quarta-feira, 23 de junho de 2010

Das coisas que não sei fazer

- Um cafézinho? - Perguntei.

- Não... Obrigado. Deixei de beber café.

Podíamos ter terminado a conversa por ali. Na aldeia estas poucas palavras envolveriam já os bons-dias, e toda a parafernália de objectos linguísticos, trejeitos, modulações, questões tolas sobre a saúde e menções honrosas ao lindo dia, que usamos na cidade para comunicar a nossa satisfação em partilhar um momento com um conhecido.

O Albertino era electricista, daqueles que o são agora e daqui a pouco serventes de pedreiro também. Já o conhecia e tinha-o em boa conta, nem tanto aos colegas que a vida dura lhe atravessava no caminho. Desses conhecia alguns de ginjeira, de quem, pela fiança do pobre Albertino, tinha até eu algumas ginjas a haver. Mas isso não era de sua culpa; mais da minha, crédulo e paternalista como nos fazemos quando chegamos, mundanos e batidos, à pacatez de uma pequena aldeia meio esquecida pelo tempo e pelos ares.

Dizia eu que podíamos ter terminado a conversa por ali. Mas o Albertino abriu a mão espessa e forrada a gesso, como se quisesse reflectir todo o brilho daquela alvura nos meus olhos e prosseguiu:

- Não sabia beber café! Tive de deixar de o beber...

E pendurou-me assim, a seco, aquela frase no estendal do juízo.

Por momentos olhei-o sem perceber exactamente se era deficiência do meu ouvido, ou do processamento da minha ideia, imaginei aquelas mãos brancas, como que roubadas a alguma estátua de jardim, e providas de movimento por algum desígnio divino, a agarrarem tão atabalhoadamente a pequena xícara que nem o líquido lhe conseguisse chegar à boca.

Finalmente a mão aberta resultou. Percebi, ao fim de alguns segundos, o tesouro que ele afinal me oferecia. Deixei de lhe ver a barba por fazer de três dias, deixei de lhe sentir o forte cheiro a trabalho intenso dentro da camisa de quadrados azuis e linhas brancas, com uma ponta a pender de fora das calças, perdi-lhe os dentes sarrentos; vi a pureza de um verdadeiro espírito prenhe.

Tingi a minha mão na dele, paguei já nem sei bem o quê, e fiz-me à vida.

Pensei em tudo o que, de facto, não sei fazer; mas que pensava que sabia até aquela altura!

Na forma alarve como me lambuzo de tanto do que gosto sempre que posso; dos pratos de comida; do vinho com que os rego; do tabaco; do descanso; do trabalho; do telefone; da água fresca nos dias de sol; dos serões com os amigos, sempre em exagero, até nos fartarmos e estarmos quase a cair, de sono até, às vezes; dos trajectos em automóvel; menos dos passeios a pé; das horas em frente ao computador; sei lá o que me passou pela cabeça...

E as palavras?...

E o sexo?... Meu deus!...

Tanto para me conter!

Poderia até ter tido eu a ideia longínqua e a ambição de que alguma vez pudesse achar-me possuidor de algo a ensinar ao Albertino. Que vã presunção!

Saí dali muito, mas muito, mais ciente da dimensão da minha ignorância e, por paradoxo fundamental, muito mais sábio.

Na realidade, não trocámos muitas palavras.

Foram exclusivamente as suficientes.




© CybeRider - 2010

domingo, 20 de junho de 2010

O Boneco de Corda


O Sol que brilha na rua
Hoje não brilhou para mim
E mandou recado pela Lua
Que esta noite, minha e tua,
Teria de ser assim.

Sofri um pouco, confesso
Por não sentir o teu beijo.
E desejei um processo
De encontrar um acesso
De resolver o desejo.

Olhando ao longe o vazio
Da tua ausência anunciada
Desejei perder este frio,
E o pensamento sombrio
De teres tu perdido esta estrada.

Recordei palavras tuas:
Que me amarás eternamente,
E imaginei-me pelas ruas
Pisando as pedras nuas
A fugir de toda a gente.

Lá longe oiço um barulho,
Tudo de ti me recorda,
Não me resolve o engulho.
E na noite azeda mergulho
Como um boneco de corda.

Vestindo esta ausência imensa,
Sinto a falta de um pedaço.
E também de forma intensa
A cabeça que não pensa,
E o coração que perde o compasso.

Ao Sol de amanhã vou pedir
Que afogue a minha incerteza,
Me dê ânimo para seguir,
Me traga as notícias por vir
E dê sabor ao meu pão sobre a mesa.

© CybeRider - 2010

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Soneto a carvão



Roubei do negro corvo as lúgubres penas
Com elas peneiro agora a minha penitente alma
Por consolação que estranhamente me acalma
Guardei delas, a medo, apenas as mais pequenas. 

Dessas, de tão sórdida, cruel e negra lembrança,
Arredei as mais impuras mas sãs loucuras,
Restaram, para meu desconsolo, as mais escuras
A constranger com força as réstias de esperança.

Assim me pavoneio, fingindo que não são minhas
As tristezas que desta forma inglória carrego
Antes tivesse eu pilhado a mais fofa das galinhas,

Não teria agora o corvo a tentar que as restitua.
Debato-me no meio da rua, a eito, como um cego
Tentando manter minha a roupagem que era sua.


© CybeRider - 2010

quinta-feira, 10 de junho de 2010

No funeral, outra vez

Numa busca pelos motores…
Coisa curiosa esta de buscar nos motores, dantes encontravam-se manchas de óleo, de gasolina, chatices, tubos e fita cola, miríades de fios emaranhados que nem cabelos; por isso não se lhes buscava grande coisa… Encontrei vários valores para o olho de Camões.

Uns, que custou dois tostões; outros, que custou cinco; há quem avente dez. Fica-me a sensação de que a cotação do olho de Camões variou com o aumento da inflação, assim como se houvesse já cotação de bolsa para coisa tão valiosa. Não me custa imaginar que no mercado as tabuletas das frutas e legumes tenham sustentado escritos a gritar por dois olhos de Camões o quilo de tomate ou, no talho, seis olhos de Camões o quilo de maminha. Palpita-me a crítica por pôr as maminhas a valer mais que os tomates, mas ninguém é perfeito.

Não faço a mais pálida ideia de quanto valeria agora um olho de Camões. Penso que, se o dele, homem de gabarito, valeria tanto ou tão pouco, um meu valeria decerto bastante menos. E a falta que me faz! Ainda imaginei uma hipotética cotação para os meus olhos mas, da maneira que estão as coisas, talvez não seja a melhor altura para estes raciocínios; até porque sem termo de comparação ainda haveria alguém que me arrematava algum e lá se me ia a honra se o não vendesse. Assim, para não ter de pôr uma venda num olho, resolvi não pôr um olho à venda. Muito menos dá-lo à pala.

Embrenhado por estes pensamentos, dou-me a confrontar a potencial carga de água que terá trazido para este dia a celebração do Dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, na data de triste memória da morte do grande poeta. É que não gostaria que nada se celebrasse por memória da minha morte, calculo que ele também não. Deveria ser a vida o que deveríamos lembrar e o nascimento que deveria sempre surgir-nos em mente. A recordação da morte de alguém deveria servir apenas para nos assinalar que nesse dia ficámos mais sós; para o mal nuns casos, para o bem noutros.

A data de nascimento, por outro lado, além de ter potencialmente sido já escolhida para muitas festas em homenagem do visado, teria a causalidade necessária para nos elevar de gratidão e bons sentimentos, sempre que ele fosse pessoa memorável e singular.

Assim a cada 10 de Junho lá fico com esta sensação estranha de que todo este alarido é para nos recordar de um funeral, o que aliado ao nome do meu país, não me augura nada de bom.

Mas sei que algures estarão pousados, como abutres, os que aguardam a morte do próximo génio patrício, para instaurar nesse o Dia Nacional dos Valores Humanos, decerto com mais justiça.


© CybeRider - 2010