quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Aprendiz de feiticeiro

-Escreve mais!

E eu escrevia. Mais uma linha, mais um conto e o consequente ponto. Mais um pesponto e uma cruzeta, mais uma volta e meio laço, mais um enlace e um nó, preso à garganta, como um atilho gasto e untuoso; uma forca, era mais isso.

Apertava-me o mundo ao torso, ligava-me à seiva dos vivos, a caminho para a morte anunciada, mas por verificar.

-Escreve mais!

E a caneta deslizava, como se tivesse vida, como se corresse a pedir socorro enquanto se esvaía pela alvura sem saber que vinha alguém atrás para interpretar o derrame, mas sem ganas de lhe estancar a sangria.

Eu corria atrás dela, a admirar-lhe as piruetas, antes mesmo de conseguir que os meus pensamentos me gritassem:

-Escreve mais!

Mas num tom diferente. Este, mais ditatorial, menos paternalista; soberano.

E lá ficava o relato do dia em que o Jorge me tinha contado como tinha encontrado a mulher à espera nas Caraíbas, enquanto ele pensava que ela tinha acreditado que ele tinha ido passar o fim-de-semana com o Pedro, para relaxar com a pesca na albufeira. E o Pedro a olhar para ele atemorizado, lá nas Caraíbas, no local mais improvável para encontrar algo que ainda não se tenha perdido.

Um parágrafo adiante, já o Jorge sem mulher, repetia-se a história. Desta vez foi o isqueiro que lhe apareceu na mesa do bar, também nas Caraíbas, que fixação a do Jorge. O isqueiro que tinha perdido, ali pegado à mão do Pedro, ao lado da Marguerita...

Adiante. Segue-se o Jorge, sozinho nas Caraíbas...

A pensar na mulher que pensava que não tinha perdido e que acabou por perder; o isqueiro que tinha perdido e que acabou por encontrar; o amigo que tinha um dia encontrado mas agora, pelo isqueiro, perdido para sempre; e no Pedro, esse, que tinha afinal encontrado a mulher que ele, o Jorge do conto, perdera antes ainda da primeira ida para as Caraíbas.

-Escreve mais!

E a caneta a esvair-se, no único destino que lhe poderia ser fatal: aquela folha lívida de espanto, expectante pelo que lhe ia sendo aos poucos revelado. A minha mão criminosa a delatar, a tecer considerações promíscuas sobre o que não me pertencia. Sempre a intrusão sentida a impelir-me a consciência a ditar-me a um adequado silêncio a que teimava em negar-me.

E eles a pedir que escrevesse. Mais... Mais... Mas os olhares perdidos sobre as suas vidas, que observo e relato, levavam-me a crer, enquanto a caneta se desfazia em reviravoltas, que afinal não eram pedidos sinceros. Porque haveria alguém de desejar que eu contasse mais contos e somasse mais pontos aos que já lhes assinalavam as faces circunspectas?

Mas por nada importar a ninguém se impunha a minha necessidade, sempre amante do efémero.

Um dia um amigo perguntou-me:

-Porque escreves tu?


E fiquei a pensar como seria a minha vida se não tivesse aprendido.




© CybeRider - 2010