Acordei noutra dimensão.
Estendi o braço para puxar o cartão e os jornais que me aqueceram pela noite.
Sete da manhã, pelo relógio da torre. Se é que ele sobreviveu a outra noite, ou talvez esteja a dormir, como eu deveria estar… Para sempre. Chamei o Bartolomeu, que me tem acompanhado nestes derradeiros dias de exílio. Não o encontro... Chamei de novo… Ah! Lá vem ele, a abanar a cauda… Afago-lhe a cabeçorra sorridente, de língua de fora... "Só tu para te rires, meu amigo...".
O jardim está todo lá. E a rapariga do fato de treino rosa, já corre por ali, junto ao canteiro das hortênsias, de auscultadores nos ouvidos. Nunca me viu, como ninguém me vê... A rega não está ligada… Dirijo-me a ela, passo-lhe a três, quatro metros, a contravento, não quero que me sinta o cheiro nauseabundo, que só eu já não sinto. Tomo o meu pequeno-almoço: o cheiro inebriante que ela exala, vai-me durar para uma boa hora.
Há muito que ninguém sorri para mim. Só o Bartolomeu, "não é, meu velho?..."
Acordar noutra dimensão pode trazer-nos dissabores. Começo a achar que também este dia me vai correr mal.
Olho para as minhas mãos. A pele grossa e suja, as unhas partidas de sabugos negros. Podia ir ao mar, mas não quero que pensem que o Adamastor se ergue das ondas. E se fico pior da tosse?... O desalento é grande, arrasto-me pelo passeio, sujo como eu. Condizemos, e o Bartolomeu não se importa. Apanho a beata quase inteira que alguém deixou ali para mim, à porta de um táxi que partiu. É fácil encontrar tudo nesta natureza. Onde tenho o isqueiro?... Revolvo os bolsos. Neste não, que já estava roto, tem de estar neste... Ahhhh! A primeira passa estremece-me de prazer.
Preparo-me para a aventura. O jardim ainda cheira a manhã. Vou ao lixo, passo sempre cedo, porque as coisas grandes são deixadas durante a noite, para que ninguém encontre quem as abandona. O sofá, a mesa, o rádio que funciona quando encontro pilhas, apanhei-os todos assim. A comida é junto ao hipermercado, às duas da manhã. Aí chegamos quase a andar à pancada... Que tenho o meu orgulho, não vou à "sopa dos pobres", esses são os que não têm espírito de aventura, eu sou um sobrevivente. Também não quero ser "inserido", antes que me esqueçam, quero perder os números que já me ligaram à sociedade, há muitos anos, e o nome. Que me esqueçam, para sempre! Moradas... Sim, essas tenho-as todas, cada rua e avenida, cada praceta, rotunda ou cais, todos meus sem que eles saibam.
No desperdício valorizo os medicamentos... Hoje não há.
Olha... Uma bicicleta! Que aconteceu?... Começo a pensar que me estão a pregar alguma partida. Olho à minha volta, mas não vejo ninguém que pudesse querer rir-se de mim. Hoje não. Só vejo os que não me conseguem ver, do costume. Não me recordo de alguma vez ter tido uma bicicleta só minha... Ena! Tem mudanças!
Há-de haver uma explicação para tudo isto, penso; enquanto vou pedalando rua abaixo até ao quiosque dos jornais. Podia ter sido pior, nem os pneus estavam muito vazios. Há-de haver uma explicação... Logo estarei de volta, ao padrão que tão bem conheço.
Tenho de encontrar o Chico, troco-lhe isto por um maço de cigarros e o gajo vende a bicicleta e compra uma ganza. O gajo consegue vender tudo por causa da droga, a necessidade dá-lhe a astúcia. Já eu, não tenho necessidades. Além disso, com a bicicleta, o desgraçado do Bartolomeu esfalfa-se para me apanhar. Outros me seguiram, o Acácio, o Manuel, a Catarina, a Júlia... Só o Bartolomeu responde pelo nome que lhe dei. Os outros partiram, fartos da minha vida podre. Como a família, esses malandros que se me desapareceram para a solidão. Não guardei as moradas nem os telefones, da família; que os cães, esses nunca foram meus, os nomes que lhes dou fazem-nos ser da minha trupe. Os da família querem-me menos que estes soberbos que passam; que nem me acotovelam pelo temor que lhes causo, e para quem um metro de distância me torna transparente. Pensam que não tenho escrúpulos, nem sentimentos. Que sabem eles de mim, se nem me vêem?
Que fome...
Ah... Um jornal de ontem!
Separo as folhas. Quase nem reparava, no nome igual ao meu, ali, em letras garrafais. Hum... Este teve problemas com os negócios... Pois, a fábrica... Coitadinho...
Não devia ler jornais. Fazem-me reviver um mundo que já vou esquecendo.
Pior que acordar rico no dia em que se perdeu tudo, será acordar com pouco ou nada para perder.
Amanhã... Amanhã, não quero recomeçar, outra vez.
© CybeRider - 2009