Não via o António há imensos anos. Encontrámo-nos por circunstancialismo de intenções. Lembro-me dele quando partiu, deixando para trás tudo o que afinal não lhe pertencia, e quase tudo ao que ele pertencia também.
Fomos os melhores amigos e mais figadais inimigos, numa amizade perfeita. Partilhámos as mais intensas alegrias e conspurcámo-nos de vilezas que nunca foram maus-tratos, antes apontamentos pedagógicos de vida. Um dia levou-me, sem pecado, a namorada. Casaram, éramos muito jovens, faz muitos anos. Se não me falha a memória foi desde essa altura que deixei de o ver.
O António, diante dos meus olhos, é uma pálida sombra do António que conheci. O riso franco é-lhe bastante mais raro, carrega o sobrolho com mais frequência, desapareceu-lhe do semblante um certo brilho que nos cativava com facilidade. Ganhou a desprimor imensos quilos. Cheio de cabelos brancos, é como se o tempo o tivesse coberto de pó e aguardasse agora, grosso modo e mutatis mutandis, um espanador que lhe reponha o lustro de antigamente. Deixou de contar anedotas. O olhar, antes penetrante, tem agora matizes melancólicos ou talvez nostálgicos e vagueia-lhe ocasionalmente durante a nossa conversa, como se já lhe tivessem passado diante todos os temas do mundo. Mantém o tique de ir acariciando os dedos enquanto vamos falando, num acto masturbatório, imperceptivel.
Ainda lhe sinto uma fidelidade genuína. Por isso recebo como um bofetão a afirmação de que tem uma casa de putas; sinto-lhe um nervosismo repetente, um pequeno engasgo, na espaventosa afirmação, como se já o tivesse dito tantas vezes mas nunca lhe saísse a limpo. Tento o: mas logo tu um gajo casado e pai de filhos. Tento afinal: repor esta noutra realidade, atrasar o relógio para uma verdade que não seja aquela. Tento: dissuadi-lo do que afirma ser genuíno, como se quisesse eu que no meu mundo aquele facto fosse uma mentira, um pesadelo. Não, António. Tento o: tu não podes estar a afirmar que participas nessa aberração social que potencía a degradação humana. Digladiamo-nos em palavras, ele tenta convencer-me de que estou a ver mal as coisas, pede-me outro prisma que transforme as cores do que acabamos de constatar: a minha repugnância conservadora face ao seu conformismo vanguardista. Por momentos revivemos uma franja de passado. Outra dialéctica, em que desta vez só eu sinto como se lhe vivesse na pele, ele tenta sair da minha, o que também é inovador. Por momentos agonio-me. António… Sinto que o abandonei, sinto-me culpado das suas escolhas. O coração matraqueia, um, dois, três, respiro fundo.
Seguro as entranhas agarradas à frivolidade do inconcebível, divirjo para o dinheiro, garante-me que é o mais mal sucedido dos chulos. António… Quase não te encontro.
Que tenta que elas fiquem com ele o mais tempo possível, que elas não o poderiam fazer sozinhas, que ele é quem conhece os clientes e lhes sabe também os gostos, que é ele quem determina qual a que os irá servir nos seus desejos mais secretos pelas indicações programáticas e disponibilidade casuística, que só ele poderia justificar o porquê, que tem uma carteira de habituais, que é ele quem as dispõe e que as entrega, que as enfeita e que as encanta, que as leva aos cuidados necessários quando algo corre mal, que as defende dos vilões que querem lambuzar-se sem pagar, que as recupera no fim do prazo, que as protege de meliantes que as provoquem enquanto esperam na rua, que lhes resolve acidentes e incidentes, que não as ama, que lhe são meras ferramentas, mas que o dinheiro é quase todo para elas e para a logística, que lhes lava as costas e que as enxuga depois do banho, que é ele quem trata das suas meninas, com quem pode até dar uma voltita ocasional, sem desprimor pelo casamento sólido, que o filho pensa que tudo o que ele faz é limpo e exemplar, que nunca quereria que o filho lhe seguisse o exemplo, que ama a companheira e o miúdo acima de tudo o que na vida reste.
Por momentos penso que o António tem a melhor profissão do mundo, com aquela estranha casa de putas que ele acarinha sem amar, mas caio rapidamente na realidade; a sua voz é afável, não lhe imagino a boçalidade nem a força interna tenebrosa que reúna para enfrentar os dissabores que descreve, e de repente vejo que talvez seja afinal, aquele ofício, o pior de todos para ele. Pergunto-lhe se precisa daquilo para viver. Atira-me ao tapete com a afirmação de que o faz para manter a dignidade, que a vida assim quis, que não sabe fazer mais nada.
Pergunto-lhe onde passa as férias, mas afinal não tem, pergunto-lhe pelos fins de semana, mas afinal também não, porque não pode abandoná-las nem às marcações nem aos horários nem ao cunho pessoal que dá ao negócio, nem ao telefone; claro que não. É afinal a lealdade que lhe conheço, aqui levada a extremo. Pergunto-lhe o que diz à família e aos amigos e é aí que lhe perco de vez os olhos, que ficam pelo chão de repente profundo e negro.
Ele responde, não sei.
Não compreendo, em boa parte, o António. Mas acabo por compreender, a muito custo, no meio do discurso intrincado, que um meio de vida pode não ser, afinal, senão uma casa de putas que o destino nos entrega para gerir, e cabe-nos fazê-lo da melhor forma que pudermos.© CybeRider - 2010
20 comentários:
Cybe,
Eu! também sou o António!...
Um olhar
(Com essa é que me lixaste, Mário...)
:)
Pois não sabes tu que um proxeneta é um vendido? Que coloca à frente da família e dos amigos uma realidade esquizofrénica sem que possa senão ser fiel à mais aviltante faceta dessa ambiguidade?
Essa tua confissão não te engrandece, por outro lado diz muito da tua família e amigos, que gostava que fossem meus, já lhes quero mais sem os conhecer do que quero ao António de que falo, meu amigo de há tão longa data mas tornado numa vil criatura, porque outros amigos e familiares deste António do conto também eu conheço, e esses sim são grandiosos.
Abraço, meu amigo homónimo do outro. :)
Caríssimo, mui respeitoso e considerado amigo Cyber,
Um dia, em resposta a um post: http://recantodossuricates.blogspot.com/2010/03/arriscamentos.html
Tu, sabiamente, disseste-me uma coisa que eu muito sei, mas que por momentos não atentei... A ambiguidade do julgo...
"Pois... Sobressai a necessidade de serem defeituosos... O risco não é perderes algum, é cometeres alguma injustiça. Quem nunca errou que atire a primeira. Acabarás esses almoços à pedrada. Por outro lado já não me incomodam tanto os defeitos, alguns serão toleráveis face ao benefício das virtudes. Só te posso tentar convencer a que faças a coisa pela positiva para que passem esses momentos de partilha a enaltecerem-se uns aos outros, verás que o resultado será bastante melhor."
Uma "vil criatura", como tu próprio me vais ensinando, tem realidades, contextos, dramas, defeitos e virtudes que em nada o poderão desculpar, mas que isso por si só, não o rotulam, nem todo amplexo da sua vida por nós está contido. Bem sabes que não somos exactamente a soma das partes enquanto um todo... Mas isto digo eu, que faço muitas vezes o mesmo que tu e que o meu homónimo António...
Tu és um homem grande!
Um grande abraço meu amigo
O problema do António é mesmo esse. São os seus amigos que são grandes. Mais uma vez isso fica aqui bem claro. Mais uma vez estou a desculpabilizá-lo pelas decisões que ele tomou sozinho, pela trapalhada em que tornou o que era bastante simples. Não é o António que vale, são os amigos, como eu, que o defendemos e estamos sempre prontos a apoiá-lo. Mas já nem sei bem porquê, porque o gajo é sempre aquele com quem não podemos contar para coisa nenhuma, sempre entretido com a sua vidinha medíocre, e afinal para que quero eu um amigo que sempre que abre a boca me fale de indecências? O tipo não vê mais nada à frente dos olhos! E depois lá está, puxas-me pela língua e lá tenho de dizer verdades que preferia omitir, por ele não estar cá para se defender. Fazes-me cair nas inconfidências.
Seria por recordar os imensos defeitos dele que te deixei essas palavras, que me comove que tenhas lembrado, seria decerto por isso Mário, a falar de defeitos já o tinha corrido à pedrada, e mesmo sem falar desses defeitos tenho dias em que nem sei por que razão não o faço na mesma.
Como te digo, o que me engrandece é ser amigo de semelhante canalha, e digo-o assim sem modéstia, porque sei que muito poucos o conseguiriam.
Abraço Mário
Cybe,
Embora, eu nada tenha haver, compreendo-te melhor as razões. Peço-te desculpa por te levar a cair nas inconfidências, nunca seria essa a minha intenção. No entanto concordo, mesmo porque tenho grandes lutas, que sabes, com pessoas que parecem ter uma aptidão natural para fazer porcaria... Independentemente das vivências nunca tiram lições... Quanto ao valor da tua amizade, ocorre-me falar-te de missões que temos... Poderá ele estar a ensinar-te algo com a sua mediocridade?
Um abraço
A que catarse me obrigas... :)))
Bem sabes que sou uma mente aberta à aprendizagem. Talvez no fundo lhe inveje o facto de afinal ele ter coisas para acarinhar que sejam desejadas por alguém, muitos gostariam de ter essa possibilidade. Eu próprio talvez não consiga muito mais que acarinhar o meu ego. Na realidade pouco tenho para partilhar, porque a existência me está bastante condicionada, falta-me o tempo e assim... A inveja porém não é das melhores causas para uma amizade, no fundo talvez seja ele quem lucre pelo facto de eu nutrir por ele este sentimento menor, mas não terei muito mais em mim que justifique o nosso relacionamento. Tenho poucas dúvidas de que a sua falta de auto-estima me agradece o facto de o apoiar, ainda que por razões diversas das que lhe cruzem o pensamento.
O nostálgico sou eu, como se depreende do que para aqui tenho deixado, mas quem precisa da nossa ligação ao passado é ele, porque doutra forma não poderia respeitá-lo.
Claro que com toda esta hipocrisia latente estou longe de ser dos seus melhores amigos.
Um abraço
Uma temática de Dostateievski. Cyber, já leste "os cadernos do subterrâneo" de Dostaievski? Se não, peço-te que o leias, era um dos livros preferidos do Nietzsche (eles eram contemporâneos).
Um abraço,
Jorge
Os melhores amigos......................
Assinado:
O Fariseu...
Olá Jorge,
Fica-me o bom conselho. Não me vou esquecer. Bem sei que é imperdoável esta lacuna, mas ninguém é perfeito. Tenho simpatia por algumas ideias expressas por Nietzsche, mas não sou niilista nem iconoclasta, alíás a frase que tenho no meu perfil indica isso mesmo. Tendo a fazer algumas cedências a uma pretensa "consciência" que sinto tentar dominar-me e que me é fundamental para manter a humanidade.
O facto de deus não existir aufere-me, não a capacidade de aceitar tudo como permissível, mas principalmente responsabiliza-me por saber que nada me absolverá do mal que pratique.
Abraço, Jorge.
Olá Mário,
Olha que não está mal apanhado, não senhor. É a isso que te condenas ao escreveres textos belíssimos mas ambivalentes. O que tu és é um grandessíssimo Provocador, principalmente dos da minha estirpe, isso sim. :))))
Assinado:
O Publicano...
(Pelo sim pelo não ainda te cobro mais esta!)
Pois.
Olá Zé Caçador,
"Vede, POIS, como ouvis; porque a qualquer que tiver lhe será dado, e a qualquer que não tiver até o que parece ter lhe será tirado."
Lucas 8:18
Pois... É bíblico.
Abraço
não posso comentar este texto...
acho que isto não permite caracteres suficientes... nem discussões pelo serão dentro...
Olá Escarlate,
Certas amizades são de facto bastante complexas e inexplicáveis. Por isso compreendo perfeitamente a tua posição. :)
E quem é que não conhece um António, ainda que mínimo, nesta vida?
(sorrio). Abraço do Jefhcardoso, do Brasil!
Olá jefhcardoso!
Obrigado pelo encontro neste local, agora também seu.
O António é o vizinho do lado, às vezes nem sabemos bem se do lado direito se do esquerdo. E o espelho nem sempre nos dá a resposta, e no entanto ele ali está.
Abraço amigo, extensível a esse país maravilhoso com quem compartilhamos muito mais que a língua.
Então e nós, putas, que nos vendemos por dez réis de mel mal coado??:::
Tanto precisávamos de um António que tomasse conta de nós, Zé. Mas ao que parece não há muitos disponíveis, principalmente agora que os potenciais antónios estão todos de férias, talvez com medo de terem de tomar a rédea. Não são passíveis de eleição têm de ser caçados e seduzidos para a coisa.
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