facetas mais intimistas, opiniões sinceras e excêntricas, por sabermos que teremos de conviver com eles por mais uns dias...

Ali não. Ali, estavam aqueles com quem partilhei segredos que expus para sempre em público e que aqui permanecerão. Estas ideias para as quais não temo consequências, nem concórdias nem discórdias. Ali estavam desses, apenas. Que me toleram como de facto sou, com as minhas diferenças, a minha individualidade talvez estranha, que me conhecerão melhor que muitos que convivem comigo passo a passo, que julgam saber quem sou mas que não me lêem o que aqui confesso.

Talvez por isso, vi-os sem inibições.

Talvez por isso não falámos de profissões. Despedimo-nos por fim...

Ainda hoje não lhes sei os nomes de registo, nem onde trabalham, nem quanto ganham, nem em que lojas vestem, nem que carros conduzem.

Sei que enquanto estive com eles estive na segurança de amigos que somos. Mas sei sobretudo que, afinal, já os conhecia a todos, bastante bem.

Um "blind date" não é isso.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 9 de junho de 2009

Meninos e meninas - Epílogo

Apanhei as hormonas com a revolução.

Como uma virose peçonhenta agarrou-se-me às entranhas e nunca mais voltei a ser o mesmo.

Ainda hoje confundo por isso a sensação de me revoltar contra factos políticos com a rebelião geracional descontrolada. Quando penso em política fico dividido, entre os juízos que faço serem à luz de ensinamentos pós-revolucionarios ou meras retrospectivas saudosistas da minha adolescência. Talvez até por isso o antagonismo político em geral me pareça, cada vez mais, bastante infantil.

A minha revolução interna, e suas consequências, compactuaram com mudanças sociais profundas. Se por um lado combati com fervor a minha timidez, em obediência a uma líbido exacerbada, fi-lo em paralelo com a aceitação implícita da destruição de valores românticos que a sociedade de então debelava, em prol da emancipação feminina e do eliminar progressivo, que ainda presenciamos, do conceito do bonus pater familias, ou a sua ampliação para um contexto mais vasto e justo do reconhecimento desejável de uma bona mater familias. O solavanco que o poder masculino levou no seio familiar, permite que surja a aplicação de todo um conjunto de direitos exercidos pelas mulheres em desprestígio do que foi considerado senso comum.

A moda acompanhou estas alterações pouco subtís. A maneira feminina de vestir, que definia na cabeça do homem uma multiplicidade de conceitos sexistas acerca de qualquer visada, abandonou arquétipos, confundindo subitamente a forma como o macho desta espécie passou a olhar para o sexo oposto. Posteriormente, durante alguns anos, a toilette mais arrojada definiu, para uma camada mediana pouco esclarecida, algumas pessoas do sexo feminino como autênticas almas levianas aos olhos da sociedade, apenas pela forma como exibiam de forma mais liberal os seus melhores ou piores dotes físicos, conforme partilhavam costumes até então típicamente masculinos, ou como se sentavam a uma mesa de café para uma amena cavaqueira com elementos do sexo oposto.

A mulher portuguesa deixou também, aos poucos, de ser vista socialmente como um desejável modelo de todas as vitudes, para se determinar; vindo a partilhar com o homem o protagonismo das vilezas mais mundanas e dos prazeres mais proibidos. Esta profunda reforma social, que recordo se iniciou a par com uma fase crucial do meu desenvolvimento enquanto indivíduo sexuado, não deixou porém que a minha grande admiração pelo sexo oposto esmorecesse, trazendo no meu caso novos desafios que penso que superei.

As turmas escolares passaram a ser mistas, o que contribuiu significativamente para desenvolver capacidades de comunicação, e apreciação entre ambos os sexos, desde cedo. A breve trecho assistiu-se a uma mudança relativa na forma como pessoas de sexos opostos, com diferente grau de instrução, conviviam e partilhavam uns com outros os valores típicamente femininos ou masculinos, havendo uma clara tendência de homogenização nos mais instruídos.

Estas diferenças são ainda residuais na sociedade hodierna. E é nesse contexto que aceito que possa haver quem discuta uma eventual "Guerra dos Sexos" que na realidade não revelará mais que um tremendo equívoco, e eventual falta de poder de análise, face aos valores partilhados por homens e mulheres no quotidiano.

Os jogos de sedução alteraram-se e os sinais que antes eram explícitos para aproximar pessoas que viviam numa sociedade aparentemente pudenta, hoje servem para ridicularizar os menos atentos. As formas de aproximação são outras, e os valores podem parecer confusos para quem não se actualizou ou não se sentiu no dever de alterar formas pessoais de abordagem, vendo-se estes actualmente em situações que denotam, para desencanto da estirpe masculina, uma total desarticulação.

A novidade do comportamento de uma facção, que se encontrava subjugada, para um clima de liberdade relativamente recente, levam a que se questionem capacidades, se comparem desempenhos se analizem comportamentos, face à realidade anterior. Por seu lado as escolhas passaram a ser ainda mais ambivalentes, e hoje as mulheres decidem-nas activa e directamente, de forma por vezes menos monogâmica e por isso mais equitativa, substituindo o poder de mera recusa de que apenas beneficiavam anteriormente, sem que se vejam repudiadas socialmente por isso.

A meu ver nada permite concluir que algum dos lados possa ganhar uma pretensa guerra, porque não existe, a não ser como forma de masturbação mental. Até que isso acontecesse de novo haveria que desequilibrar direitos, deveres e competências, para um ou outro lado, mas ao ponto em que estiveram no antigamente.




© CybeRider - 2009

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Meninos e meninas - Intermezzo

Por isso tendes razão!

Vós as que defendeis que os homens são todos iguais. São-no de facto. E raros também.

São difíceis de destrinçar dos déspotas que não sabem escolher uma parceira como uma parte igual de si mesmos, mas que antes as escolhem como servas que não merecem. São difíceis de separar dos que não têm carácter e que desequilibram as lutas de direitos e deveres, utilizando calúnias e vergando a realidade à sua maneira para obter dividendos questionáveis. Os homens, por justos, lutam apenas com a verdade, equilibram as armas, oferecem o punhal que pode ser a sua derrota, abandonam a própria espada quando o adversário deixou cair a dele, para que a sua vitória seja mais grandiosa e merecida.

São provavelmente pouco abastados porque a camisa que têm no corpo não é apenas sua mas dos que integram o seu parco clã, pois que têm sempre muito poucos amigos. Também porque são incapazes de subjugar um irmão. As conquistas ser-lhes-ão, por isso, sempre difíceis e solitárias. A palavra romântico não os adjectiva, define-os.

Não são aqueles que se riem sempre que duas mulheres vão juntas aos sanitários. São os que já aprenderam que eles próprios não têm costas, como tal não precisam de quem lhes tire o autocolante ridículo que alguém lá quis colar; aprenderam que as meninas cresceram num conceito de beleza diferente, não vão juntas por qualquer fetiche desconhecido para eles - que até já os conhecem todos, vão como conselheiras mútuas.

Já os homens não têm conselheiros, podem até ter confidentes, mas nunca recuam nas suas decisões medidas, não pela razão, mas pelo gozo. Quantas vezes já sabemos que a decisão que estamos a tomar poderá ter consequências devastadoras, mas sentimos aquele frenesi que nos atrai para o abismo, incontrolável, incontornável, inebriante, e acabamos por perseguir certa ideia ou atitude apenas pelo regozijo de cumprir um desejo?

Homem é também aquele que exibe o coração à doçura do feminino. É aquele, que guardou aquela admiração por essa força da natureza esplendorosa que o atraiu desde criança, que soube resistir com tenacidade à sua própria e relativa fealdade e nunca desistiu de as amar, mesmo sabendo que nunca poderia ser uma delas. É sobretudo aquele que nunca teve a fraqueza e o pretensiosismo de imaginar que poderia um dia fazer parte desse grupo, até por isso não compreenderá aquele elemento que desistiu e que, no seu tresloucado acto de deserção, o persegue agora com intenções sempre estranhas.

É também o que aprendeu a linguagem delas, independentemente de levar o dia a olhar para o Sol, ou de picareta na mão a rachar calhaus. A palavra cortês não o limita, enforma-o. Pode até não ser culto, mas tem de ser sábio.

Por isso, minhas leitoras, se encontrarem um tratem-no com carinho. Dêem-lhe todas as mordomias. Tudo o que ele possa ter das vossas mãos é mais do que merecido. É o culminar da razão de existência de algo muito especial. Ele saberá, sem dúvida, agradecer-vos.

Àqueles meus leitores que se preparam para me mostrar o quanto estou errado, restar-me-á dizer que lhes faltarão decerto trilhos a percorrer.


© CybeRider - 2009

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Meninos e meninas - O início

Já não me lembro de quando fiz essa descoberta.

Recordo-me vagamente do desapontamento de não ter encontrado o que procurava mas de me ter resignado a que aquela coisa estranha, talvez um defeito, tivesse de acompanhar-me para sempre.

Agradável era o que, ligeiramente mais tarde, vim a descobrir noutras pessoas. Cedo me atraiu a beleza encoberta do feminino, escondida nos pequenos corpos sexualmente indiferenciados, como o meu também seria na altura. Terei chegado a ter inveja do que lhes via? Julgo até que sim, já que o que encontrava em mim nada tinha de belo e desejável.

Fui despertando lentamente para o facto de o meu "defeito" poder ser uma vantagem, aquele símbolo de diferenciação tinha afinal uma força que não podia imaginar, patente na sociedade daquele tempo. Comecei a compreender os elogios que amigos do meu pai lhe teciam por ter sido bafejado com um filho varão, as palavras jocosas que me anteviam como um elemento futuro do clã, começou a agradar-me a forma inequívoca como as senhoras me acarinhavam. Ouvi atribuírem-me responsabilidades na defesa da Pátria Mãe.

Com uma infância marcada pela bronquite asmática até aos oito ou nove anos e pelo uso do pouco harmonioso calçado ortopédico, que atirava para um canto da rua sempre que podia, não o usei suficientemente pouco para que não conseguisse suplantar o esforço com que tive de acompanhar as parcerias brutas dos meninos do meu tempo, e entrei na adolescência com as mesmas capacidades físicas dos meus "defeituosos" congéneres.

Mais difíceis de suplantar terão sido outras incapacidades que me marginalizavam do grupo dos mais machos, nem sempre por motivos óbvios. Com uma altura generosa para a idade, embora fosse durante muitos anos o mais novo das turmas, era dos primeiros a ser escolhidos para o primeiro jogo de futebol da primeira aula de ginástica de cada ano lectivo. O primeiro... e para mim o último, que dali em diante prefeririam jogar com um a menos do que voltar a convidar-me, até ao ano seguinte. Mas nunca desisti; não era físicamente hábil, teria outras virtudes...

Foi na luta e confronto destes detalhes que batalhei para me incluir sempre no grupo desses "defeituosos". Aqueles que como eu tinham tido o azar de ter nascido com aquele bocadinho de chocolate a mais. Aqueles a quem por ignota causa se mandava que, por definição, não chorassem.

Às meninas, perfeitas aos meus olhos, reservei sempre a maior admiração, pelo ar frágil, a voz doce, as linhas delicadas, a presença harmoniosa. Claro que havia uns estafermos... Essas para mim não me mereceram nunca qualquer desrespeito, entendia que teriam "defeito", como eu, e como tal teriam de batalhar as suas próprias batalhas, até por isso me mereceram o maior respeito também, embora as considerasse de outro clube. Sentia no coração todos os "caixa de óculos", cada "pescoço de girafa", os "cara de lua-cheia", que lhes eram dirigidos pelos meus pares, com muita tristeza. Nas raríssimas vezes que os acompanhei, que foram mesmo muito poucas, foi mais em tentativas de marcar alguns pontos na minha admissão à matilha que por vontade própria.

E como as coisas podiam mudar neste campo!... Vim a descobrir mais tarde, quando já pelos catorze, quinze, as via resplandecer, como borboletas que tinham abandonado aquelas crisálidas horríveis em que as conhecera. E o arrependimento de não ter conseguido eventualmente agarrar uma ou outra... Apenas mais machadadas no meu ego.

Daí que aos meus olhos os meninos nasçam sempre com uma mácula que os inferioriza, cresci com a minha auto-estima alimentada aos poucos por uma situação privilegiada por uma sociedade, que reconheço injusta, mas que atenuava os efeitos perversos do meu defeito de nascença, pois que essa mesma sociedade o considerava afinal uma vantagem.

Assim, logo pela génese, situo-os numa franja instável. Incompreendidos muitas vezes nas suas atitudes rebeldes, embrutecidas, frias até. Não encontram eco na sociedade contemporânea para ocupar o lugar que lhes pertence por direito. Não sentem o prazer de brilhar, como as meninas, tendem por isso a fechar-se nas suas próprias conchas, sem qualquer desejo de se unirem mais, do que o suficiente para afirmar a sua condição, a um grupo de semelhantes que padecem dos mesmos defeitos e falta de valores atractivos. Existe em cada um de nós a palavra "desenrasca-te" bem vincada no nosso âmago, que nos impede ligações mais profundas e qualquer regozijo por vitórias sexuadas. Não nos permitimos faltas de habilidade, odiamos com todo o ser os auxílios às nossas fraquezas, que não queremos somar às que já trazemos de longe.

Acabo por acreditar que houve na minha criação muito senso. Não fosse esse apêndice fundamental, e os inerentes complexos que assumo, estaria hoje a governar o mundo. Seria uma respeitável ditadora, profundamente orgulhosa de todo o meu ser e saber, o que não aproveitaria decerto a ninguém.

Assim, sou apenas um homem.




© CybeRider - 2009