quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Conto de Natal

Havia uma altura do ano em que tantos tinham o mote para o que havia de ser a redacção mais emotiva do ano, a habitual exposição dos momentos mais ou menos mágicos, das suas consoadas de meninos, aos olhos coscuvilheiros de colegas e mestres.

Uns, sem imaginar que o barrigudo de vermelho provinha da publicidade americana a uma bebida proibida pelo regime, outros que acreditavam também num Jesus, Menino, que trazia prendas, e aqueles que já saberiam por esses dias que teriam de inventar tudo outra vez.

Para mim, ainda acreditava na magia das bugigangas que o céu haveria de trazer e que seriam pedaços de paraíso que espalharia pela cama naquela das noites mais bonitas do ano, se me portasse bem. Nessa altura nunca teci juízos acerca da importância que poderia ter, para a Dª. Graciete, a tal redacção natalícia, nem para ela nem para o tal regime que nos privava do tal refrigerante e de outras coisas mais prementes que eu, ainda sem teima, desconhecia por inexperiência, mais que desatenção. Ainda não tinha ouvido que o Natal seria quando um homem quisesse, por isso aquele relato escrito me parecia um dever, talvez mesmo cívico, mais que uma fonte estatística para o mestre e um sensor económico-social do regime que refiro, aqui já em exacerbo do meu espírito crítico, talvez. Há muitos anos que deixei de saber se ainda se faz a redacção por essa altura. Este ano porém a coisa já me seria mais fácil.

Ainda a tentar recompor a minha fé nos homens, ainda a tentar remendar a compreensão para com os marginais à força ou por falta de tino, ainda a tentar repor, com similares raros e sem história, objectos que me acompanharam uma vida, e cujas memórias que encerraram constituíam uma fonte de inspiração, alarvemente subtraídos por quem apenas viu objectos e o único valor que para mim não tinham, fui abordado por um homem com fome.

A fome é pungente, principalmente quando o sistema que acreditamos que a poderia combater é tão subvertido como vamos tendo a noção de que o é. Pactue-se ou não com a caridadezinha inútil mas exorcizante, perante o facto há sempre a alternativa mais fácil, mas que deixa sempre uma farpa, e a mais complexa que pode não encher barriga nem aquietar as almas mas que difere de cruzar os braços em forma de manguito. Num dia em que optei por esta, saiu-me em sorte este estrangeiro que não vi até que se tornou impossível não ver, ao lado do meu almoço extinto, de chinelos apesar da chuva e meias ensopadas, e com o olhar de quem já perdeu a esperança no apelo automático a que a repetição já vai levando também a contundência.

Aos filhos fazemos muitas vontades, por ele levantámo-nos da mesa, naquela casa onde o outro era um indesejado, e fomos. Três homens à chuva; afinal quatro, a contar com o velho de muleta que tinha ficado a aguardar do lado de fora pelo dinheiro que os únicos clientes daquela sala teimaram em não lhe dar. Pelo caminho recebi votos de “bom natal” por cada impropério que me ocorria a maldizer o dia em que aqueles dois tinham saído de uma terra longínqua para outra onde tantos meus conterrâneos na mesma circunstância saberiam pelo menos compreender o que lhes dizia, contra o adequado português de iniciante que aqueles tinham aprendido. Por momentos cheguei a imaginar que mau teria sido o meu começo se a Dª. Graciete me tivesse iniciado pelas palavras que aqueles dois repetiam na perfeição.

Pior foi o confronto com as febras e arroz, o melhor prato do snack-bar onde entrámos, à parte da tarte de vegetais que também não lhes agradava. Aí, compreendi o pedido de frango que eles repetiam, mas que era mais longe e com mais chuva. Todos os outros pratos quentes tinham carne de porco. “Somes muçulmano”… Búlgaros do raio que os partisse! Lá se decidiram pelas febras. O funcionário, mais simpático que a senhora que veio da cozinha a dizer que não os queria ali, mas a quem as minhas duas, vá três, palavras sibilinas acalmaram, ainda perguntou se eu queria que ele juntasse esparregado, mas eu disse-lhe que não, já que era para deitar fora, que fosse só assim; sei lá o que é que os “muçulmano” iam achar daquela coisa verde peganhenta.

Repetiram o “bom natal” que eu recusei por na religião deles aquilo ter significado nulo. Mas aprendi que eles deveriam ter a minha religião, porque a deles ainda lhes enche menos a barriga que a minha.

Ah! E também que Maomé e Salazar tinham mais em comum do que eu pensava.

© CybeRider - 2010

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

O valor de um amigo

Faltei-lhe ao casamento.

Não, já não foi ontem. Foi há muitos anos.

Ainda me pergunto como fui capaz. Afinal, já nos tínhamos comprado um ao outro com tantas confidências. Pequenos negócios a início, como que a testar a fidelidade entre cliente e fornecedor. Riscos maiores depois, aos poucos, enquanto crescíamos no poder da idade. Tínhamos mesmo investido já, um no outro, algumas vezes a fundo perdido, aquela paciência e atenção que só dedicamos aos melhores. Ambos sabíamos que um bom cliente, como um bom fornecedor merece, de vez em quando, uma atenção.

Escolhemos os amigos como produtos exóticos, ou como bens em segunda mão. Com propriedade, diria. Todas as cautelas são poucas, como se soubéssemos antecipadamente o valor do que estamos prestes a depositar nas suas mãos. Pouco, decerto para muitos; imenso, quando se trata das nossas próprias emoções e sentimentos, ainda que possamos não ter uma justa consciência disso.

Até não gosto particularmente de casamentos. À parte do banquete habitual, pouco há ali que me comova. Quando se trata de um amigo porém, de um dos verdadeiros, daqueles com quem já temos uma larga experiência negocial de trocas e destrocas de atmosferas, aí existe de facto um dever. Pode tratar-se de um momento difícil, encoberto naquela teatralidade de festa e exuberância. Daí que o recorde. Falhei-lhe num momento vital. Não deve ser apenas nos bons momentos, afinal, que o amigo deve estar presente. Nestes, de incerteza, também.

A vida trata de nos suprir, como numa imensa montra, com os potenciais amigos que podemos ter. Nunca nos dá um exórdio que nos diga por onde aquela pessoa passou, se terá defeitos decorrentes de uso prolongado, ou se será eventualmente perniciosa para a nossa integridade após ingestão, como um fruto tropical que nunca tenhamos visto. Daí que o risco possa ser grande, mas haverá algo que nos aproxima, mais um mistério talvez, e que nos leva àquelas trocas em espécie que referi no início. Com a habituação acaba por vir a confiança e a recíproca lealdade.

Recordo-me que envidei todos os esforços para que naquele dia não faltasse. Dizem que não há ninguém insubstituível. Para ele, e para um compromisso profissional inadiável, eu fui insubstituível naquele dia, e optei. Nesse dia o poder do dinheiro falou mais alto e comprou-me por um valor irrisório, em abono de um futuro, por definição sempre incerto.

Compramo-nos e vendemo-nos aos amigos numa potencialmente infindável troca em espécie. Não há dinheiro que possa substituir essa troca. O dinheiro tem no entanto uma estranha capacidade expurgante; quanto mais se recebe mais solitário se fica. Não sendo necessariamente uma contrariedade, não deixa de ser uma condição. Há um equilíbrio ténue e insofismável entre o que podemos ganhar e aquilo a que podemos dar-nos ao luxo de perder em cada arbítrio. 

Encontrámo-nos uma única vez algum tempo mais tarde. Partilhámos uma hora de almoço em que me contou imensas anedotas, em disfarce de tudo o que poderíamos ter dito. Ouvi-o atentamente. Não houve uma troca autêntica, antes uma declaração unilateral de despedida, encoberta pelas piadas que senti com amargura, incapaz de lhe responder, por compreender a profundidade daquela demonstração de superficialidade para mim irreconhecível. Mudou de casa pouco tempo depois, ao que soube.

Não há maior pobreza que não ter senão, e apenas, o dinheiro; mas pior ainda se for pouco.

Apesar disso duvido que no meu lugar ele não tivesse feito a mesma coisa. Teria havido porém uma diferença abissal:

Eu era muito pior que ele a contar anedotas.


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

A feira e o circo

Nasci em plena feira.

Contam-me que tudo era muito caro, apesar de haver brinquedos, farturas e algodão doce, tinha de me contentar com pouco. Nem sempre pude ter os brinquedos que via nos outros meninos. O meu pai era feirante e a minha mãe limpava a tenda e mantinha-nos a logística.

Foi assim durante muitos anos. Tudo funcionava muito bem. Cada feirante visitava as tendas dos outros e pagava para poder ter o que quer que fosse. Havia barracas para tudo, houvesse dinheiro e nada faltaria. A rotação do capital mantinha o sistema. O meu pai pagava pelas farturas, pelos carrinhos de choque, e por algum brinquedo que os trocos sobrantes pudessem comprar. Por sua vez os outros feirantes pagavam pela força de trabalho do meu pai, e assim éramos todos felizes, pelo menos pensávamos que sim. Nesse tempo não havia tantos palhaços nem acrobatas, pelo menos ali na feira. Era tudo gente ordeira e cumpridora, muito ignorantes é certo. A educação também era muito cara, só alguns lhe podiam chegar, e essa era a fundo perdido daí que, pelo retorno invisível a curto-prazo, fosse preterida em benefício da labuta diária. Cresci habituado a ter de comprar bilhete para tudo. Se queria uma volta de carrossel tinha de tirar bilhete, se queria dar um tiro na tenda dos alvos tinha de tirar bilhete, se queria assistir ao espectáculo da mulher barbuda também.

Um dia chegou o circo à feira. Era um adolescente nessa altura, mas ainda me lembro. Todos ficaram muito felizes. As pessoas gritavam, aplaudiam, sei lá...

Nesse dia vi coisas que nunca tinha visto, os meus olhos espantados abriam-se perante a visão de animais exóticos, palhaços multicolores, acrobatas que me pareceram absolutos super-heróis. A princípio foi uma grande confusão, mas com o passar dos dias comecei a perceber que o circo era uma coisa boa. Pagava só um bilhete e tinha acesso a todas aquelas maravilhas. Podia admirar os palhaços, sentado na bancada comum, assustar-me com os ursos e com os leões, apaixonar-me livremente pelas trapezistas, sonhar com as habilidades dos ilusionistas, espantar-me com as manobras arriscadas dos acrobatas.

Mudei-me definitivamente para o circo. Os meus pais também eram admiradores confessos. Mudámo-nos todos. A minha mãe, que antes era responsável pela logística, continuou a sê-lo mas arranjou igualmente um número só dela, também no trapézio. O meu pai era um artista no arame.

Permanecemos assim durante muito tempo. Cresci e tornei-me num saltimbanco multifacetado, palhaço nuns dias, malabarista noutros, menos hábil ilusionista, mas lá tentava a minha sorte. Continuava a pagar bilhete para assistir ao espectáculo, mas era mesmo assim. Todos pagávamos para que todos pudessem assistir. Não havia borlas, mas havia justiça, e de vez em quando tínhamos direito a um algodão doce. Um bilhete, de valor idêntico para todos, dava-nos acesso a todas as diversões. Nada nos era vedado. Foi o mais próximo que estive de um autêntico sentimento de liberdade.

Havia o conforto daquele imenso toldo a proteger-nos da chuva e das intempéries. Deixei de andar com os pés nus e gelados dentro das poças de lama suja.

Um dia disseram-me que tinha de pagar para usar a pista dos carrinhos. Era um estranho, um palhaço, este tinha umas pinturas tenebrosas que não me fizeram rir. Tive medo, ele não era o dono do circo. O circo era nosso. Fiquei muito triste, porque de repente percebi que alguém estava a tentar roubar-nos o circo e acabar com todas as maravilhas que levámos tantos anos a construir. Se vamos começar a pagar por cada coisa de que necessitemos, mais vale que nos tirem já o toldo de cima e me desfaçam as ilusões.


© CybeRider - 2010

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Aprendiz de feiticeiro

-Escreve mais!

E eu escrevia. Mais uma linha, mais um conto e o consequente ponto. Mais um pesponto e uma cruzeta, mais uma volta e meio laço, mais um enlace e um nó, preso à garganta, como um atilho gasto e untuoso; uma forca, era mais isso.

Apertava-me o mundo ao torso, ligava-me à seiva dos vivos, a caminho para a morte anunciada, mas por verificar.

-Escreve mais!

E a caneta deslizava, como se tivesse vida, como se corresse a pedir socorro enquanto se esvaía pela alvura sem saber que vinha alguém atrás para interpretar o derrame, mas sem ganas de lhe estancar a sangria.

Eu corria atrás dela, a admirar-lhe as piruetas, antes mesmo de conseguir que os meus pensamentos me gritassem:

-Escreve mais!

Mas num tom diferente. Este, mais ditatorial, menos paternalista; soberano.

E lá ficava o relato do dia em que o Jorge me tinha contado como tinha encontrado a mulher à espera nas Caraíbas, enquanto ele pensava que ela tinha acreditado que ele tinha ido passar o fim-de-semana com o Pedro, para relaxar com a pesca na albufeira. E o Pedro a olhar para ele atemorizado, lá nas Caraíbas, no local mais improvável para encontrar algo que ainda não se tenha perdido.

Um parágrafo adiante, já o Jorge sem mulher, repetia-se a história. Desta vez foi o isqueiro que lhe apareceu na mesa do bar, também nas Caraíbas, que fixação a do Jorge. O isqueiro que tinha perdido, ali pegado à mão do Pedro, ao lado da Marguerita...

Adiante. Segue-se o Jorge, sozinho nas Caraíbas...

A pensar na mulher que pensava que não tinha perdido e que acabou por perder; o isqueiro que tinha perdido e que acabou por encontrar; o amigo que tinha um dia encontrado mas agora, pelo isqueiro, perdido para sempre; e no Pedro, esse, que tinha afinal encontrado a mulher que ele, o Jorge do conto, perdera antes ainda da primeira ida para as Caraíbas.

-Escreve mais!

E a caneta a esvair-se, no único destino que lhe poderia ser fatal: aquela folha lívida de espanto, expectante pelo que lhe ia sendo aos poucos revelado. A minha mão criminosa a delatar, a tecer considerações promíscuas sobre o que não me pertencia. Sempre a intrusão sentida a impelir-me a consciência a ditar-me a um adequado silêncio a que teimava em negar-me.

E eles a pedir que escrevesse. Mais... Mais... Mas os olhares perdidos sobre as suas vidas, que observo e relato, levavam-me a crer, enquanto a caneta se desfazia em reviravoltas, que afinal não eram pedidos sinceros. Porque haveria alguém de desejar que eu contasse mais contos e somasse mais pontos aos que já lhes assinalavam as faces circunspectas?

Mas por nada importar a ninguém se impunha a minha necessidade, sempre amante do efémero.

Um dia um amigo perguntou-me:

-Porque escreves tu?


E fiquei a pensar como seria a minha vida se não tivesse aprendido.




© CybeRider - 2010

sábado, 17 de julho de 2010

O primeiro voo do albatroz

Ao Mário Rodrigues que encontrou um aviãozinho de papel


Um dia peguei nele e deixei-o sozinho no meio do mundo.

Já não havia a minha força a embalá-lo e a subtraí-lo à chuva. Voltei para as coisas, simples, pequenas e fugazes, como penugem, a recordar-me que todo o significado da minha vida estava ali para trás, a cada metro de cada quilómetro que ia somando a noite à distância, se pudesse ter olhado para trás já não o veria, nem conseguiria prosseguir. O caminho árduo que conduzia ao meu destino embaciava-se agora com frequência. Finalmente parei, a uma distância que, por segurança, já tornava difícil o retorno. Parei, esfrangalhado.

Foi assim que ele abriu as asas e voou, pela primeira vez. Foi dos dias mais tristes da minha vida, e no entanto a felicidade teria mais lógica, a irracionalidade é por definição inexplicável. Ainda sinto que fui eu quem o empurrou do penhasco, embora todos me digam que não, que aquele acto de pura loucura foi o que havia a fazer, que isso era o bem, a norma, afinal . As asas, essas, eram só dele. A fé no seu voo terá sido minha, minha... Que nem sou um homem de fé. Onde arranjei a coragem? E se ele, a meus olhos implume, não tivesse conseguido? Que tremenda imprudência! A única, a fundamental. Todas as outras são brincadeiras a comparar com aquela cedência que cumpri sem reflectir. Se reflectisse ele não voaria, talvez nunca, e um dia já não saberia voar sozinho.

Mudou-se o centro do universo, que antes via agarrado ao meu umbigo,  mas agora só posso imaginar. As primaveras deixaram de ser só uma vez por ano, mas os invernos também. No entanto recordo que também eu abri um dia as minhas asas frágeis e me atirei desse penhasco, esfrangalhando, como compreendo agora, tudo e todos.  

É a sina de quem não conseguiu transformar o mundo num lugar seu, de quem se limitou a construir um pequeno quadrado inóspito e dependente. Culpei-me, naquela paragem forçada, por cada passo mais imprudente e por cada decisão mais conformista e inerte. Se, se, se... Tantos ses que me davam a possibilidade daquela partida precoce poder ter sido adiada, e todos a colocarem-me no cerne daquela consequência. Nenhum sofrimento por antecipação que me tenha ocorrido me aliviou sequer um pouco do peso que, embora não se compreenda, acaba por se carregar, porque deriva de termos falhado na conquista suficiente do reino onde a nossa lei seria a medida da protecção que queremos para o nosso clã, que entregamos assim aos verdadeiros senhores do universo, e às suas questionáveis leis, que nos submetem também a nós.

Compreendo que é essa vassalagem que me consome, como nem consumiu Abraão ao entregar o seu filho a um deus. É uma troca injusta porque nada tenho a pedir que me sirva, nem protecção divina que houvesse, porque toda a que quero é só para ele, nada justifica tamanho desequilíbrio. Naquele momento entreguei ao incerto o somatório de tudo o que fui e a continuidade que justificará, para o bem ou para o mal, o pó em que me tornarei. 

Passa um ano e outro, cada um não me apazigua a saudade que sinto de cada vez que ele inicia um novo percurso, ainda no momento da partida; nem o temor do momento em que o vejo tentar cada nova aterragem por que anseio, ainda bambaleante, depois de cada longa permanência perscrutando o céu infinito, que apenas adivinho.

Voltando ao ponto de partida, é a penugem que já não consigo olhar. Tudo permanece como que a aguardar que o tempo se inverta e que ele volte para brincar com as quinquilharias desvalidas que para mim são autênticos tesouros, fechados naquela arca, que chegou a ser um quarto, agora mero poleiro, de onde desejo, com frequência, perder a chave de vez.

A esperança que resta é de que a sua liberdade, que muito me apraz, lhe dê, a ele ou aos descendentes, a possibilidade de zelar melhor pelos seus e pelo seu universo, para que não tenha de abandonar um dia no meio do mundo alguém que seja parte integrante de si. Mas sei que peço o inexequível.

Sendo essa provação absoluta e incontornável, sei que no dia da dele, esteja eu morto ou vivo, também assim me realizo.


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Reencontro no Verão

Não via o António há imensos anos. Encontrámo-nos por circunstancialismo de intenções. Lembro-me dele quando partiu, deixando para trás tudo o que afinal não lhe pertencia, e quase tudo ao que ele pertencia também.

Fomos os melhores amigos e mais figadais inimigos, numa amizade perfeita. Partilhámos as mais intensas alegrias e conspurcámo-nos de vilezas que nunca foram maus-tratos, antes apontamentos pedagógicos de vida. Um dia levou-me, sem pecado, a namorada. Casaram, éramos muito jovens, faz muitos anos. Se não me falha a memória foi desde essa altura que deixei de o ver.

O António, diante dos meus olhos, é uma pálida sombra do António que conheci. O riso franco é-lhe bastante mais raro, carrega o sobrolho com mais frequência, desapareceu-lhe do semblante um certo brilho que nos cativava com facilidade. Ganhou a desprimor imensos quilos. Cheio de cabelos brancos, é como se o tempo o tivesse coberto de pó e aguardasse agora, grosso modo e mutatis mutandis, um espanador que lhe reponha o lustro de antigamente. Deixou de contar anedotas. O olhar, antes penetrante, tem agora matizes melancólicos ou talvez nostálgicos e vagueia-lhe ocasionalmente durante a nossa conversa, como se já lhe tivessem passado diante todos os temas do mundo. Mantém o tique de ir acariciando os dedos enquanto vamos falando, num acto masturbatório, imperceptivel.

Ainda lhe sinto uma fidelidade genuína. Por isso recebo como um bofetão a afirmação de que tem uma casa de putas; sinto-lhe um nervosismo repetente, um pequeno engasgo, na espaventosa afirmação, como se já o tivesse dito tantas vezes mas nunca lhe saísse a limpo. Tento o: mas logo tu um gajo casado e pai de filhos. Tento afinal: repor esta noutra realidade, atrasar o relógio para uma verdade que não seja aquela. Tento: dissuadi-lo do que afirma ser genuíno, como se quisesse eu que no meu mundo aquele facto fosse uma mentira, um pesadelo. Não, António. Tento o: tu não podes estar a afirmar que participas nessa aberração social que potencía a degradação humana. Digladiamo-nos em palavras, ele tenta convencer-me de que estou a ver mal as coisas, pede-me outro prisma que transforme as cores do que acabamos de constatar: a minha repugnância conservadora face ao seu conformismo vanguardista. Por momentos revivemos uma franja de passado. Outra dialéctica, em que desta vez só eu sinto como se lhe vivesse na pele, ele tenta sair da minha, o que também é inovador. Por momentos agonio-me. António… Sinto que o abandonei, sinto-me culpado das suas escolhas. O coração matraqueia, um, dois, três, respiro fundo.

Seguro as entranhas agarradas à frivolidade do inconcebível, divirjo para o dinheiro, garante-me que é o mais mal sucedido dos chulos. António… Quase não te encontro.

Que tenta que elas fiquem com ele o mais tempo possível, que elas não o poderiam fazer sozinhas, que ele é quem conhece os clientes e lhes sabe também os gostos, que é ele quem determina qual a que os irá servir nos seus desejos mais secretos pelas indicações programáticas e disponibilidade casuística, que só ele poderia justificar o porquê, que tem uma carteira de habituais, que é ele quem as dispõe e que as entrega, que as enfeita e que as encanta, que as leva aos cuidados necessários quando algo corre mal, que as defende dos vilões que querem lambuzar-se sem pagar, que as recupera no fim do prazo, que as protege de meliantes que as provoquem enquanto esperam na rua, que lhes resolve acidentes e incidentes, que não as ama, que lhe são meras ferramentas, mas que o dinheiro é quase todo para elas e para a logística, que lhes lava as costas e que as enxuga depois do banho, que é ele quem trata das suas meninas, com quem pode até dar uma voltita ocasional, sem desprimor pelo casamento sólido, que o filho pensa que tudo o que ele faz é limpo e exemplar, que nunca quereria que o filho lhe seguisse o exemplo, que ama a companheira e o miúdo acima de tudo o que na vida reste.

Por momentos penso que o António tem a melhor profissão do mundo, com aquela estranha casa de putas que ele acarinha sem amar, mas caio rapidamente na realidade; a sua voz é afável, não lhe imagino a boçalidade nem a força interna tenebrosa que reúna para enfrentar os dissabores que descreve, e de repente vejo que talvez seja afinal, aquele ofício, o pior de todos para ele. Pergunto-lhe se precisa daquilo para viver. Atira-me ao tapete com a afirmação de que o faz para manter a dignidade, que a vida assim quis, que não sabe fazer mais nada.

Pergunto-lhe onde passa as férias, mas afinal não tem, pergunto-lhe pelos fins de semana, mas afinal também não, porque não pode abandoná-las nem às marcações nem aos horários nem ao cunho pessoal que dá ao negócio, nem ao telefone; claro que não. É afinal a lealdade que lhe conheço, aqui levada a extremo. Pergunto-lhe o que diz à família e aos amigos e é aí que lhe perco de vez os olhos, que ficam pelo chão de repente profundo e negro.

Ele responde, não sei.

Não compreendo, em boa parte, o António. Mas acabo por compreender, a muito custo, no meio do discurso intrincado, que um meio de vida pode não ser, afinal, senão uma casa de putas que o destino nos entrega para gerir, e cabe-nos fazê-lo da melhor forma que pudermos.

© CybeRider - 2010

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Das coisas que não sei fazer

- Um cafézinho? - Perguntei.

- Não... Obrigado. Deixei de beber café.

Podíamos ter terminado a conversa por ali. Na aldeia estas poucas palavras envolveriam já os bons-dias, e toda a parafernália de objectos linguísticos, trejeitos, modulações, questões tolas sobre a saúde e menções honrosas ao lindo dia, que usamos na cidade para comunicar a nossa satisfação em partilhar um momento com um conhecido.

O Albertino era electricista, daqueles que o são agora e daqui a pouco serventes de pedreiro também. Já o conhecia e tinha-o em boa conta, nem tanto aos colegas que a vida dura lhe atravessava no caminho. Desses conhecia alguns de ginjeira, de quem, pela fiança do pobre Albertino, tinha até eu algumas ginjas a haver. Mas isso não era de sua culpa; mais da minha, crédulo e paternalista como nos fazemos quando chegamos, mundanos e batidos, à pacatez de uma pequena aldeia meio esquecida pelo tempo e pelos ares.

Dizia eu que podíamos ter terminado a conversa por ali. Mas o Albertino abriu a mão espessa e forrada a gesso, como se quisesse reflectir todo o brilho daquela alvura nos meus olhos e prosseguiu:

- Não sabia beber café! Tive de deixar de o beber...

E pendurou-me assim, a seco, aquela frase no estendal do juízo.

Por momentos olhei-o sem perceber exactamente se era deficiência do meu ouvido, ou do processamento da minha ideia, imaginei aquelas mãos brancas, como que roubadas a alguma estátua de jardim, e providas de movimento por algum desígnio divino, a agarrarem tão atabalhoadamente a pequena xícara que nem o líquido lhe conseguisse chegar à boca.

Finalmente a mão aberta resultou. Percebi, ao fim de alguns segundos, o tesouro que ele afinal me oferecia. Deixei de lhe ver a barba por fazer de três dias, deixei de lhe sentir o forte cheiro a trabalho intenso dentro da camisa de quadrados azuis e linhas brancas, com uma ponta a pender de fora das calças, perdi-lhe os dentes sarrentos; vi a pureza de um verdadeiro espírito prenhe.

Tingi a minha mão na dele, paguei já nem sei bem o quê, e fiz-me à vida.

Pensei em tudo o que, de facto, não sei fazer; mas que pensava que sabia até aquela altura!

Na forma alarve como me lambuzo de tanto do que gosto sempre que posso; dos pratos de comida; do vinho com que os rego; do tabaco; do descanso; do trabalho; do telefone; da água fresca nos dias de sol; dos serões com os amigos, sempre em exagero, até nos fartarmos e estarmos quase a cair, de sono até, às vezes; dos trajectos em automóvel; menos dos passeios a pé; das horas em frente ao computador; sei lá o que me passou pela cabeça...

E as palavras?...

E o sexo?... Meu deus!...

Tanto para me conter!

Poderia até ter tido eu a ideia longínqua e a ambição de que alguma vez pudesse achar-me possuidor de algo a ensinar ao Albertino. Que vã presunção!

Saí dali muito, mas muito, mais ciente da dimensão da minha ignorância e, por paradoxo fundamental, muito mais sábio.

Na realidade, não trocámos muitas palavras.

Foram exclusivamente as suficientes.




© CybeRider - 2010

domingo, 20 de junho de 2010

O Boneco de Corda


O Sol que brilha na rua
Hoje não brilhou para mim
E mandou recado pela Lua
Que esta noite, minha e tua,
Teria de ser assim.

Sofri um pouco, confesso
Por não sentir o teu beijo.
E desejei um processo
De encontrar um acesso
De resolver o desejo.

Olhando ao longe o vazio
Da tua ausência anunciada
Desejei perder este frio,
E o pensamento sombrio
De teres tu perdido esta estrada.

Recordei palavras tuas:
Que me amarás eternamente,
E imaginei-me pelas ruas
Pisando as pedras nuas
A fugir de toda a gente.

Lá longe oiço um barulho,
Tudo de ti me recorda,
Não me resolve o engulho.
E na noite azeda mergulho
Como um boneco de corda.

Vestindo esta ausência imensa,
Sinto a falta de um pedaço.
E também de forma intensa
A cabeça que não pensa,
E o coração que perde o compasso.

Ao Sol de amanhã vou pedir
Que afogue a minha incerteza,
Me dê ânimo para seguir,
Me traga as notícias por vir
E dê sabor ao meu pão sobre a mesa.

© CybeRider - 2010

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Soneto a carvão



Roubei do negro corvo as lúgubres penas
Com elas peneiro agora a minha penitente alma
Por consolação que estranhamente me acalma
Guardei delas, a medo, apenas as mais pequenas. 

Dessas, de tão sórdida, cruel e negra lembrança,
Arredei as mais impuras mas sãs loucuras,
Restaram, para meu desconsolo, as mais escuras
A constranger com força as réstias de esperança.

Assim me pavoneio, fingindo que não são minhas
As tristezas que desta forma inglória carrego
Antes tivesse eu pilhado a mais fofa das galinhas,

Não teria agora o corvo a tentar que as restitua.
Debato-me no meio da rua, a eito, como um cego
Tentando manter minha a roupagem que era sua.


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 10 de junho de 2010

No funeral, outra vez

Numa busca pelos motores…
Coisa curiosa esta de buscar nos motores, dantes encontravam-se manchas de óleo, de gasolina, chatices, tubos e fita cola, miríades de fios emaranhados que nem cabelos; por isso não se lhes buscava grande coisa… Encontrei vários valores para o olho de Camões.

Uns, que custou dois tostões; outros, que custou cinco; há quem avente dez. Fica-me a sensação de que a cotação do olho de Camões variou com o aumento da inflação, assim como se houvesse já cotação de bolsa para coisa tão valiosa. Não me custa imaginar que no mercado as tabuletas das frutas e legumes tenham sustentado escritos a gritar por dois olhos de Camões o quilo de tomate ou, no talho, seis olhos de Camões o quilo de maminha. Palpita-me a crítica por pôr as maminhas a valer mais que os tomates, mas ninguém é perfeito.

Não faço a mais pálida ideia de quanto valeria agora um olho de Camões. Penso que, se o dele, homem de gabarito, valeria tanto ou tão pouco, um meu valeria decerto bastante menos. E a falta que me faz! Ainda imaginei uma hipotética cotação para os meus olhos mas, da maneira que estão as coisas, talvez não seja a melhor altura para estes raciocínios; até porque sem termo de comparação ainda haveria alguém que me arrematava algum e lá se me ia a honra se o não vendesse. Assim, para não ter de pôr uma venda num olho, resolvi não pôr um olho à venda. Muito menos dá-lo à pala.

Embrenhado por estes pensamentos, dou-me a confrontar a potencial carga de água que terá trazido para este dia a celebração do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, na data de triste memória da morte do grande poeta. É que não gostaria que nada se celebrasse por memória da minha morte, calculo que ele também não. Deveria ser a vida o que deveríamos lembrar e o nascimento que deveria sempre surgir-nos em mente. A recordação da morte de alguém deveria servir apenas para nos assinalar que nesse dia ficámos mais sós; para o mal nuns casos, para o bem noutros.

A data de nascimento, por outro lado, além de ter potencialmente sido já escolhida para muitas festas em homenagem do visado, teria a causalidade necessária para nos elevar de gratidão e bons sentimentos, sempre que ele fosse pessoa memorável e singular.

Assim a cada 10 de Junho lá fico com esta sensação estranha de que todo este alarido é para nos recordar de um funeral, o que aliado ao nome do meu país, não me augura nada de bom.

Mas sei que algures estarão pousados, como abutres, os que aguardam a morte do próximo génio patrício, para instaurar nesse o Dia Nacional dos Valores Humanos, decerto com mais justiça.


© CybeRider - 2010

domingo, 30 de maio de 2010

A terceira lei de Newton

"Para cada acção há sempre uma reacção, oposta e de mesma intensidade."

O Newton sabia-a toda. Tanto que fica assim explicado!

Toda a dedicação ultrajada pela realidade que nos reprime. Vezes tantas que a tentativa de aproximação gera a repulsa. E os vice-versas que nos corrompem a solidão. O telefone toca. Dá-me aquela vontade tão familiar de o atirar pela janela.

“Estou?…“

Estou, farto que me façam puxar pela cabeça. Já por um braço ou por uma perna levam-me para todo o lado. Pela cabeça, não. Resisto. Temo a cedência ao que desconheço, procuro sempre enraizar-me aos meus tubos de ensaio virtuais onde deixei os sentimentos fumegantes, em análise.

Estou, em sofrimento quando a apatia se entranha. A sensação do inútil, do tempo que me aproxima do cadafalso, inexorável. É a sedição que me empurra à acção, tantas vezes intempestiva, tantas vezes também relampejante e tempestuosa. Tanto mais quanto a apatia me devore. A chuva e o frio que emanam da minha alma atormentada geram vagas de tolerância, que não mereço. Sorrio. O telefone paira-me a centímetros dos dedos, entre o merecido descanso e a janela aberta para aplacar o calamitoso Verão, fora de horas. Por instantes não sei onde irá parar, é a fraca aragem que o transporta, em simbiose com a pequena força com que tenta impor-se ao calmão, talvez também fruto do fenómeno newtoniano. Eu queria a janela, consequentemente, ele quer o descanso. Alguém queria que ele parasse de tocar…

“Estou?...”

Estou, como um pequeno insecto no vislumbre do canto em que aquela vespa agarra a sua aranha, entre as pequenas patas finas mas titânicas, o abdómen contorce-se-lhe enquanto espeta o ferrão erecto, obsceno, uma e outra vez. A aranha abandona-se ao consentimento, como dois amantes que o degredo tivesse separado um dia e se encontrassem agora. Mas ali não é o amor que os une, talvez por isso todo o acto seja de uma imaculada perfeição, não existem factores exógenos, nem história que os reprima. Assim, não me vêem. Sinto-me como o tarado que não deveria estar ali a mirar tanto empenho naquela união casual, mas não gratuita. Por isso afasto-me, a pensar se daquele ódio ocasional não nascerá um amor sem tempo, infinito e desejável. Sem saber ao certo se quero ser vespa ou aranha. Sei que quando sou vespa o meu dia tem sequela. Nunca me consigo imaginar noutro lugar. Já me convenço de que nasci para envenenar. Envenenar suporto, tiro sempre partido das minha inoculações. Mortifico-me porém se me sinto envenenado, temo por isso ferrão que me trespasse. E no entanto…

“Estou?...”

Estou, ciente de que as vespas são tão grandes que nem as vejo. E o resultado da sua acção talvez só o saiba daqui a meses. Passo assim cada dia, apreensivo por poder vir a parir diabo que me coma. Mas talvez, pela lei de Newton, seja eu parido por anjo que me adormeça.

Por esta lei, da física elementar, só o bem morre com culpa.


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Cá-ca-rá-cá-cá-cá... cá-cá...

Até nem me importarei de pagar mais impostos.

Pago-os porque a lei o impõe e a consciência me dita que o devo fazer para beneficiar do meu estatuto de cidadão. Cidadania compreendo.

Este estatuto deveria assegurar-me a tutela que considero fundamental para a manutenção da sociedade em que estou inserido. É para isso que pago impostos, que sou sugado pelo colectivo que sinto alimentar numa percentagem bastante injusta, principalmente porque sagra a precariedade. A justiça é precária; a educação é precária; o trabalho é precário; a saúde é precária obrigando-me a preteri-la sempre que possível pelos serviços de privados autónomos, como eu, que também não tenho tempo para aguardar sem ela nem a cura, meses a fio, o que protelaria o meu bom desempenho fiscal, e sem ressarcimento que me reconheça o esforço; a assistência social não foge à regra; agora a economia é precária também. Só a contribuição dos cidadãos parece evadir-se a esse modelo.

Se para além dos contributos que me exigem, sou ainda vítima da acção de grupos de meliantes que me roubam o que resta, e de onde como, e que coloca em perigo a minha integridade física e psíquica, ou a dos meus, a minha função social começa a parecer-me principalmente uma obra de caridade pela qual não estou a ser suficientemente agraciado.

Já quero saber pouco de que partido ocupe a cadeira do poder. Mas parece-me que, seja qual for, desde que viva da caridade alheia para assegurar o comando das operações, deveria abandonar a arrogância e a prepotência, sob pena de nos estar a tornar a todos em meros servos revoltosos.

Algo estará profundamente errado se diariamente nos sentirmos inseguros, ao executarmos as tarefas normais do dia-a-dia, sempre a olhar para o lado à espera da próxima extorsão ou da próxima violência.

Não sei bem como, mas há grupos de ladroagem a agir no metropolitano de Lisboa. Nas ruas também me levaram quatro rodas, que me trocaram por tijolos de que não precisava. Atacam diariamente. Não creio que a sociedade devesse consentir que quem quer que fosse pudesse ser assaltado ou roubado em locais de utilidade pública, no decurso da sua vidinha normal e contributiva, sem contrapartida. Principalmente quando eu tenho de pagar quando falho.

Antes de gastar, investir, orientar em processos mais ou menos duvidosos que envolvem riscos típicos da acção dos privados em busca de mais-valias de seu exclusivo risco e responsabilidade, como eu faço, entendo que o Estado assim pseudocapitalista, que não me suporta financeiramente, deveria cuidar das suas galinhas-dos-ovos-de-ouro; nós os contribuintes, caso não tenham reparado.

Se temos de encarar esta realidade como normal, pelo menos que conste na declaração de imposto uma dedução específica, mais que justa, onde figure a totalidade do património lesado porque, pela fatia que me toca, sem indemnização ou amortização equitativas estou a ser diferenciado. 


Até esse dia, em que haja um pouco mais de justiça social, cá fico a aguardar pouco pacientemente a próxima punhalada, de mãos e pés bem atados, que também nisso este tutor é inexorável, concedendo o direito de defesa apenas a quem nada tiver a perder.

Já estou quase lá.



© CybeRider - 2010

domingo, 9 de maio de 2010

Deprecada

Vai, feiticeiro! Espera-te a tribo a Oeste.

Que anseia por te ver sair do ventre do pássaro mágico que te transporta.

Vai, curandeiro albino! Desce ao terreiro onde os gritos das danças da chuva hoje não se ouvem. Reúne as hostes celestes e pacifica as negras almas. Exorciza os demónios que os poluem e exorta as almas puras que apazigúem os espíritos crentes, que os outros já estão em paz. Perdoa a culpa dos pecadores dos homens e faz erguer aos céus eternos o éter dos que partiram na tua fé.

Nomeia o inominável, que os acalme. Ergue o teu bastão e controla com a tua magia o tresmalhado. Reúne a manada cega e dá-lhe destino. Revigora-lhes as colheitas com os teus poderes abissais e o som das tuas cabaças.

Que o Sol e a Lua te obedeçam para que a noite e o dia voltem a reinar nessa terra cinzenta, queimada, poluta.

Tu que falas com os deuses de todas as línguas, pede misericórdia para esses indígenas e abençoa-lhes as chagas que os envergonham. Transforma a água que bebem em néctar que lhes sare todas as maleitas.

Milagreiro puro, virginal e imaculado, escuta a voz dos homens e transmite-lhes o conhecimento do infinito, para que se imbuam de novo daquilo a que chamam esperança.

Envergonha-os, da nudez em que deixam desprotegidos anciãos e infantes, irmãos e irmãs. Mostra-lhes que os deuses não têm conchas nem jogam nas cartas o destino que os submeta. Aceita as suas dádivas e sacrifícios sentidos no pó do terreno soalheiro.

Leva-lhes às cabanas modestas, que habitam, o brilho divino que há muito esqueceram. Pede por eles à terra que lhes seja firme aos passos e leve no sepulcro. Apela às ossadas dos ancestrais de tantas cruzadas, que te adornam as vestes, que renovem o poder incomensurável dos amuletos que trazem agora à tua presença.

Escuta-lhes todos os rumores, medita no compasso dos tantãs que te celebram, como se fossem dedicados a mim.

Faz com que as bestas lhes sejam de novo inferiores. Liberta-te da opulência e da soberba. Diz-lhes a verdade sobre os meus poderes, explica-lhes que apenas criei o universo, pouco mais posso. Mas não uses o meu nome em vão. Os poderes são dos homens, não de um deus.


Nunca acreditarão se tu próprio não acreditares, que podes fazer o que te delego.

Prova-lhes a minha existência; como provarei daqui a dois mil anos, em consequência da tua conquista, que terás existido.

E esquece as epístolas, que o correio anda atrasado.

Eu, to ordeno! Cumpre-o, sob pena de te tornares num deles e passares também tu a adorar-me. Bem sabes que essa é a sua maldição.



© CybeRider - 2010

sábado, 1 de maio de 2010

Trabalho... A quanto obrigas!

Há quem passe pela vida a meio gás, sem se aperceber de como tudo poderia ser tanto melhor ou pior que o que se viveu. Sempre em velocidade de cruzeiro. “Velocidade” só se deveria aplicar ao que fosse inebriante e incauto, a velocidade de cruzeiro é na realidade uma pasmaceira que nos atrofia e nos enraíza ao solo sem capacidade de elevação que nos aumente a adrenalina, como se nos encaixasse sempre na história de que já conhecemos o fim.

E houvesse história de que não conhecesse o fim… Mas conheço-os todos. Reduzi tanto os pormenores singelos dignos de nota que qualquer biografia não me mereceria mais que três linhas, como os dias que tem a vida, não fosse um tremendo esforço para me normalizar em tarefas e pormenores.

Até por isso quando ouço falar em excesso de velocidade me parece um contra-senso. Nada do que seja rápido deveria ser considerado excessivo. A velocidade deveria ser justamente avaliada como um bem, a assegurar e desenvolver, em prol do progresso e da eficiência. Esta afirmação não me enobrece. O meu pensamento é carbónico, lento de pasmar. Chego a adormecer a meio de um pensamento, principalmente ao serão depois de deitado, e nem pensar em tentar juntar na ideia duas coisas ao mesmo tempo, em vez de adormecer ficaria para aí comatoso. Os meus diálogos são por isso bastante aborrecidos, não será fácil dialogar com um interlocutor que leva meio dia para recordar um nome ou várias horas para descrever um facto, entrecortando cada ideia com pausas enormes. Tento dar uma certa musicalidade às frases, para não ter de reanimar quem me intercepte. Mas ainda assim a coisa resulta mal.

Quando é absolutamente necessário elaborar algum discurso imediato acabo por me impor um regime ligado no “nível médio de asneira”, tem riscos calculados e tem funcionado até aqui. Mas acabo a pensar nas coisas que disse e sofro bastante ao compreender todo o potencial que poderia ter aplicado, estivesse eu munido de neurónios mais reactivos.

Até coisas de que possuo imensos pormenores não fluem na hora certa, acabo por recordá-los só quando o receptor já desapareceu no horizonte. Um campeão olímpico estaria em vantagem, em poucos passos actualizava a conversa. Eu fico para ali agarrado ao telefone, a recordar o número, a carregar nas teclas ao acaso… Acabo por deixar para o dia seguinte.

Como agora, por exemplo, tenho a certeza de que havia qualquer coisa que queria escrever hoje, tinha de ser hoje, mas sei lá…

Se ao menos me lembrasse de que dia é hoje…

Ou se me lembrasse do que escrevi há um ano…


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Relancionamentos

Vá lá... Não te rias. Não me ofendas. Saberás que me maltratas?

 

Não sei quando me apareceu esta estranha tendência.

Foi há muito que comecei a cativar o gosto, a definir uma preferência inusitada por um certo tipo de coleccionismo. Antes de me começarem a cercear as vistas e a devassar os intentos.  

"Fecha a boca! Olha que entra mosca!"

E eu fechava. E desviava o olhar, como se temesse que me espetassem as agulhas de tricô num olho. Que se tricotava à mão, naquele tempo. Ainda vesti muitas camisolas que as mãos maternas prendadas mostraram ao mundo, e a mim. Tricotadas com aquela paixão com que os meus olhos passavam das suas mãos para os dela, e os meus lábios se entreabriam.

Depois vieram tios e primos, amigos e amigos de parentes. O homem da mercearia, o Justino da papelaria sempre aziado com os catraios, o leiteiro e o padeiro.

"Olha lá o danado do moço! A olhar para mim... Sou muito feia? Sou?..."

Durante anos pratiquei esse fetiche. Bambaleando as pernas no banco do autocarro ou do cacilheiro. A viagem era sempre curta, ou parecia; a paisagem sempre variada, e as moscas iam-se mantendo à distância. Eram os rostos que me interessavam, a posição das orelhas, os trejeitos, o tamanho do nariz, a estranheza da calva. Embriagava-me aquela variedade.

"Que foi? Nunca viste?"

Começaram depois a disparar. E eu, envergonhado, corava e não respondia. Tinha vontade de lhes explicar, que não. Que nunca vira aquela composição bela de traços e formas, de cambiantes e gestos. Mas nunca fui bom com as palavras, principalmente as faladas. Estragavam o momento e desviavam-me a atenção do cerne do meu interesse.

Com o passar dos anos fui aprendendo a respeitar mais as moscas e a controlar melhor a maxila. Perdi um pouco daquele ar idiota que tão bem me identificava. Sinceramente, era também mais fácil coçar o queixo, onde a penugem despontava, de boca bem fechada.

Os olhos deixaram de me obedecer tanto. Passaram a centrar-se em objectivos mais sexistas e menos adequados ao meu fascínio genésico, dava por mim a mirar inexplicavelmente outros alvos, com cobiça mas sem desagrado. A paixão porém permanecia, mas a boa-educação também. Aprendi com facilidade a não olhar directamente nos olhos dos mais hierárquicos, a não devassar as senhoras casadas; nem, para meu interesse, as solteiras de mau humor. Interiorizei o grande poder que um olhar detém, evitei utilizá-lo a eito como arma temerária, mas também aprendi que há quem afira a honestidade pela tenacidade com que o sustentamos no diálogo, o que não se compatibiliza com muitas das situações que referi. Talvez por isso nos enganemos tantas vezes nos juízos apriorísticos.

Nesta complexidade ainda me surpreende como consegui amansar algumas feras e trazer brasas à minha sardinha, mas consegui.

 

Dei por mim há dias a passar por pessoas sem as ver.

Porque me conheço bem, sei que isso não é bom sintoma. Temo ter deixado de acreditar que valorizem o meu olhar, mas temo sobretudo ter deixado de procurar a beleza naquilo que me rodeia.

Por isso, não te rias, não me ofendas. Não estranhes se vires um estranho a olhar para ti com ar pasmado, e de boca aberta à espera da mosca. Sou só eu, inofensivo, a admirar a tua beleza e a incorporar-te na minha colecção. E será até bem natural que, de ti, nada mais queira.

Nesse dia estarei a caminho da minha cura. Até lá, desejem-me as melhoras, ou a mim ou ao mundo.

 

© CybeRider - 2010

terça-feira, 30 de março de 2010

Pequena paixão

Era elegante e sóbria.

Trazia consigo o carácter de quem foi talhado para encarar cada dia sem temer o amanhã. O seu dia seguinte era sempre um reinício e transmitia a confiança de que o mundo não acabaria nunca.

Um pouco mais velha que eu, já tínhamos ambos alguma experiência. Acompanhou-me, se bem recordo, por cerca de quatro anos. Felizes. Conheceu-me desventuras que não confessei a ninguém, partilhou comigo as aventuras mais memoráveis e as noites mais tristes, as menos sóbrias também; nestas tive sempre o bom senso de não a envolver em desacatos. Recordo uma noite em particular em que escrevinhámos poemas e tolices na toalha já manchada de cerveja, para gáudio dos presentes. Foi das poucas vezes que a coloquei em risco. Acompanhou-me a concertos. No dia seguinte, naqueles dias que o são porque temos de nos relembrar do calendário, estava sempre pronta para recomeçar um novo ciclo: aulas, estudo, dedicação; partilhávamos cada momento. Quando a não via era, ainda assim, omnipresente; podia contar com ela, sempre. Cumpriria os meus desígnios sem hesitações ou quebras, com abnegado rigor.

Pela minha mão vi-a descrever piruetas de emoção, cifrar com esmero os segredos mais audazes que não partilharia com mais ninguém; contemplei a forma delicada como descrevia os meus pensamentos e emoções como se fossem dela, cheguei mesmo a acreditar que sim, que eram seus e só seus. Escrevemos cartas de amor. Eu e ela talvez pudéssemos ter feito a diferença; quem sabe?... 

Agora é tarde. Separámo-nos haverão bem mais de vinte anos, quase trinta talvez. Rios de tinta que escrevi. Eram rios autênticos por esses dias; nada como essa seiva gelatinosa que agora se espalha em qualquer folha de terceira categoria, que já nem carece de mata-borrão. Naquele tempo era preciso cautela, perícia e instrumentos de confiança. A nossa separação foi-me dolorosa. Não esqueço o malfadado dia em que a deixei só por instantes no local errado para se ficar só.

Tive a ventura de lhe conhecer uma irmã. Faz dias. Partilham as feições e o nome de família. Era americana a minha menina; e a mana, claro está, também. Podiam ser gémeas, já que à primeira vista nada as distingue. Ainda presumi que pudesse voltar a ser como dantes. Mas um olhar atento revelou-me a minha pior suspeita:

É virgem...

Como se pode conservar a virgindade por mais de quatro décadas?

Ciente de que aqueles idos foram os meus mais promissores, reconheço a minha falta de capacidade para dar a esta novo ânimo, incutir-lhe a vitalidade que me fizesse recordá-la alguma vez com a mesma grandiosidade e viver a mesma simbiose que partilhei com a outra, que ainda admiro e pranteio.

Seria preciso voltar a adquirir um tinteiro, bombeá-la para a vida inoculando-lhe o fabuloso líquido. Não sei se o farei...

Como poderia educá-la, submetê-la, torná-la dócil à minha mão?...


© CybeRider - 2010


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quarta-feira, 24 de março de 2010

O matador

"Não nasci para matar!"

Grito, a convencer-me. E porém, vejamos:

Ao nascer quase matei a minha mãe. Valeram-lhe os cuidados médicos adequados para que não perecesse e me deixasse ali logo entregue à estatística, de mais um órfão à nascença; bem vistas, as coisas, sei lá se haveria alguma já nascida e mantida que assinalasse tais desventuras e nos convertesse automaticamente em números indignos, privando-nos de qualquer protagonismo.

Ainda faltaria mais essa.

Assim, fiquei sem carregar o peso desse homicídio absolutamente involuntário, bem vistas, as coisas também, nem a conhecia até à data. Tinha a desculpa de ser inimputável. Talvez por isso, comecei logo a matar. Matei a fome e a sede tantas vezes quantas pude. Não me consta que um recém-nascido alguma vez tenha sugado a mãe até ao osso. Maravilhas da natureza. Não sei se me faltaria a vontade, mas acredito piamente que não. Por mim não haveriam sobras depois do primeiro repasto. Agora já penso de outra maneira, talvez em contrição.

Em breve a sociedade já matava para mim, já não estava tão só. Comi cada bife sem mágoa.

Cresci de rompante e nem recordo os engodos em que ocultei essa intencionalidade assassina. Perdi-lhes o rasto nas recordações que aniquilei, na minha fuga desesperada para evitar o degredo de pecador penitente. Sei que continuei a matar, pelo que escalpelizo, convicto da minha inocência. Enganado por mim próprio.

Usei à desmesura o meu olhar de matador; armado, em parvo, na maioria das vezes; direccionado às presas incautas que lhe tentavam em debate intenso resistir; camuflando sentimentos pouco claros que justificassem tal atitude, acabei por ser poucas vezes bem sucedido mas, nas que fui, acabei por encontrar uma injustificada felicidade; algo felina, por desprendida, confesso.

Um dia puseram-me armas nas mãos para que matasse, coisa nenhuma. E estranhei. Estranhei principalmente a sinceridade do gesto. Como uma acusação pendente sobre o meu crânio, capaz de se soltar do pêndulo celeste para me trespassar a essência. Encarei a coisa como um fardo, e fardei-me durante o tempo que me pediram, sem saber ao certo porquê. Afinal pediam-me que usasse capacidades que desconheciam. Mas que eu sabia, sem desejar dá-lo a conhecer, o quanto era exímio na sua execução. Para a sociedade passei por mero amador. E deixaram-me escapar sem que suspeitassem dessa realidade assustadora. Agradeceram-me. Bajularam-me.

Nunca premuniram as ilusões que desfiz, nem as expectativas que gorei às minhas próprias mãos, nem as alegrias de outrem que sufoquei num ápice, sem hesitar. Sempre com a frieza do assassino mais cruel e horrífico.

Criei quimeras também, mas com o intuito deliberado de as abafar. Tantas estrangulei sem remorso.

E disto se fazem as memórias e as saudades, e os arrependimentos. Mais presas para juntar ao meu espólio; também estas que restem terei de matar, a seu tempo. Penso no móbil, calculo a forma.

Sei que por cada desmembramento me pesarão os danos colaterais; que os há. São as réstias de esperança, que se desvanecem em cada entardecer, em cada onda do mar que varre o sangue das entranhas restantes desses pobres entes que reprimo.

Das saudades que mato não necessitava. As saudades nunca aproveitam a ninguém, nem aos que partiram que deixam ali um cabo ancorado, nem aos que ficam e que acabam por entortar o pescoço no vislumbre do navio.

São as horas; tanto tempo que acabo por esventrar e que tanta falta me faria, para continuar a matança.

© CybeRider - 2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

"Skin Deep"

Havia muito tempo que não seguia um conselho naquele sentido.

Procurei-a por recomendação.  

Uma vantagem das confidências é recebermos em troca conselhos dos confidentes; nem sempre acertados, mas alguns dão-nos que pensar, outros seguimo-los por terem aquela lógica imbatível que nos leva por si ao tapete no primeiro assalto. Este foi assim. Consequência de uma desvalorização de auto-estima a cada dia que passou, do incremento em perscrutar a atenção alheia sobre a minha condição, ainda que ciente de que ninguém poderia pelo olhar desatento avaliar o meu sofrimento, ou mesmo as minhas mazelas.  

Entrei. Olhei-a nos olhos e disse-lhe de imediato que, apesar de não nos conhecermos, e sem mais delongas, estava disposto a tirar a roupa de imediato. Olhou-me com um sorriso e respondeu-me que afinal estávamos ali para isso. Não protelei. Despi-me e ela pediu que me deitasse. Senti as suas mãos percorrerem o meu corpo, milímetro a milímetro.

O toque de profissional experiente.

Procurei-lhe o olhar quase a medo, a tentar disfarçar o receio de lhe ler alguma crítica que me incriminasse, alguma insatisfação pelo que ali expunha que me pudesse diminuir à sua observação conhecedora. Estou certo que a minha tensão arterial subiu em flecha, sentia palpitar as veias temporais. Não estou certo se me terá mexido no cabelo; diria que sim, mas os pensamentos voavam demasiado depressa, o receio do desconhecido aumentava a cada fracção de segundo. 

Sobreveio-me por instantes a culpa. O juízo apriorístico de que a minha presença ali tivesse como causa algum vício maligno, ou que fosse o resultado de algum comportamento desadequado.

O seu olhar era calculista, desprovido de qualquer sentimento que eu pudesse sondar. Exactamente como eu desejara. As suas mãos continuavam a percorrer-me a pele, já não lhes sentia o frio. O meu temor porém mantinha-se, o seu olhar permanecia insondável.  

A minha intenção de pretender apenas satisfazer a minha necessidade, encontrou perfeita sintonia no interesse dela, absoluta e inequivocamente profissional. Dois perfeitos estranhos. A nenhum interessava que aquele momento pudesse ser mais que um mero encontro fortuito, irrepetível.

 

Vesti-me, paguei.

Afinal, não tenho com que me preocupar, trata-se de uma afecção benigna, talvez causada pelo Inverno estranho a que a minha pele não se terá ajustado.

Receitou-me alguns medicamentos e tratamentos a cumprir a rigor. Tenho nova consulta dentro de uma semana.

 

Mas já estou melhorzinho.

 

© CybeRider - 2010

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Cem

Cerca de seis mil e novecentos milhões de dias em vinte e quatro horas. Tantos quantos os relatos diários que podiam constar do comandante desta nau redonda à deriva pelo vazio.

E eu para aqui ralado com cem. Cem textos, e um aniversário que me passou ao lado. E se isto não estiver preparado para três dígitos?  E se se acaba o meu mundo como se vaticinou na passagem do milénio?

Tenho adiado.

Hoje reuni a coragem necessária para este salto profundo. Seja o que...

Esbarro de novo nisto... O inominável... Ele não existe! Farto-me de afirmar isto e esbarro sempre no mesmo. Devia dizer: "Seja o que Eu quiser", isso sim. Mas sei lá o que quero. A um por ano teria precisado de cem anos. E talvez fosse isso o justo. O que me arroga o direito a tecer considerações sumárias por mais de uma vez em cada ano que passe? Que peso pode ter isto, face aos seis mil e novecentos milhões que se debatem com tanto? E os deveres decorrentes?

Agora fico cem vezes em dívida por me ter apoderado de algo que não me pertence. Usurpei a inteligência colectiva e assumi por cem vezes que algo era de facto meu. Mais um punhado de mentiras. Cem!

E agora?...

A próxima meta terá de ser quatro dígitos. Outros tantos pecados... Arderei no Inferno!...

Não haverão efemérides que cheguem...

Cem chicotadas me dessem! 

Mas se tiver de ser... Que seja uma por ano.


© CybeRider - 2010

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Pequenos detalhes

Pasmava-me a facilidade com que aquela gente me punha numa família com a mesma facilidade com que me ajudavam a sentar ao banco do balcão do café.

"Antão de quem éi o caspinhooooo?"

Outro lá me traçava o esquiço de uma àrvore genealógica de espécie que me era absolutamente desconhecida. Adivinhava-lhe o tronco grosseiro e os galhos partidos, mas teria de servir assim mesmo. Depois o desfecho:

"Éi o neto do Gatooooo!"

E também do Progressista. Do Gato ainda me lembro. E lembro-me de me ter ofendido. Gato era também um dos meus amigos da minha idade, o Tó Zé que, não sabendo enfiar um soco, nos esgatanhava as bochechas mesmo que o deixássemos no chão de lábio rebentado a chamar pela mãe. Só isso evitou-lhe monumentais cargas de pancada, as menos permentes que as outras levou-as todas, e aos pais outros tantos cuidados. Assim, como poderia eu ser neto do Gato? E lá imaginava o meu querido velhote, mais pequeno mas já com rugas, a esgatanhar as bochechas de alguém, com a mesma injustiça que o outro que nem sabia dar um soco direito, por que carga de água, à revelia das valentes tareias que em boa verdade nos conferiam o respeito da irmandade e como tal absolutamente necessárias e inquestionáveis. Tinha de ser mentira!

Cinco ou seis teria, não mais, mas da primeira vez ofendi-me. Olhei para aquelas caras de sorrisos abertos à maneira de algum cartoon do Vilhena e dediquei-me aos dentes tortos e espaçados, aos meus que ainda eram tenros tinham chamado "de mentiroso", porque a falta dos molares restantes não oprimia os incisivos que ficavam com um ligeiro espaço. E se há coisa que nunca fui... Mas mirei-os por horas, um minuto para eles, mas para mim foi o suficiente para que lhes recorde os deles, até hoje. Os espaços de uns, o amarelado dos Provisórios e Definitivos, de outros. Deixei os dentes e memorizei-lhes as panças à tractorista. Foi por vingança, bem sei, mas guardei cada pormenor no pequeno cofre onde ainda não haveria espaço para muito mais.

Levei anos a juntar os incisivos ao espelho, acabaram por nascer enormes e saídos e tive de tolerar o arame que não era da moda e que me fazia da boca uma máquina de tricotar, ou um radar do aeroporto, como tantas vezes achincalhei outros infelizes. Tudo para me tornar, um dia, num homem honesto e cumpridor, que me apagasse de vez o cognome que herdara da província, pelos amigos daquele Gato que amparou o meu pai nos seus braços rústicos. Também ambos sem dentes de mentiroso, nem dizeres que nos enganassem.

Talvez não percebessem porque não sorria e eu, comprometido pela razão justa mas infantil, não lhes saberia explicar.

Ocorre-me que não saibam quem é talvez um dos maiores caricaturistas de sempre deste rectângulo, desde o colonialista e totalitário, ao revolucionário e europeu; mas não importa, não havia lá gaiatas como as dos livros do Vilhena, era tudo gente campestre de vestes pudentas, mas por essa altura esses assuntos eram-me estranhos.

Pueril era-me também o ódio de me ver apelidado de "caspinho" por aqueles latagões brutos. Imaginava os ombros com caspa dos estivadores do Poço do Bispo, ou dos engraxadores do Cais de Alcântara, sem ver nenhum paralelismo com a minha tez imaculada de menino lavadinho e metropolitano, que me valesse ali, para os lados de Portalegre, tal epíteto. Já o meu avô me chamava assim, mas dele tolerava tudo, até que me pudesse esgatanhar as bochechas. Mais tarde percebi o paralelismo com "cachopo" acrescentado do diminutivo à minha altura.

Queriam-me bem, afinal...

Nesta minha injustiça, eu cresci e eles definharam. Dos cognomes dos avós nunca lhe saberei a razão, perderam a causa em quase cem anos. O Progressista acompanha-me num papel que entesouro, nunca o conheci em pessoa. Amarelado no preto-e-branco em sépia natural, de ar austero e severo, no seu fato de Domingo, a sobressair a corrente e o relógio respectivo, que o tempo nunca me mostrou. O farto bigode e olhar sóbrio ainda lhe conferem a altivez e o respeito que me impõe quando o imagino meu ancestral. Conta-me a minha mãe que nem sempre assim era, que quando a vida lhe começou a correr pior ele bebia... Nunca à minha saúde, penso eu.

Mas não lhe consigo imaginar tal descompostura.


© CybeRider - 2010

domingo, 17 de janeiro de 2010

Que as há... Há!

É moderno duvidar se existe ou não.

Menos será afirmar que um católico pode ser "não praticante". Assim como ter sido condenado à pena máxima e continuar a circular livremente pelo mundo. Como eu, mas afirmo-me inocente de toda a culpa, como todos os condenados, aliás. Haverá alguém culpado de alguma coisa? Do catolicismo menos ainda. Foi algo que nos foi oferecido de bandeja por quem talvez nem acreditasse, mas que pelo sim pelo não...

Como acreditar que alguém nos governa de uma dimensão supra-terrena. 

Pelo sim pelo não, recordo uma obra recém-lançada em que uma testemunha de sinal na testa afirma que sim Senhor; para o anatemizar com as maiores injúrias, pensei eu que tenho memória curta. Meio divertido li, hei-de reler, mas li e compreendi os que não leram como eu li; que há quem acredite que existe e que veja mal visto o facto de se lhe apontar o dedo, talvez pelo medo de represálias ou por temerem que, pela concórdia, já não lhes coubesse o sofá mais confortável no céu, sem acreditarem que o ruído e a aragem dos aviões devem ser insuportáveis; ou talvez duvidem também disso, sem que o confessem.

Se por um lado acreditar no tal Senhor me parece já heresia à humanidade que sofre, acreditar no Diabo também não me convencerá a vender a alma que, para ser honesto, aposto que não tenho. Mas pelo sim pelo não, e por bom preço...

Porque as leituras nos contaminam, basta pensar na incredulidade com que nascemos e na estreiteza de pensamentos  que vamos adquirindo com o avançar das leituras, devo confessar-me bastante contaminado ainda. De repente dá-se aquela calamidade terrível naquele território longínquo e cismo se não seria represália ao livro do que já foi considerado o primeiro do mundo. É uma coincidência terrível... Outra razão não houvesse e tudo poderia ter sido até um mero passo em falso, uma distracção, um erro grosseiro do tal Senhor que se duvida que exista. E nem sei se era Sodoma ou Gomorra, se tinham discriminados casados ou por casar. Mas também ali se varreram repentinamente muitos milhares de vidas a eito; homens, mulheres e crianças.

Daqui passo a encarar a dúvida de que se tivesse tratado de uma técnica de vendas de proporção desmesurada e talvez inútil. Afinal o autor tem vendido tantos tão bem que não haveria necessidade... Mas sabemos nós lá os desígnios do tal Senhor!

Sei que, quando alguém refere a veracidade do que digo, não me exubero as virtudes com a vontade de realizar dez hiroximas; normalmente um simples "obrigado" basta, mas lá está: não sou eu o Poderoso. Ao autor que refiro reservo por isso um abraço fraterno, por considerar que não tem culpa pelo acto tresloucado a que deram origem as suas palavras. No seu lugar eu estaria ainda mais infeliz. Assim, não posso deixar de me ver transformado numa estátua de sal, por assistir imobilizado. Pelo sim pelo não temo pelo que alguém faça para me mostrar que terei alguma vez razão.

Quedar-me-ei a pensar se não será a minha a fronte manchada. E se não houver quem me mate?...

Surge-me esta vontade indómita de, pelo sim pelo não, ir a correr esfregar bem a testa. 


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

Terra de todas as virgens

O sonho comanda a vida. No dia seguinte já não nos lembramos.

Saberá quem tomou a mão de um sonho, quando caminharam despidos sobre a areia da praia.

Quando havia praias para dois... Ou mais...

A procura do amor de uma vida leva a que se mereça o Inferno. Em boa justiça, quem encontra o Céu na Terra não deverá ambicionar para além disso. É de um pretensiosismo atroz que se tencione o prolongamento dessa felicidade para além de uma vida. 

Ao contrário de certas religiões que contrapõem a infelicidade terrena ao júbilo celeste, e que prometem virgens sem conta para além do bater do coração, a modalidade reinante na sociedade ocidental guia-nos à prossecução de um objectivo sentimental direccionado à monogamia, o que traz vantagens, convenhamos.

Pelo sim pelo não, podemos aproveitar milhões de virgens à nossa volta sem que tenhamos de estragar o Paraíso maculando alguma. Em boa missão cristã alguém deveria explicar, aos que ambicionam a sandice extrema de aguardar pelas suas virgens às mãos de uma divindade de existência duvidosa, que as mesmas serão sempre intocáveis; nunca podendo vir a enformar um possível harém que cruze o imaginário desses pobres crentes. É a subversão de princípios criada no imaginário de tais infelizes que lhes permitirá o idealismo utópico de se virem a rodear de virgens que pudessem usufruir, sem que compreendam que o usufruto de apenas uma estragaria o equilíbrio divino do que deveria ser imutável. Haveria muito menos deles a fazer-se explodir.

A falha sistémica do cristianismo reside, porém, no facto de se prometer o Céu a quem já o pôde viver na Terra. Haja quem reflicta sobre este desequilíbrio para renegar esse fundamentalismo.

Por outro lado a monogamia enforma uma realidade estranha. Ao satisfazer a necessidade fundamental, cercam-se os nubentes de todas as potenciais virgens do mundo, em vida. Pudesse isso ser o Céu, acaba em boa verdade por se tornar num Inferno em que o desejo se reprime em benefício de princípios que, não deixando de ser religiosos, ainda que não assumidos desta forma, se cumprem à risca; reforçados com a justificação de premissas éticas e morais, que tantas vezes acabam por não se conseguir explicar. 

Nesta mesma sociedade, que rejubila de sexualidade exuberante, temos de sujeitar a libido natural ao constrangimento do ditame "que se veja mas não se toque", a menos que não existam compromissos assumidos, o que não é natural que aconteça com a maioria dos que já se libertaram dos condicionalismos, ou frivolidades, da juventude.  

A alguns bastará a aliança contratual com um só amante. Pequeno retalho de Céu, simples sonho para quem pensar ter encontrado a sua alma gémea, que por respeito e lealdade não se deverá atraiçoar. E os que têm essa alma repartida por tantos seres tão belos que os rodeiam?...

Reclamo o meu direito à indignação. Trata-se a poligamia como assunto tabu, ainda. Intelectuais pseudo-vanguardistas, plenos de justificações perenes para viabilizar todas as libertinagens individuais de teor positivo como necessárias à realização do conceito "ser-humano", não se debruçam sobre este assunto, tolhidos ainda por uma mentalidade esconsa.

Então e eu? Se for poligâmico, serei um anormal? Por que razão não poderei beneficiar do mesmo estatuto que qualquer outra preferência sexual confira à generalidade da população?

Mais facilmente aceitaria a abolição da instituição casamento, eventualmente retrógrada, do que me conformo com a marginalidade a que me votam. 

E vejo-as que me olham com desejo... Pretenderão eventualmente tomar-me para sempre, mas não posso... É esta sociedade tacanha e mesquinha que não mo permite. Que argumento existe que conceda aos "hetero" e aos "homo" monogâmicos aquilo que ambiciono? Eles podem! E eu, não?...

Gostaria de assumir esses compromissos legalmente, para sempre, e andar de mão dada com todas elas na praia, como no meu sonho, mas esta minha escolha, embora me seja fundamental, ainda parece ser, por motivos que ignoro e não concebo, demasiado arrojada.

Por quanto tempo mais me obrigarão a permanecer no armário?...

Para quando uma lei em que eu possa ter uma vida como a das outras pessoas?

Até lá não vejo como poderei consolar todas as virgens cujos olhares concupiscentes me devoram, e que amo do mais profundo do meu ser. Só peço um pouco mais de justiça para ser feliz.

Assim, vejo-me a pairar no Paraíso dos infiéis. Que Inferno!...


© CybeRider - 2010