domingo, 27 de setembro de 2009

Pequeno e Imprevisto

Este exercício é resposta daqui
.
Neste belo mas aziago dia
Havia por cá eleições
Eu, apesar de incauto sabia
Que em defesa da democracia
Se iriam mover multidões.
.
O que das sondagens se previa
Que o poder absoluto findasse
Trazia dois grandes em agonia
Mas não me causava fobia
Que o meu voto não aplacasse.
.
Para escolher quem ganharia
Vieram da cidade e das hortas
E eu apostava a lotaria
Que iriam fazer porcaria
Mas nunca que ganhasse o Portas.



© CybeRider - 2009

Enfarruscado

Acordei noutra dimensão.

Estendi o braço para puxar o cartão e os jornais que me aqueceram pela noite.

Sete da manhã, pelo relógio da torre. Se é que ele sobreviveu a outra noite, ou talvez esteja a dormir, como eu deveria estar… Para sempre. Chamei o Bartolomeu, que me tem acompanhado nestes derradeiros dias de exílio. Não o encontro... Chamei de novo… Ah! Lá vem ele, a abanar a cauda… Afago-lhe a cabeçorra sorridente, de língua de fora... "Só tu para te rires, meu amigo...".

O jardim está todo lá. E a rapariga do fato de treino rosa, já corre por ali, junto ao canteiro das hortênsias, de auscultadores nos ouvidos. Nunca me viu, como ninguém me vê... A rega não está ligada… Dirijo-me a ela, passo-lhe a três, quatro metros, a contravento, não quero que me sinta o cheiro nauseabundo, que só eu já não sinto. Tomo o meu pequeno-almoço: o cheiro inebriante que ela exala, vai-me durar para uma boa hora.

Há muito que ninguém sorri para mim. Só o Bartolomeu, "não é, meu velho?..."

Acordar noutra dimensão pode trazer-nos dissabores. Começo a achar que também este dia me vai correr mal.

Olho para as minhas mãos. A pele grossa e suja, as unhas partidas de sabugos negros. Podia ir ao mar, mas não quero que pensem que o Adamastor se ergue das ondas. E se fico pior da tosse?... O desalento é grande, arrasto-me pelo passeio, sujo como eu. Condizemos, e o Bartolomeu não se importa. Apanho a beata quase inteira que alguém deixou ali para mim, à porta de um táxi que partiu. É fácil encontrar tudo nesta natureza. Onde tenho o isqueiro?... Revolvo os bolsos. Neste não, que já estava roto, tem de estar neste... Ahhhh! A primeira passa estremece-me de prazer.

Preparo-me para a aventura. O jardim ainda cheira a manhã. Vou ao lixo, passo sempre cedo, porque as coisas grandes são deixadas durante a noite, para que ninguém encontre quem as abandona. O sofá, a mesa, o rádio que funciona quando encontro pilhas, apanhei-os todos assim. A comida é junto ao hipermercado, às duas da manhã. Aí chegamos quase a andar à pancada... Que tenho o meu orgulho, não vou à "sopa dos pobres", esses são os que não têm espírito de aventura, eu sou um sobrevivente. Também não quero ser "inserido", antes que me esqueçam, quero perder os números que já me ligaram à sociedade, há muitos anos, e o nome. Que me esqueçam, para sempre! Moradas... Sim, essas tenho-as todas, cada rua e avenida, cada praceta, rotunda ou cais, todos meus sem que eles saibam.

No desperdício valorizo os medicamentos... Hoje não há.

Olha... Uma bicicleta! Que aconteceu?... Começo a pensar que me estão a pregar alguma partida. Olho à minha volta, mas não vejo ninguém que pudesse querer rir-se de mim. Hoje não. Só vejo os que não me conseguem ver, do costume. Não me recordo de alguma vez ter tido uma bicicleta só minha... Ena! Tem mudanças!

Há-de haver uma explicação para tudo isto, penso; enquanto vou pedalando rua abaixo até ao quiosque dos jornais. Podia ter sido pior, nem os pneus estavam muito vazios. Há-de haver uma explicação... Logo estarei de volta, ao padrão que tão bem conheço.

Tenho de encontrar o Chico, troco-lhe isto por um maço de cigarros e o gajo vende a bicicleta e compra uma ganza. O gajo consegue vender tudo por causa da droga, a necessidade dá-lhe a astúcia. Já eu, não tenho necessidades. Além disso, com a bicicleta, o desgraçado do Bartolomeu esfalfa-se para me apanhar. Outros me seguiram, o Acácio, o Manuel, a Catarina, a Júlia... Só o Bartolomeu responde pelo nome que lhe dei. Os outros partiram, fartos da minha vida podre. Como a família, esses malandros que se me desapareceram para a solidão. Não guardei as moradas nem os telefones, da família; que os cães, esses nunca foram meus, os nomes que lhes dou fazem-nos ser da minha trupe. Os da família querem-me menos que estes soberbos que passam; que nem me acotovelam pelo temor que lhes causo, e para quem um metro de distância me torna transparente. Pensam que não tenho escrúpulos, nem sentimentos. Que sabem eles de mim, se nem me vêem?

Que fome...

Ah... Um jornal de ontem!

Separo as folhas. Quase nem reparava, no nome igual ao meu, ali, em letras garrafais. Hum... Este teve problemas com os negócios... Pois, a fábrica... Coitadinho...

Não devia ler jornais. Fazem-me reviver um mundo que já vou esquecendo.

Pior que acordar rico no dia em que se perdeu tudo, será acordar com pouco ou nada para perder.

Amanhã... Amanhã, não quero recomeçar, outra vez.


© CybeRider - 2009

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Resplandecente

Acordei noutra dimensão.

Estendi a mão para a campainha para pedir o pequeno-almoço. Não estava lá, a campainha… Estranho… Ia jurar que…

Chamei o Bartolomeu, o meu fiel mordomo, que me recebe sempre com o meu roupão nas mãos prestáveis, aquele que costumo vestir enquanto vou até ao corredor apanhar os jornais que o Manuel, o meu motorista, costuma trazer logo cedo. Chamei de novo… Nada…

Espreitei pela janela. O jardim está todo lá. Estranho não ver o Acácio no canteiro das hortênsias. A rega não está ligada…

Dirijo-me à cozinha, por esta altura devia sentir no ar o cheiro das torradas, afinal já acordei há uns bons quinze minutos. A Catarina recebe-me sempre com um sorriso maravilhoso, e a Júlia é uma cozinheira fantástica. Mas hoje a Catarina e a Júlia também não estão ali. Que se passa?

Acordar noutra dimensão pode trazer-nos dissabores. Começo a achar que o dia me vai correr mal.

Olho para as minhas mãos. A pele está fina, as unhas brilham do verniz de ontem. Vou até ao duche, já que o dia vai ser diferente, preparo-me para a aventura.

A água quase fria sabe muito bem. Visto-me, ainda a pensar que o Bartolomeu tem sempre uma boa sugestão para me adequar as vestimentas e os atavios ao estado do tempo. Assim tenho de ter cuidado para não trocar os pares de meias, nem os sapatos. Será que esta camisa me condiz com este par de calças? Olho-me ao espelho. Pareço-me bem.

Saio. O jardim ainda cheira a manhã.

Vou à porta da garagem entreaberta. O Manuel também não está. Que aconteceu?... Começo a pensar que o Bartolomeu, o Manuel, o Acácio, a Júlia e a Catarina me estão a pregar alguma partida. Só tenho ali um carro que nem sabia que era meu. Que coisa… Começo a suspeitar que vamos ter problemas… Não me recordo de alguma vez me ter sentado num meio de transporte tão desadequado… O quê?... Não encontro o botão do ar condicionado.

Há-de haver uma explicação para tudo isto, penso enquanto vou conduzindo rua abaixo até ao quiosque dos jornais. Troco as moedas pelo jornal. Sento-me na cafetaria e peço. O pequeno-almoço, por fim; não das mãos da gentil Catarina, que me saberia melhor, bem melhor… Podia ter sido pior. Podia ter acordado cego pelo brilho do ouro. Que faria sem os meus serviçais?... Há-de haver uma explicação. Logo estarei de volta, ao padrão que tão bem conheço.

Desfolho o jornal. Quase nem reparava, no nome igual ao meu, ali, em letras garrafais. Algo aconteceu com a fábrica. E com as acções… Assembleia de credores…

Ninguém me ligou pelo telefone. Não liguei o televisor… Os meus assessores não me informaram. Demitem-se ou despeço-os?...

Não é bom acordar rico no dia em que se perdeu tudo.

Amanhã recomeço outra vez.



© CybeRider - 2009

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

Nem por acaso...

Desdobrei o mapa sobre a mesa ampla.

Fechei os olhos. Estiquei o braço e deixei que o acaso escolhesse o meu destino. Passar da ideia à acção não foi obra do acaso. Chegar lá inteiro talvez fosse. Olhei o mar, companheiro de uma vida. Também ele sempre igual a si mesmo, indiferente aos acréscimos dos homens, que lhe são vil natureza.

A manhã calma propiciou o passeio pela marginal, solitária ainda. Apanhei o pequeno papel. Os pássaros murmuraram-me algo imperceptível. Era um pequeno talão onde a esperança de alguém parou por momentos, na escolha de cinco números e duas estrelas. Estava válido ainda. Não fosse o acaso e teria sido uma esperança em vão. Guardei-o na algibeira com a noção de que talvez o fado me quisesse murmurar algo, assim como os pássaros.

Tentei que o destino dos meus olhos vagueasse ao acaso. Não é um exercício fácil, parecemos direccionar os sentidos para as coisas que nos interessam.

As flores do jardim emanavam o aroma da frescura. Algumas gotas de orvalho estavam suspensas, aqui e ali, ao acaso. E os raios de Sol, que casualmente atravessavam a folhagem das árvores, embatiam-lhes e dançavam na direcção dos meus olhos, tentando feri-los e privar-me daquele pequeno milagre casual da natureza.

Escolhi uma cadeira na esplanada ainda vazia. Pedi a bica. Reparei no casal que passava casualmente por ali; trocavam risos. Senti-me bem. Diria que só por acaso não tropeçaram em mim. Saboreei a pequenos goles as primeiras gotas do café, por acaso bastante quente. Bebi o restante de um trago.

Reflecti então sobre o destino. O que nos reservará o acaso; esse milagreiro pardo que nos traça um caminho ignorado, esperançoso, desilusório, gratificante ou não, expiatório às vezes, inquisitório sempre, desejado, concreto e talvez indefinido?

Não existem acasos na natureza. Nunca houve laranja que brotasse de um galho ao acaso, nem onda que se abatesse em pedra “porque sim”. Não haverá raio que a natureza me mande, sem nexo. A física dirá por que motivo me terá calhado a mim.

Somos nós afinal que o traçamos, esse engulho que nos justifica tudo o que não explicamos. São as escolhas que abraçamos, e os desvios que nos infligem, que nos justificam tudo o que acontece.

No salão de jogo, a virtualidade que nos atribui um terno de seis aos dados não é um acaso. Fomos nós que fabricámos os cubos e lhes marcámos os ícones que simbolizam os números, criámos os números também, para interpretarmos a natureza casual, e acreditamos que aquele ângulo natural em que o vértice ou a aresta do pequeno cubo embate no pano verde e que define qual a face a ficar para cima, há-de determinar o sorriso que o futuro não anteviu. Nós demarcamos as regras, que pretendemos casuais para tudo aquilo que a natureza nunca pariu.

O dia esgotou-se num ocaso magnífico, esse bem real.
Segurei o pequeno papel nos dedos e fi-lo deslizar pela abertura da caixa de correio do prédio incógnito que me passava ao lado.

Também me passou ao lado o sorteio. Nunca cheguei a saber se alguém foi premiado naquele local, onde estive por casualidade.


Por um acaso posso ser um maçador. Estou convencido de que o sou a propósito. E afirmo à exaustão, para que não me esqueça, que o acaso não existe; a não ser como fundamento hipotético na nossa mente. E sempre criado por mão humana, será eventualmente a única criação exteriorizável, mas irreal, genuinamente feita a alguma imagem e semelhança.

E gostava que me corrigissem se, por mero acaso, estiver errado.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 15 de setembro de 2009

O "Ter" das coisas

Encontrei-me casualmente comigo há dias.

Havia tempos que não me via. Estava sentado num penedo. Agachei-me e perguntei-me o que tinha. Olhei-me nos olhos... Não... O olhar estava parado, fixo num ponto de fuga, a quilómetros de distância. Respondi que não tinha nada, enquanto recordava os meus, que amo, e uma vida por acabar.

Olhei-me com o mesmo olhar vazio, sem emoção que classifique o bater do coração.

Tenho vindo a adequar o discurso, pela constatação clara de que já não importa o "ser" das coisas. Importa-lhes principalmente o "ter". Daí que o saber, aquela faixa estreita onde a crença e a verdade se sobrepõem, pouco importe; porque é relativo, muito relativo...

Às voltas com este transe... O sábio que antes invejámos ao afirmar "só sei que nada sei", demonstrando clareza sobre a enorme variedade de conhecimentos que houvesse para apreender, face à diminuta capacidade do Homem para tal grandeza, hoje é o que apregoa ao vento "só sei que nada tenho".

Por isso a inteligência se mede cada vez mais pelo sucesso, pelas influências apropriadas, do que por formas de pensar. Louco já não é o que se passou do juízo, que se designa, também em contra-senso, por "infeliz". Louco é o que vive sem nada, porque nada soube amealhar, esse sim temido e repudiado por todos.

Consequentemente tenho de admitir que "tenho, logo, existo". Deixo para trás o paralelismo em que a consciência do ser se relacionava com a actividade cognitiva, negando o insano. A afirmação do sábio remete-nos agora, por silogismo, à definição de existência apenas para quem possui.

Esta afirmação completa-se em círculo; pela conclusão de que o sábio, que afirma que nada tem, na realidade estar em rota de negação com a sua própria existência, o que confirma a tese de que o saber é, não apenas tendencialmente inútil, como uma via directa para o ostracismo, para a marginalização, para o degredo.

A sociedade ensina-nos que sem ter não haverá saber, e isso definirá a nossa permanência. O saber, que nos negaria a essência, é-nos assim fornecido a conta-gotas. Na medida exacta a permitir que continuemos a fomentar a ambição, e dessa forma levar-nos a justificar a nossa existência.

Tecidas estas considerações sumárias comigo, resta-me a imodéstia de vos confessar que não existo. O que me torna no imortal mais procurado do planeta. Sou também, por isso, o único sábio ignorante, e aqui aproximo-me do conceito antigo, mas por razões diversas...

Deixei-me a olhar inexpressivamente para o tal ponto de fuga. Afastei-me desse louco que nada tem.

Ao fundo as luzes da cidade atraíram-me como cantos de sereia. A tal cidade... Onde de tudo existe, a mesma onde nada se sabe, aquela onde tudo se conquista.

E fiquei a pensar, numa ambição antiga... Se ao menos tivesse juízo...

© CybeRider - 2009

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

E Setembro ficou mais frio

Arroz de tomate com biqueirões fritos.

Estavam-me a saber bem, na tasca do Alfredo... No ar um certo cheiro a borrego guisado.

Não sei se já vos tinha dito, mas detesto borrego. Ainda para mais guisado. Mas biqueirões fritos... E com arrozinho de tomate...

Olhei para a imagem no suporte de parede, com aquele ar com que sempre olho para as imagens nos suportes de parede, a indiferença, as ideias a batalhar com o que os olhos querem deles. E vi aquele símbolo da minha civilização ocidental ferido. E lembro-me que um biqueirão me ficou a arrefecer no garfo. Sem que eu visse a minha boca entreaberta. Os ouvidos a estenderem-se-me pela sala, a tentarem abafar as conversas dos pedreiros e pescadores que atulhavam aquele diminuto espaço, pleno de cheiro a gente e tabaco, para tentarem abraçar o pequeno altifalante, que me dissesse que aquela imagem mal definida, pior que qualquer filme de Hollywood, era um pioneirismo mal conseguido dalgum filme de série B.

B... do biqueirão que me arrefecia no garfo...

Era tudo verdade, menos a repetição, que o não era. A repetição era a confirmação de que o meu mundo estava a sofrer, mais do que imaginei que fosse possível.

Não me recordo de como se acabaram os biqueirões do meu prato, nem se comi o arroz frio. Mas recordo-me de ter saído da tasca do Alfredo, onde as conversas tinham baixado de tom mas se mantinha o cheiro a gente e a tabaco, e de ter corrido para um espaço em que a televisão fosse minha, para me poder enfiar pelo écran em privado, como quem procura a latrina para descarregar a mais eminente diarreia. Julgo que ainda paguei a conta. Senão, talvez o Alfredo me tenha perdoado; porque nunca mo disse.

E não me lembro de muitas vezes em que a tristeza me tenha motivado a correr mais do que a curiosidade. Sei que a alegria e o desespero me produzem esse efeito. A tristeza... Não sabia.

Aprendi a esquecer que o avião do Pentágono não tinha asas, nem bagagens. Aprendi a esquecer que o avião da Pensilvânia tinha um sistema vanguardista para a época, que permitia comunicações de telemóvel. Aprendi a esquecer que todos os seus ocupantes e os seus pertences se esfumaram na terra que os recolheu. Aprendi a esquecer que quem quer que tenha calculado ao rigor cada milímetro daquela operação se esqueceu que uma hora mais tarde teria aniquilado mais trinta e seis mil pessoas...

Mas nunca mais me esqueci de que a civilização, que me criou um ícone de orgulho que guardo religiosamente em tantas fitas de cinema, tem a triste capacidade de tudo destruir em segundos, e de acabar com milhares de vidas inocentes, por meros fundamentalismos.

E hoje, sei por A de Alfredo mais B de biqueirão, que corro mais depressa. Principalmente, se vir um avião a voar baixinho.


© CybeRider - 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Drive-In

O carro é uma coisa maravilhosa.

Lembro-me da estima com que um primo, afastado no tempo e no espaço, nem tanto no sangue, escovava o pêlo sedoso da mula que atrelava à carroça para o tal passeio à vila. De férias por lá, na planura tórrida do Alto Alentejo profundo, ainda recordo a primeira vez que me sentei na tábua que servia de poltrona à simples carruagem. E lá fomos...

A trepideira e o ruído dos aros metálicos das rodas gigantescas a arrepiar o empedrado é quase inimaginável. Dir-se-ia que os meus dentes de leite iam a arar o granito empedernido e invulnerável que as suportava. A compasso com o matraquear do galope, a quatro cascos bem ferrados, no pavimento.

O meu primo, homem possante de braços espessos atiçava a besta que avançava sem custo pela rua quase deserta. Recordo o movimento pendular da cabeça do animal, para cima e para baixo, a afirmar a certeza de chegarmos ao destino. Os guizos do malim a soar com brio, a rédea a fustigá-lo para passarmos da velocidade-de-cruzeiro a mata-cavalos, por ali fora. As minhas pernitas de franganote e os dedinhos ainda frágeis a agarrarem-se a cada trave, para não desaparecer com a nuvem de poeira que se libertava do restolho sobrante das cargas brutas vencidas.

Lembro-me do sorriso dele, a embrulhar-me puto naquele delírio. Lembro-me da confiança que aquele sorriso franco e quente, na tez encortiçada, me punha na alma; e que me fazia gritar por mais, sem perigo que me assomasse.


Rodei o volante. Entrei naquela produtora de alimentos a metro, logo a seguir à placa que indicava "drive-in", como num cinema à americana. Nunca tinha lá estado. Parei no primeiro guichet e reparei que vinha outra viatura atrás. Olhei para o rapazola de boné vermelho, à americana, e disse-lhe à antiga portuguesa que como tinha "outro" atrás talvez fosse melhor parar no guichet seguinte. Ele olhou-me com aquele olhar com que eu costumava olhar para o meu avô, quando me dizia aquelas coisas à antiga portuguesa. Disse-me que estava ali bem e anotou o meu pedido. Depois percebi... Percebi que estava atrasado, que os anos tinham passado por mim sem delicadeza, a mata cavalos.

O outro guichet era apenas para levantar o pedido. Não havia espaço a gentilezas, a coisa já estava pensada assim. Se tivesse sido gentil, teria estragado a mecânica do espaço. O rapazola, de boné à americana, também pensou nisso mas era tão complicado tentar traduzi-lo para o meu vocabulário à antiga portuguesa, que se limitou a olhar-me com aquele olhar com que olhei tantas vezes o meu avô e limitou-se a balbuciar: "Deixe-se estar. O senhor está bem aí..."

E de facto acho que sim. Agora que penso nisso, acho que estou bem melhor aqui do que com um boné à americana a cobrir-me o cabelo grisalho.

Mas estaria ainda melhor sentado sobre a tábua rachada, que servia de poltrona no carro do meu primo.



© CybeRider - 2009

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Há uma razão para uma mosca nos cair na sopa

Sou acometido poucas vezes pela ideia de que os segredos do Universo me foram já todos manifestados.

Não que os entenda, entenda-se. Mas acabo por acreditar que de uma forma ou de outra já vi a matéria-prima com que tudo se compõe. A maioria das conversas soa-me por isso a déjà vu. As politiqueiras, as crises económicas, as lástimas sociais, a namorada do amigo, o preço da gasolina. Até por isso já não uso a memória com a intensidade com que costumava abusar dela. Não esqueço os nomes nem os factos por questões de senilidade. Esqueço-os porque me são meros plágios retirados de coisas mais antigas; pessoas que se repetem, com ligeiras diferenças fisionómicas; factos que nunca terão o impacto da primeira vez que os vi desenrolarem-se aos meus olhos.

Algumas recordações menos recentes ficaram-me como princípios fundamentais.

Hoje apraz-me recordar uma, pela estranheza que me causa sempre que me lembro da coisa.

Tive um amigo, em tempos, que cultivava a filosofia oriental com um rigor e um saber invulgares. Passámos horas a contrapor a racionalidade das minhas questões ocidentais com os pressupostos epistemológicos daquelas sociedades longínquas.

Nem posso esquecer o momento em que me salvou a vida, naquele dia aziago em que me encontrava a comer uma suculenta bifana cheia de mostarda num snack bar à esquina da estação do Rossio, batida com uma imperial bem tirada - ai, que lhe sinto o gosto... - e o vejo entrar alarmadíssimo pela porta dentro, agarra-se-me ao braço e me pergunta com aquele olhar inquieto, que diabo estava eu a fazer, a suicidar-me daquela maneira, arrastando-me porta fora para me ir atafulhar de pastéis macrobióticos para o Celeiro, ali a poucos passos.

Pois um dia caminhávamos à sombra de umas nogueiras em Sintra, onde ele tinha uma pequena fábrica de pickles biológicos (que eu nem sabia que havia outros) e íamos apanhando nozes, e discutindo as habituais dialécticas do conhecimento humano. A certo ponto quebrei uma noz já habitada... Mau... Ele fitou-me e esclareceu-me que aquilo seria a prova cabal de que a partir daquele momento o meu organismo já não necessitava de mais nozes... Se necessitasse, por estranha premonição, teria sido capaz de escolher outra sem bicho... Pois... Ah! E mostrou-me como o organismo dele continuava a seleccionar as imaculadas com que se ia empanturrando.

De facto penso muitas vezes nessa minha incapacidade, de pré-seleccionar as coisas boas, de forma a não sofrer desapontamentos, talvez por já ter tido benesses em excesso e não precisar de mais nenhuma.

E posso até esquecer nomes e factos, não por senilidade, mas porque me são meros plágios de coisas antigas.

Sempre que me cai uma mosca na sopa, porém, fico a pensar que há uma razão para isso.

Talvez seja o único segredo do Universo que ainda não me foi revelado.



© CybeRider - 2009