sábado, 17 de julho de 2010

O primeiro voo do albatroz

Ao Mário Rodrigues que encontrou um aviãozinho de papel


Um dia peguei nele e deixei-o sozinho no meio do mundo.

Já não havia a minha força a embalá-lo e a subtraí-lo à chuva. Voltei para as coisas, simples, pequenas e fugazes, como penugem, a recordar-me que todo o significado da minha vida estava ali para trás, a cada metro de cada quilómetro que ia somando a noite à distância, se pudesse ter olhado para trás já não o veria, nem conseguiria prosseguir. O caminho árduo que conduzia ao meu destino embaciava-se agora com frequência. Finalmente parei, a uma distância que, por segurança, já tornava difícil o retorno. Parei, esfrangalhado.

Foi assim que ele abriu as asas e voou, pela primeira vez. Foi dos dias mais tristes da minha vida, e no entanto a felicidade teria mais lógica, a irracionalidade é por definição inexplicável. Ainda sinto que fui eu quem o empurrou do penhasco, embora todos me digam que não, que aquele acto de pura loucura foi o que havia a fazer, que isso era o bem, a norma, afinal . As asas, essas, eram só dele. A fé no seu voo terá sido minha, minha... Que nem sou um homem de fé. Onde arranjei a coragem? E se ele, a meus olhos implume, não tivesse conseguido? Que tremenda imprudência! A única, a fundamental. Todas as outras são brincadeiras a comparar com aquela cedência que cumpri sem reflectir. Se reflectisse ele não voaria, talvez nunca, e um dia já não saberia voar sozinho.

Mudou-se o centro do universo, que antes via agarrado ao meu umbigo,  mas agora só posso imaginar. As primaveras deixaram de ser só uma vez por ano, mas os invernos também. No entanto recordo que também eu abri um dia as minhas asas frágeis e me atirei desse penhasco, esfrangalhando, como compreendo agora, tudo e todos.  

É a sina de quem não conseguiu transformar o mundo num lugar seu, de quem se limitou a construir um pequeno quadrado inóspito e dependente. Culpei-me, naquela paragem forçada, por cada passo mais imprudente e por cada decisão mais conformista e inerte. Se, se, se... Tantos ses que me davam a possibilidade daquela partida precoce poder ter sido adiada, e todos a colocarem-me no cerne daquela consequência. Nenhum sofrimento por antecipação que me tenha ocorrido me aliviou sequer um pouco do peso que, embora não se compreenda, acaba por se carregar, porque deriva de termos falhado na conquista suficiente do reino onde a nossa lei seria a medida da protecção que queremos para o nosso clã, que entregamos assim aos verdadeiros senhores do universo, e às suas questionáveis leis, que nos submetem também a nós.

Compreendo que é essa vassalagem que me consome, como nem consumiu Abraão ao entregar o seu filho a um deus. É uma troca injusta porque nada tenho a pedir que me sirva, nem protecção divina que houvesse, porque toda a que quero é só para ele, nada justifica tamanho desequilíbrio. Naquele momento entreguei ao incerto o somatório de tudo o que fui e a continuidade que justificará, para o bem ou para o mal, o pó em que me tornarei. 

Passa um ano e outro, cada um não me apazigua a saudade que sinto de cada vez que ele inicia um novo percurso, ainda no momento da partida; nem o temor do momento em que o vejo tentar cada nova aterragem por que anseio, ainda bambaleante, depois de cada longa permanência perscrutando o céu infinito, que apenas adivinho.

Voltando ao ponto de partida, é a penugem que já não consigo olhar. Tudo permanece como que a aguardar que o tempo se inverta e que ele volte para brincar com as quinquilharias desvalidas que para mim são autênticos tesouros, fechados naquela arca, que chegou a ser um quarto, agora mero poleiro, de onde desejo, com frequência, perder a chave de vez.

A esperança que resta é de que a sua liberdade, que muito me apraz, lhe dê, a ele ou aos descendentes, a possibilidade de zelar melhor pelos seus e pelo seu universo, para que não tenha de abandonar um dia no meio do mundo alguém que seja parte integrante de si. Mas sei que peço o inexequível.

Sendo essa provação absoluta e incontornável, sei que no dia da dele, esteja eu morto ou vivo, também assim me realizo.


© CybeRider - 2010

29 comentários:

Mário Rodrigues disse...

Cybe,

Nada mais te comento neste pedaço de ti, que sinto teres feito com dor, porque a vejo e sinto...
Também eu neste momento compreendo ainda melhor, as preocupações que tenho, em prescindir de trabalhos a favor de cumplicidades e jogos nas ruas. Quantas vezes me culpo pelos que não faço, bem como pelos deveria ter feito... Ainda estou a tempo! Penso! Claro, enquanto as existências permitirem, mas acima de tudo, uns estúpidos "vergonhismos" que muitas vezes criam muros imaginários entre um pai e um filho nas brincadeiras e nas conversas cúmplices de desabafos, que poderiam e deveriam tornar as nossas existências mais leves e arejadas. Tens toda a razão. Sofrimento antecipado...nada vai aliviar a história! Será medo? Acho que é principalmente uma grande incapacidade nossa de compreender a ordem natural das nossas vidas, enquanto elos de uma cadeia interminável.
Um certo nó, de que já te falei um dia, está-me na garganta...
Sem grandes dificuldades, questiono a eficácia e a funcionalidade da nossa dita inteligência, a humana!... Parece-me, em todo o restante reino animal, que este problema não só não se põe como está resolvido por natureza, tal e qual uma involuntária inspiração ou bocejo...
Se muitas vezes tenho a sensação de que somos uns animais equipados de origem com um extra que já mais saberemos usar, nesta presente questão, então, acho que não sabemos mesmo como funciona...

Um muito grande abraço.

Sabes! Estou-te a ver com uma clareza e limpidez...quase estranhas!...

escarlate.due disse...

ando aqui numa espécie de jogo saltimbanco para decidir se comento deste lado ou do outro... está decidido: é deste lado mas... com a tua licença Cyber, posso dirigir-me mais ao Mário, não posso?! é que ao dirigir-me a ti só escreveria 1 palavrita "soberbo"

sabes Mário... acho que todos passamos por esses receios quase medos. são normais, não são?! fazem parte. é como aquela frase: "pelo menos de vez em quando tenho de ser chata, porque mãe que é mãe é chata" :)

mas sabes Mário... quando olho com atenção, com olhos de ver, sabes o que vejo? vejo o produto da minha dedicação, vejo as vezes em que mandei para trás das costas a vergonha e fui mesmo dar umas quedas de skate, ou engolir uns pirolitos a tentar manter-me numa prancha de surf, ou sentar-me na berma do passeio a rir disparatadamente, ou a rebolar pela duna de areia, ou a fazer uma "guerra" de caretas, ou a fingir que sou o pirata, ou, ou, ou...
e as longas conversas, às vezes sobre nada, ou as vezes em que trabalhava toda a noite para poder ter aquelas 2 horitas de brincadeira ou passeio...
e quando olho com olhos de ver o "produto" resultante... valeu a pena e gosto do que vejo.

lamento? sim, claro que me ressinto daqueles minutos que me passaram ao lado, daquele tempo que não dei, do beijo esquecido, dum erro cometido... mas se não fosse (também) tudo isso o resultado final não seria o mesmo de certeza, porque isso também faz parte do todo.

custa quando o pássaro voa? custa! mas sabe tão bem vê-lo voar. vem-nos ao de cima o orgulho como uma recompensa ou medalha de mérito e acabamos por sorrir :) e (quase) deixa de custar :)

claro que o pássaro continua a ser meu, continua pequeno, indefeso, dependente, mas apenas no mais recondito de mim porque na realidade sei que posso partir a qualquer momento porque aquelas asas estão bem formadas para voar até onde quiser e aquele bico e aquelas garras são fortes, robustas o suficiente para agarrarem alimento e um dia aquele pássaro saberá cuidar de outro pássaro e... eu contribui para tudo isso ao cuidá-lo, ensiná-lo, ama-lo e... liberta-lo

e sabes uma coisa Mário... nunca existe uma libertação total porque há sempre 1 penugem que fica connosco deliberadamente deixada pelo pássaro que nos vai sobrevoando, nem que seja à distância, sem dar nas vistas, só para nos recordar que há uma penugem que deixará sempre connosco mas que a nossa função terminou ali, no dia em que o deixamos voar

sabe tãoooooooo bem ver o seu voo picado, o voo elegante, o voo majestoso :) é uma tranquilidade tão boa repousarmos a vê-lo voar :)

Pepita Chocolate disse...

Não posso comentar movida pelo sentimento de quem já comentou atrás. Comento no papelde quem já já foi "empurrada do penhasco", onde me sentia segura, debaixo de asas que me protegiam. Depois entendi, que apesar de ventos fortes e ondas gigantescas, temos de ser nós a aprender a voar. Tivemos de ser nós a saber sair da casca, não sem antes nos ajudarem a picar a mesma, para tomarmos o primeiro fôlego de ar.
Não será fácil a quem ama e protege, deixar partir para a vida aquele a quem acha sempre desprotegido. Mas só partindo se criam defesas, se cresce e se vive.

Quando saí de casa a primeira vez- para ir para a faculdade - lembro-me de o meu pai contar que teve de fechar a porta do quarto, porque se entristecia em saber que não dormia ali, que a minha casa era outra. entristeceu-se quando o meu irmão "foi solicitado" para cumprir o serviço militar. E compreendemos que nos amam, que sentem falta de nós. No entanto, acho que nós também lhe damos alegrias, que talvez os compense.

Quando voltei a sair de casa- pela segunda vez- para ir para a minha casa, tudo lhe pareceu mais simples, mais fácil de aceitar. mas não se coibe de me mostrar que gosta muito que volte lá, o maior número de vezes possível.
Mas já percebeu que eu já tenho asas, que já saí do ovo, que sei voar, mas de vez em quando gosta de me ter debaixo das asas dele.

Se um dia vou estar do outro lado, a cobrir alguém com as minhas asas? atirar do penhasco, para que aprenda a voar? Não sei, só o tempo o dirá.Mas esse será sempre o ciclo da vida. Mas a pergunta manter-se-á: Será que fiz tudo? e acredito que também a mim me embaciarão os olhos. Porque o tempo passa, e quem um dia saiu de nós, passa a ser do Mundo!

Beijinho!(permite-me a familiaridade ;) )

Mário Rodrigues disse...

Cybe, um...o meu abraço!

Sra. escarlate... A senhora é uma Senhora... Um terno beijo

Mimi...Mimi... Um beijo

Pepita Chocolate disse...

Em resposta ao Mário:
O que foi que eu fiz?

;)

escarlate.due disse...

sou apenas uma entre tantas, Mário. obrigada.

Cyber, este é um espaço aberto à partilha e ao diálogo, não é?! então posso comentar de novo e dirigir-me também aos outros, não posso?!

MIMI, o seu comentário teve o condão de me fazer voltar ao tempo de pássaro a voar" (obrigada por isso)
e é tal e qual como diz Mimi :)
quando deixei a casa paterna (para prosseguir estudos) tinha uns míseros 15 anos (isto foi no milénio passado, há que notar) e permita-me Cyber, contar este episódio porque ainda hoje ele me serve de exemplo/guia e penso que ilustra bem o esforço que ambos os lados precisam fazer para que 1 "pássaro" voe.

fui estudar para a cidade que ficava a distância suficiente para só poder ir a casa ao fim de semana. a única pessoa que conhecia era o meu irmão que já lá estava nas mesmas condições num quarto para estudantes numa outra casa.
no inicio de cada mês o pai entregava-nos 1 série de envelopes cada um deles com a verba para pagar alojamento, livros e material, refeições, gastos pessoais, transporte de fim de semana, etc
ora na 1ª semana que lá estive eu, como bom pássaro armado aos cucos, gastei o que não devia onde não devia gastar.
foi então que liguei para casa "pai, não tenho dinheiro para o transporte"
pergunta o pai: "mas não havia 1 envelope que dizia transportes?"
"sim, mas eu gastei"
e o pai, na sua enorme calma (às vezes irritante), agarrado a uma pedagogia que eu sempre admirei porque não considero fácil de aplicar quando se é progenitor, responde:
"não faz mal filha, no dia 1 do próximo mês recebes outro"
durante 1 mês permaneci lá, sem verba alguma para gastos próprios, sem conhecer ninguém, sem ir a casa e a ver todos os meus colegas e irmão a partirem ao fim de semana...
durante 1 mês os pais não entraram no meu quarto, não gritaram comigo nem me ralharam pela asneira, nem me foram visitar...
e eu aprendi a voar!!!
ainda hoje ao fim de tantos anos recordo esse episódio (e outros) sempre que tenho de tomar decisões, sempre que tenho de gerir o ordenado, sempre que tive de ensinar o filho a gerir as suas verbas e decisões...

sem dúvida que a nós progenitores nos custa encontrar e aplicar estratégias que lhes permitam aprender a voar e depois no meio de muitos medos e alguma tristeza, sentimo-nos muito felizes porque eles conseguiram voar.
e sem dúvida que a nós pássaros nos custam muito algumas aprendizagens e termos de deixar as asas que nos protegeram desde que nascemos e depois, no meio de muitos medos e alguma tristeza, sentimo-nos muito felizes quando percebemos que conseguimos voar.

e sim Mimi, quando lá chegar, vai atirar do penhasco e vai sorrir ao vê.lo voar, tal como acabou por sorrir quando daquela sua 1ª vez (e da 2ª) percebeu que já tinha asas suficientemente fortes e era hora de voar e conseguiu :)


nem sequer peço licença para deixar 1 beijo aos 3

Anónimo disse...

Uma ternura de um texto, CybeRyder...
Um abraço,
Nilredloh

Nirvana disse...

É engraçado como o tempopassa, o mundo gira, e de empurrados passamos a "empurradores". É engraçado como então percebemos tantas coisas que não percebíamos. Acho que quando somos empurrados somos um pouco egoístas. Pensamos apenas no imenso infinito que se abre à nossa frente, temos confiança. Grande parte dessa confiança vem precisamente de quem nos empurra. creditam em nós como ninguém. Parte-se-lhes o coração ver-nos partir, ao mesmo tempo que se enche de orgulho, receios e temor pelas vezes que sabem que iremos cair, mais ou menos a pique. Amam-nos mais a nós do que a si próprios. Por isso nos empurram. Até que chega o dia de nós empurrarmos. E aí vemos espelhados nos nossos olhos o mesmo brilho e as mesmas sombras que um dia vimos espelhados nos olhos de quem nos ama mais do que a qualquer coisa neste mundo.

Beijinhos, Cybe!

calamity jane disse...

E onde andas tu q te não vejo???

MorTo Vivo disse...

Cyber,

Onde andas homem??

Abraço das CaTacumbas.

the dear Zé disse...

Atão, isto não anda??!!!
Estás à espera do quê??!!

Milu disse...

Olá!
Passei por aqui... :)

escarlate disse...

aaaaiiii

the dear Zé disse...

Atão porra???!!!

AvoGi disse...

goste sim do texto
kis :=)

CybeRider disse...

Olá Mário,

O defeito estará no sistema que nos subjuga. Que outra razão haverá que nos impeça de dar largas aos sentimentos? Nalgumas coisas o futuro é previsível, ainda que "o melhor" seja o pior que poderíamos desejar, sabemos que não há volta a dar.

Um grande abraço.

CybeRider disse...

Olá Escarlate,

Muito me apraz que este ponto sirva de ligação entre quem cá vem. Principalmente porque o teu contributo sempre válido atinge neste pequeno quadro píncaros de lucidez que também me aliviam da culpa que posso sentir.

Bem-hajas!

CybeRider disse...

Olá Mimi!

Agradeço-te o ponto de vista que exprimes. Faz-me recordar pontos de referência por onde passei. Recordo-me da sensação do vento nas minhas asas, e da alegria que senti então. A compreensão "do outro lado" só a tive porém há pouco, na altura que descrevi no texto, até essa altura dou graças pelo meu egoísmo, faz falta, porque se eu próprio tivesse sabido, naquela altura, como é, não seria decerto quem sou, nem estaria preparado para compreender a falta que faz essa libertação fundamental.

Beijinho (ainda que a familiaridade esteja absolutamente justificada ;) ...)

CybeRider disse...

Olá Nilredloh,

Obrigado pelo abraço.

Outro para ti!

CybeRider disse...

Olá Nirvana,

Já li o teu comentário várias vezes. Não tenho nada a acrescentar-lhe. A tua clareza é absoluta, o que disser não lhe acescenta nada. Tu que sabes isso, não sofras por antecipação. Goza cada minuto porque se esvaiem como a nossa vida.

Beijinhos, Nirvana!

CybeRider disse...

Olá CJ,

O mundo é tão pequenino, mas tem tantas coisas que nos distraem.

Já venho...

CybeRider disse...

Olá MV,

Andei perdido, sem eira nem beira, mas lembrei-me que há um caminho. É bom voltar a casa.

Até já.

Abraço!

CybeRider disse...

Olá Zé Caçador,

E o comboio das 5 que não passa...

CybeRider disse...

Olá Milu,

As notícias são bem vindas!

:)

CybeRider disse...

Olá Escarlate,

Que dizer de um certo espaço?... :)

CybeRider disse...

Olá the dear Zé!

O comboio da linha número 5 destina-se ao purgatório e vai dar início à sua marcha.

CybeRider disse...

Olá AVOGI,

Obrigado pela visita. Espero que tenha sido a primeira de muitas.

Kis :)

Anónimo disse...

Lindíssimo texto.

CybeRider disse...

Muito obrigado! É a vida que tem coisas lindas, por vezes estranham-se, depois entranham-se.