terça-feira, 30 de março de 2010

Pequena paixão

Era elegante e sóbria.

Trazia consigo o carácter de quem foi talhado para encarar cada dia sem temer o amanhã. O seu dia seguinte era sempre um reinício e transmitia a confiança de que o mundo não acabaria nunca.

Um pouco mais velha que eu, já tínhamos ambos alguma experiência. Acompanhou-me, se bem recordo, por cerca de quatro anos. Felizes. Conheceu-me desventuras que não confessei a ninguém, partilhou comigo as aventuras mais memoráveis e as noites mais tristes, as menos sóbrias também; nestas tive sempre o bom senso de não a envolver em desacatos. Recordo uma noite em particular em que escrevinhámos poemas e tolices na toalha já manchada de cerveja, para gáudio dos presentes. Foi das poucas vezes que a coloquei em risco. Acompanhou-me a concertos. No dia seguinte, naqueles dias que o são porque temos de nos relembrar do calendário, estava sempre pronta para recomeçar um novo ciclo: aulas, estudo, dedicação; partilhávamos cada momento. Quando a não via era, ainda assim, omnipresente; podia contar com ela, sempre. Cumpriria os meus desígnios sem hesitações ou quebras, com abnegado rigor.

Pela minha mão vi-a descrever piruetas de emoção, cifrar com esmero os segredos mais audazes que não partilharia com mais ninguém; contemplei a forma delicada como descrevia os meus pensamentos e emoções como se fossem dela, cheguei mesmo a acreditar que sim, que eram seus e só seus. Escrevemos cartas de amor. Eu e ela talvez pudéssemos ter feito a diferença; quem sabe?... 

Agora é tarde. Separámo-nos haverão bem mais de vinte anos, quase trinta talvez. Rios de tinta que escrevi. Eram rios autênticos por esses dias; nada como essa seiva gelatinosa que agora se espalha em qualquer folha de terceira categoria, que já nem carece de mata-borrão. Naquele tempo era preciso cautela, perícia e instrumentos de confiança. A nossa separação foi-me dolorosa. Não esqueço o malfadado dia em que a deixei só por instantes no local errado para se ficar só.

Tive a ventura de lhe conhecer uma irmã. Faz dias. Partilham as feições e o nome de família. Era americana a minha menina; e a mana, claro está, também. Podiam ser gémeas, já que à primeira vista nada as distingue. Ainda presumi que pudesse voltar a ser como dantes. Mas um olhar atento revelou-me a minha pior suspeita:

É virgem...

Como se pode conservar a virgindade por mais de quatro décadas?

Ciente de que aqueles idos foram os meus mais promissores, reconheço a minha falta de capacidade para dar a esta novo ânimo, incutir-lhe a vitalidade que me fizesse recordá-la alguma vez com a mesma grandiosidade e viver a mesma simbiose que partilhei com a outra, que ainda admiro e pranteio.

Seria preciso voltar a adquirir um tinteiro, bombeá-la para a vida inoculando-lhe o fabuloso líquido. Não sei se o farei...

Como poderia educá-la, submetê-la, torná-la dócil à minha mão?...


© CybeRider - 2010


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quarta-feira, 24 de março de 2010

O matador

"Não nasci para matar!"

Grito, a convencer-me. E porém, vejamos:

Ao nascer quase matei a minha mãe. Valeram-lhe os cuidados médicos adequados para que não perecesse e me deixasse ali logo entregue à estatística, de mais um órfão à nascença; bem vistas, as coisas, sei lá se haveria alguma já nascida e mantida que assinalasse tais desventuras e nos convertesse automaticamente em números indignos, privando-nos de qualquer protagonismo.

Ainda faltaria mais essa.

Assim, fiquei sem carregar o peso desse homicídio absolutamente involuntário, bem vistas, as coisas também, nem a conhecia até à data. Tinha a desculpa de ser inimputável. Talvez por isso, comecei logo a matar. Matei a fome e a sede tantas vezes quantas pude. Não me consta que um recém-nascido alguma vez tenha sugado a mãe até ao osso. Maravilhas da natureza. Não sei se me faltaria a vontade, mas acredito piamente que não. Por mim não haveriam sobras depois do primeiro repasto. Agora já penso de outra maneira, talvez em contrição.

Em breve a sociedade já matava para mim, já não estava tão só. Comi cada bife sem mágoa.

Cresci de rompante e nem recordo os engodos em que ocultei essa intencionalidade assassina. Perdi-lhes o rasto nas recordações que aniquilei, na minha fuga desesperada para evitar o degredo de pecador penitente. Sei que continuei a matar, pelo que escalpelizo, convicto da minha inocência. Enganado por mim próprio.

Usei à desmesura o meu olhar de matador; armado, em parvo, na maioria das vezes; direccionado às presas incautas que lhe tentavam em debate intenso resistir; camuflando sentimentos pouco claros que justificassem tal atitude, acabei por ser poucas vezes bem sucedido mas, nas que fui, acabei por encontrar uma injustificada felicidade; algo felina, por desprendida, confesso.

Um dia puseram-me armas nas mãos para que matasse, coisa nenhuma. E estranhei. Estranhei principalmente a sinceridade do gesto. Como uma acusação pendente sobre o meu crânio, capaz de se soltar do pêndulo celeste para me trespassar a essência. Encarei a coisa como um fardo, e fardei-me durante o tempo que me pediram, sem saber ao certo porquê. Afinal pediam-me que usasse capacidades que desconheciam. Mas que eu sabia, sem desejar dá-lo a conhecer, o quanto era exímio na sua execução. Para a sociedade passei por mero amador. E deixaram-me escapar sem que suspeitassem dessa realidade assustadora. Agradeceram-me. Bajularam-me.

Nunca premuniram as ilusões que desfiz, nem as expectativas que gorei às minhas próprias mãos, nem as alegrias de outrem que sufoquei num ápice, sem hesitar. Sempre com a frieza do assassino mais cruel e horrífico.

Criei quimeras também, mas com o intuito deliberado de as abafar. Tantas estrangulei sem remorso.

E disto se fazem as memórias e as saudades, e os arrependimentos. Mais presas para juntar ao meu espólio; também estas que restem terei de matar, a seu tempo. Penso no móbil, calculo a forma.

Sei que por cada desmembramento me pesarão os danos colaterais; que os há. São as réstias de esperança, que se desvanecem em cada entardecer, em cada onda do mar que varre o sangue das entranhas restantes desses pobres entes que reprimo.

Das saudades que mato não necessitava. As saudades nunca aproveitam a ninguém, nem aos que partiram que deixam ali um cabo ancorado, nem aos que ficam e que acabam por entortar o pescoço no vislumbre do navio.

São as horas; tanto tempo que acabo por esventrar e que tanta falta me faria, para continuar a matança.

© CybeRider - 2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

"Skin Deep"

Havia muito tempo que não seguia um conselho naquele sentido.

Procurei-a por recomendação.  

Uma vantagem das confidências é recebermos em troca conselhos dos confidentes; nem sempre acertados, mas alguns dão-nos que pensar, outros seguimo-los por terem aquela lógica imbatível que nos leva por si ao tapete no primeiro assalto. Este foi assim. Consequência de uma desvalorização de auto-estima a cada dia que passou, do incremento em perscrutar a atenção alheia sobre a minha condição, ainda que ciente de que ninguém poderia pelo olhar desatento avaliar o meu sofrimento, ou mesmo as minhas mazelas.  

Entrei. Olhei-a nos olhos e disse-lhe de imediato que, apesar de não nos conhecermos, e sem mais delongas, estava disposto a tirar a roupa de imediato. Olhou-me com um sorriso e respondeu-me que afinal estávamos ali para isso. Não protelei. Despi-me e ela pediu que me deitasse. Senti as suas mãos percorrerem o meu corpo, milímetro a milímetro.

O toque de profissional experiente.

Procurei-lhe o olhar quase a medo, a tentar disfarçar o receio de lhe ler alguma crítica que me incriminasse, alguma insatisfação pelo que ali expunha que me pudesse diminuir à sua observação conhecedora. Estou certo que a minha tensão arterial subiu em flecha, sentia palpitar as veias temporais. Não estou certo se me terá mexido no cabelo; diria que sim, mas os pensamentos voavam demasiado depressa, o receio do desconhecido aumentava a cada fracção de segundo. 

Sobreveio-me por instantes a culpa. O juízo apriorístico de que a minha presença ali tivesse como causa algum vício maligno, ou que fosse o resultado de algum comportamento desadequado.

O seu olhar era calculista, desprovido de qualquer sentimento que eu pudesse sondar. Exactamente como eu desejara. As suas mãos continuavam a percorrer-me a pele, já não lhes sentia o frio. O meu temor porém mantinha-se, o seu olhar permanecia insondável.  

A minha intenção de pretender apenas satisfazer a minha necessidade, encontrou perfeita sintonia no interesse dela, absoluta e inequivocamente profissional. Dois perfeitos estranhos. A nenhum interessava que aquele momento pudesse ser mais que um mero encontro fortuito, irrepetível.

 

Vesti-me, paguei.

Afinal, não tenho com que me preocupar, trata-se de uma afecção benigna, talvez causada pelo Inverno estranho a que a minha pele não se terá ajustado.

Receitou-me alguns medicamentos e tratamentos a cumprir a rigor. Tenho nova consulta dentro de uma semana.

 

Mas já estou melhorzinho.

 

© CybeRider - 2010