sexta-feira, 31 de julho de 2009

Ah, Bonaparte! (Parte 1 de 2)

Importante foi o dia em que nasci!

Nesse dia criou-se o meu mundo. Quais seis dias e descanso ao sétimo? Não! Foi tudo num ápice.

Eu sei! Afinal, estava lá. Apareceu-me uma mãe, e um mundo inteirinho à minha volta. Alguns de vós apareceram-me aí, espalhados pela vasteza do meu mundo. Outros vieram depois, a somar aos que já havia.

Inventou-se-me tudo o que vos é dado ver, a meados desse dia. Aos que supostamente cá deveriam ter estado, criou-se-lhes uma memória, com parentes e sentimentos, com preocupações e tristezas, como se tivessem de facto existido tais vivências. A alguns inventou-se-lhes uma fé... Nunca aceitariam a realidade.

Nesse dia, num segundo, nasceram, morreram e fossilizaram-se, todos os dinossauros...

A mim, limparam-me tudo o que tinha aprendido. Para mim foi de facto o recomeçar do zero. Daí que não me recorde de vaguear pelo vazio, nem me lembre de nenhum passe de magia que tivesse originado o que vemos.

Essa é a verdadeira maravilha, e o segredo, de toda a criação!

E de repente iludiram-me de que tudo já existia há muitos anos. Criaram-me a História!... Hum... Histórias... Tantas!

Como se fosse possível alguma coisa existir sem eu cá estar! Imagine-se! Quem é que via? Quem é que ouvia? Quem é que tomava conhecimento?

Outros houve ainda... Acho que mos têm roubado, aos poucos, quase sem que dê por isso.

Olho para o meu mundo, para as minhas limitações, para todos aqueloutros que me são impostos, e compreendo que o meu poder de decisão parece relativamente pequeno. No entanto não deixa de ser tudo meu. Assim como quando dou à chave do meu carro, não comando a subida nem a descida dos êmbolos nos cilindros e no entanto eles movem-se. Também os que me rodeiam se movem, para dar vida a este mundo criado de propósito para mim.

Também o meu mundo se avaria. Nem tudo corre às mil maravilhas. Mas... Milagre! Conserta-se sempre por si! Haverá coisa mais fantástica? Nunca tive de reparar coisa nenhuma. É quase assim como se... Tivesse vida! Assim como eu!

Até por isso estamos muito bem um para o outro. Puseram-me cá mas não me incutiram a habilidade de o reparar. Por isso tenho confiança! Sei que todos esses que andam por aí, que povoam o meu mundo e parecem agir de forma caótica e irresponsável, só o fazem para me assustar, para me aumentar a adrenalina, e quebrar a monotonia. Afinal, nada poderá estragar o meu mundo. Eu nunca saberia repará-lo.

Não é um conto de fadas! É a realidade do mundo que se me fez. Não posso trocá-lo por outro, nem todos os que me rodeiam, mesmo sem se darem conta disso, podem evitá-lo. Todos estão dentro deste mundo que é meu.

Gosto de ver como partilho, sem inveja, porque o compreendo, e de forma natural, o meu mundo com todos. Alguns vestem-se de riquezas, e açambarcam cada pedrinha que lhes surja no caminho, outros não conseguem arrebanhar nada. Vivem pobres e infelizes. Não gosto deste aspecto do meu mundo, mas não tenho opção. Foi-me feito assim. Já compreendi que não consigo cobri-los a todos de segurança, saúde e tranquilidade. No entanto observo e faço um esforço para que as minhas ideias piores não os afectem. A indiferença com que me olham, mostra que não sabem que este mundo é meu.

Alguns até pensarão que sou eu que vivo no mundo deles, mas não compreendo essa forma de pensar. Aí começam as nossas diferenças. Eles que não sabem o que são e eu, que sei que eles são meras personagens do meu mundo, feitas à minha imagem e semelhança, para que eu não ficasse aqui plantado sozinho.

Vêm-me com conceitos de justiça que repudio, com ideias de divisão ou concentração de poderes. Hum!... Poderes... Se eles soubessem, que nem eu próprio tenho poderes sobre este mundo, e ele é meu!...

Acho piada quando me limitam a um país e dizem que sou português... Ciente como estou que andei livre pelo espaço antes que me dessem esta esfera para morar. E querem impor-me regras, e limitar-me as fronteiras. Como se pode confinar o dono à coisa? Limitar algo que é de alguém, sem cometer uma tremenda injustiça?

Por isso me nego a aceitar esta rebelião do meu mundo. Não deixo de achar que esta zona geográfica com nome é a minha casa. Deram-ma. Também pudera! Este mundo não foi feito com direito a habitação?... Pois então!... Se tenho o mundo, tenho também uma casa, este espaço rectangular enorme, cheio de gente. Estes têm um linguajar parecido com o meu, pois, fizeram-se-me vizinhos... Escusavam, ainda assim, de me ter povoado a coisa com tanta gente estranha. Afinal ainda só consegui aprender a viver com alguns...

Já não é mau. Podia ser bastante pior. Podiam ter-me colocado junto aos que quisessem acabar comigo... Se calhar alguns querem... A isso chamam eles homicídio!

Posso contar-vos um segredo?...

Se eles me homicidiarem, suicidam-se a eles próprios. Não lhes posso contar... Eles iam ficar tão desiludidos... Talvez até deprimidos, cheios de inveja, por saberem que afinal este mundo é mesmo meu.

Assim, farto-me de rir. Cada um parece mais importante que o outro. Alguns falam-me com voz grossa! Ah! Se falam! Pensam que me assusto... Já não!... Agora que descobri a diferença. Agora que sei o que eles são:

Peças do meu cenário!

Só tenho pena de uma coisa...

Ao ser dono de tudo acabo, eu próprio, por não pertencer a ninguém. E sei que me puseram aqui mas se esqueceram de pensar nisso.

E quanto mais penso, mais me convenço... Isto não é coisa boa...

Alguém deveria tomar conta de mim.


© CybeRider - 2009

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Quanto custa pagar?

O texto anterior ao aditamento foi publicado no dia 28/7/2009 pelas 13H10

Esqueci-me.

Tinha de pagar uma factura da EDP... Esqueci-me...

Sei que já há essas modernices do débito em conta... E eles querem. Mexer-me na continha, a seu bel-prazer... Sei que querem. Não deixo! Uma empresa milionária, a mexer-me nos trocos... À vontade. Até me dá calafrios...

Então vou ao multibanco... (Assim, em itálico, então não?...) Vou, quando não me esqueço. Desta vez esqueci-me. É fácil, é moderno, é tecnológico. Mas esqueci-me!...

Instalou-se-me o pânico... E agora? Lá fui, à procura do edifício onde se encontravam, por tradição, as dignas instalações da suprema entidade.

Já não. Agora tinham mudado, dizia o papel afixado no vidro: "Loja do Cidadão". Para o espaço comercial, recém-remodelado no centro da cidade. Olhei o relógio, do telemóvel... Ainda tinha tempo de parquímetro. Andei. Entrei no tal espaço, aberto ao público há... anos. A minha primeira vez, ali. Ora "Loja do Cidadão"... Não estava assinalada nas placas. Cá em baixo rodeava-me o mercado municipal, uma panóplia de lojas em riste, em suma, nada do que eu queria. Rodeei o espaço, cheirei o peixe, as hortaliças, a fruta. Olhei para o tecto, lá acima, como que a pedir a um deus que não conheço. Lá estava... Todo o andar de cima era a tal "Loja do...". E pensei que se calhar uma cunha do tal a quem não pedi, mas que me deu, talvez acabasse por dar jeito.

Ora escada rolante... Vá... Já sabes que não cais... Lá fui! Não era do lado direito. Fui para a esquerda, do outro lado do prédio imenso. Está bem, afinal temos de ter alguma paciência para lidar com as instituições. Um sorriso feminino aconselhou-me a tirar uma senha e dirigir-me para o corredor à direita, ao final, que era lá... Pois sim, é fácil. Algumas cadeiras ocupadas. Um lugar livre... No quadro o número 39 estaria lá sentado. Olhei para a minha senha... 40.

A jovem perguntou-me se eu era o número 39. Não... Sou o CybeRider, a minha senha é o número 40. Esperei alguns minutos... Pareceram quase uma hora, sossegadito, em silêncio. Subitamente o número mudou para 40 no tal visor, aquele ali bem ao cantinho. Pulei da cadeira onde me tinha acabado de sentar.

"- Venho liquidar a factura. Mas está fora de prazo." Afinal que não. Ainda perguntei, mas isto é a EDP, não é? Que sim. Mas que a factura tinha de ser paga num agente, porque nas payshop (o que quer que isso fosse) só dentro do prazo, mas que para minha felicidade estava um quiosque verde ali mesmo, logo ali, ao descer da escada e à saída da porta principal por onde eu entrara, que ela vira por onde eu entrara, claro que vira, a mim e à minha aura brilhante e resplendorosa.

Fui escada abaixo! O quiosque... Mais não era que o quiosque de jornais, centenário, agora com revistas da moda, e de moda, menos de lavores, mais de tecnologia e coscuvilhices, jornais carregados de desastres e política. E a fila, uma fila, como a que não havia na "Loja do...", mas ali era para o totobola. Talvez para o euromilhões, pois acho que agora é mais isso. Uma senhora baixinha entrou e atirou com o dinheiro para algures no espaço, tirou um Correio da Manhã e partiu esvoaçante apregoando que tinha de tirar um bilhete para a identidade, às vezes também procuro...

Foram só mais 15 minutos. Olhei para o relógio, pensei no parquímetro. E na Emparque.

Ainda recordei com satisfação a menina do guichet da EDP, na "Loja do...", ali pela fresca, a olhar para a cadeirita vazia à sua frente e a fazer saltar os utentes da cadeira da sala de espera, à medida que lhe aprazia carregar no tal botão, naquele intervalo, em que se cansasse de sentir a frescura e de olhar para o vazio. Que rica vida!

"-Fáiche fávô sinhô?..."
"-Para pagar isto."
"-Djinheir ú chequi?"
"-Dinheiro."

Foi fácil. Foi assim como antigamente. Chegava à EDP e estava 20 minutos na fila. Não havia ninguém perdido. A fila não era para o totobola, nem para o tabaco. Todos sabiam que para pagar a EDP, em primeira e última instância, seria na EDP.

Agora, fiquei a saber, para pagar a EDP. É como comprar a lotaria.



© CybeRider - 2009

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Aditamento: Em 29/7/2009 pelas 14H00 recebi uma carta da EDP, a informar que, caso o pagamento da minha factura ainda não tenha sido efectuado, poderei utilizar os meios comuns de pagamento, enviam-me um novo código para pagamento pelo multibanco...

Gastaram recursos deles, dos correios, do quiosque, quase uma hora - talvez mais, ainda não avaliei as consequências por inteiro - de um dia do meu trabalho, porque o código inicial não funcionava ao fim de quatro dias, e agora mandam-me outro código para pagar o mesmo valor.

Os códigos da PT permitem pagamento após alguns dias... Os da EDP não, eles repetem o envio, outra carta (no meu caso inútil), com novo código.

Paguei ontem... Escusava de me ter chateado. Para a próxima, não me vou chatear, não vou pagar até que me mandem novo código. Aprendo a cada dia. E assim o país avança... devagar... devagarinho...


© CybeRider - 2009

domingo, 19 de julho de 2009

Bom dia, Mr. Magoo!

Os meus óculos ridículos...

Desde cedo me envergonharam. Quantas vezes me apontavam a dedo, e riam-se na minha cara. Quantas vezes por isso os tirei, e deixava de ver o Mundo. Seguia às apalpadelas, à espera que me guiassem, por caminhos que não conhecia. Aí ninguém se ria, faziam-me acreditar que ia pela trilha certa.

Caí. Esfolei os joelhos. De novo o riso... Agora pelas minhas mazelas.

Por maldade me enganaram, sempre que os não tinha. Poucas vezes cheguei, portanto, a horas ao meu destino. Sempre incógnito. Por vezes tarde demais, também àqueles que me foram comuns a tantos, que fizeram comigo longas caminhadas.

Há porém os que me aceitam, sem embaraços. Acompanham-me pelas ruas onde alguns me caem aos pés, mortos de riso. Olho-os, a esses meus companheiros, nos olhos; enquanto encolhem os ombros sem compreender o efeito que causo, em quem nunca me viu. Ficam tristes, penso. Não é bonito rirmo-nos dos defeitos de alguém. Aceitam-me, com as minhas fraquezas; embora achem que as minhas lentes já me distorcem as coisas.

Estão muito velhos os meus óculos, as hastes mal se seguram, as lentes têm muitos riscos, adquiriram uma pátina, do tempo. As suas armações exuberantes, de cores esdrúxulas, dão-me um ar ridículo, muitas vezes. Sem que compreendam que, sem eles, não vejo nada. Já não tento, também por isso, que me vejam sem eles. Nem mesmo no meu campo de girassóis, onde passeio tantas vezes. Lá, nem procuro já distinguir a cor viva das pétalas. O meu campo de girassóis é todo cinza. Uma realidade a preto e branco que as fotos teimam em registar as cores.

Só os meus óculos me permitem ver essa realidade, exactamente com as cores que não tem.

Chego a acreditar que quem me conhece já nem repara que os trago. Não é raro ouvi-los dizer: "Nunca te vi de óculos...". Nessas alturas, quem se ri francamente sou eu, é nesses momentos que sei que cheguei ao meu porto seguro. E alguns até se arriscam a deixar-se guiar por mim. Aí, fico tentado a confessar-lhes a verdade. Sinto que lhes deveria dizer que os caminhos que sigo com estes meus óculos, os únicos caminhos que consigo de facto destrinçar, não são os mais directos, nem os mais seguros, mas apenas os únicos que consigo percorrer com alguma certeza. Talvez os mais longos e íngremes, muitas vezes os menos óbvios.

Simplesmente os que me permitem chegar a um destino.

À noite, finalmente, guardo-os na caixinha, de dobradiças já carcomidas; e adormeço.

Sonho... Vejo-os. Uma multidão que se ri e me aponta. Lembro-me de cada rosto que se repete, sempre da mesma maneira, nesse meu pesadelo:

Encontro-me nu, num imenso campo de girassóis cinzentos onde apenas a armação nos meus olhos brilha. E eles encontram-me pelo brilho e seguem-me, seguem-me todos para um abismo enorme onde serei o primeiro a entrar.

Vêm sequiosos, como feras famintas, querem ver-me cair do cimo do penhasco; uns trazem máquinas para registar o momento, outros vão tirando apontamentos. Não consigo parar, a minha queda será inevitável, naquele abismo imenso, naquela boca imunda e fétida que se abre a metros escassos dos meus passos compelidos e inseguros.

De repente, oiço um ruído cavado. Olho para trás, ainda a medo, e vejo-os a todos caídos. Alguns levantam-se contundidos e confusos. Nenhum conseguiu ver o obstáculo que saltei.

Olho para o abismo, que se abre a curta distância e volto a olhar para eles. Todos esfolaram os joelhos.

Rio-me, rio-me mesmo muito, por fim. Vejo-lhes os esgares de espanto. Apreendo que todos caíram por não terem afinal, uns óculos iguais aos meus.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 14 de julho de 2009

Um momento na vida de Lucky Luke

De todas as personagens de Morris, a que sempre me deu maior satisfação foi a do Cowboy Solitário. Os textos de Goscinny faziam jus aos bonecos; o que resultava, como sabemos, numa das bandas-desenhadas de qualidade mais reconhecida de sempre.

Lembro-me de devorar as aventuras do dito, e de viver cada vinheta como se a tencionasse transpor para a realidade.

O pequeno momento que refiro é, por tudo isso, intemporal.

Luke deixara o Jolly Jumper junto a uma árvore à entrada do saloon. Lá dentro, comia-se, bebia-se, falava-se. Espiras de fumo ocasionais percorriam o ambiente levadas pela brisa do entardecer. O pianista não tinha comparecido. Luke pegou na viola e começou a entoar uma balada.

Ela aproximou-se, juntou a sua voz potente e maravilhosa. Aos poucos a voz de Luke deixou de se ouvir, acho que ele não tinha afinal tanto jeito para a música, porque a viola se calou também. Em minutos era apenas a voz dela que entoava pelo salão. O pequeno, de cabelo encaracolado e uns olhos lindos de arcanjo, sentara-se havia pouco tempo junto deles.

Escutava atento, também ele, aquela voz melodiosa de beleza ímpar. Olhou-a nos olhos e, com a honestidade que só as crianças têm, e talvez a tentar interpretar o olhar cúmplice daqueles dois, perguntou: "Mãe, estás a tentar seduzir o Luke?..."

Ela, sem interromper a balada, talvez à espera de uma reacção à altura, olhou para Luke; que mudara de cor; que olhava agora para o lajedo do chão, enquanto afagava o Rantamplan; enquanto tentava engolir um impossível do tamanho do Mundo, e com esse impossível também todas as frases que justamente demonstrariam ao pequeno que a mãe dele, por ter além do atributo da voz também os outros; de ser linda, inteligente, e jovem; não haveria nunca de precisar de seduzir quem quer que fosse, pelo simples facto de que qualquer homem ficaria logo seduzido, apenas pela presença dela. No balão da vinheta ficaram apenas as reticências que emanaram da voz do Luke.

Luke, que fora o pistoleiro famoso que conhecemos, já raramente ensaiava o tiro, a sua sombra que ele batera em rapidez tantas vezes, era agora a mais rápida, e ele tentava apenas segui-la.

Também naquele dia a sombra o levou por um caminho dúbio, onde ele ficou sem resposta adequada, sentindo que mais um pouco da sua juventude se esvaía naquele cenário.

Saiu do saloon, montou o dorso do Jolly Jumper. Sem olhar para trás, seguiu o seu destino. Quem tivesse boa audição ainda o poderia ter ouvido a cantarolar ao longe:

"I'm a poor lonesome cowboy... And a long way from home..."


© CybeRider - 2009

domingo, 5 de julho de 2009

Moto-contínuo

Observo o langor da queda daquele bago de areia.

Muito lentamente cai, seguido de outro e outro ainda. Perco-me algures na contagem. Penso na vida, nesta paragem de autocarro, sem saber o destino.

Olho em redor, cada um na sua paragem. Ínfima...

Cada um, dos que aguardam, poderia tentar contar cada grão de areia que cai. Cada um opta por acompanhar as notícias. Cada um opta, também, por cultivar um pequeníssimo inferno à sua volta. Ninguém quer saber do grão de areia que existe apenas para cair. Ninguém se importa acerca do sentido da sua própria existência, ou da subjectividade que anteviu a sua própria criação, nada se questiona, nada parece incerto; sujeitos a uma queda igualmente imprevisível.

A velocidade do pequeno grão de areia, que parece elevada, demora exactamente o necessário para chegar de um ponto a outro; nem mais, nem menos. Perfeito no seu desígnio, sem falhas, sem acidentes. Um olhar atento revela porém que é muito lento. Naquele percurso singelo, os potenciais observadores cansam-se de aguardar o autocarro que não chega, que no entanto não querem que chegue, por não lhe conhecerem o destino; outros surgem como que de parte nenhuma, outros há que embarcam para parte incerta. Num mundo coberto de paragens de autocarro, o percurso do grão de areia, que ninguém vê, que ninguém chama pelo nome, é uma eternidade. Hoje estou a vê-lo cair... Devagarinho...

Observo o frágil balão de vidro, como um ventre inchado de uma Vénus paleolítica, que num parir constante vai fecundando o outro, em baixo, até que se esgote toda a areia que, no entanto, não tem fim.

Compreendo a importância de cada grão que nasce indiferenciado de tal mãe e que parte para o desconhecido, num movimento perpétuo. Adivinho o temor em cada um, ao passar por aquele estreito ponto da segurança da matilha imensa para o seu salto singular. Sinto-lhe o palpitar acelerado até se voltar a reunir com os irmãos ao fundo do abismo.

Sinto-lhe a amnésia também, que o fará cumprir o destino, enquanto a minha mão for dando voltas à bela estrutura, cheia de saber.

E, em vez de me sentir um deus, sinto-me afinal um grão de areia que teima em desconhecer, ou em não aceitar, que lhe dão voltas à vida. Mas não daqueles, antes dos que, um a um, cheios de protagonismo, emperram a perfeita engrenagem do mais perfeito relógio de corda.

A meus pés, o carreiro de formigas...



© CybeRider - 2009