Era elegante e sóbria.
Trazia consigo o carácter de quem foi talhado para encarar cada dia sem temer o amanhã. O seu dia seguinte era sempre um reinício e transmitia a confiança de que o mundo não acabaria nunca.
Um pouco mais velha que eu, já tínhamos ambos alguma experiência. Acompanhou-me, se bem recordo, por cerca de quatro anos. Felizes. Conheceu-me desventuras que não confessei a ninguém, partilhou comigo as aventuras mais memoráveis e as noites mais tristes, as menos sóbrias também; nestas tive sempre o bom senso de não a envolver em desacatos. Recordo uma noite em particular em que escrevinhámos poemas e tolices na toalha já manchada de cerveja, para gáudio dos presentes. Foi das poucas vezes que a coloquei em risco. Acompanhou-me a concertos. No dia seguinte, naqueles dias que o são porque temos de nos relembrar do calendário, estava sempre pronta para recomeçar um novo ciclo: aulas, estudo, dedicação; partilhávamos cada momento. Quando a não via era, ainda assim, omnipresente; podia contar com ela, sempre. Cumpriria os meus desígnios sem hesitações ou quebras, com abnegado rigor.
Pela minha mão vi-a descrever piruetas de emoção, cifrar com esmero os segredos mais audazes que não partilharia com mais ninguém; contemplei a forma delicada como descrevia os meus pensamentos e emoções como se fossem dela, cheguei mesmo a acreditar que sim, que eram seus e só seus. Escrevemos cartas de amor. Eu e ela talvez pudéssemos ter feito a diferença; quem sabe?...
Agora é tarde. Separámo-nos haverão bem mais de vinte anos, quase trinta talvez. Rios de tinta que escrevi. Eram rios autênticos por esses dias; nada como essa seiva gelatinosa que agora se espalha em qualquer folha de terceira categoria, que já nem carece de mata-borrão. Naquele tempo era preciso cautela, perícia e instrumentos de confiança. A nossa separação foi-me dolorosa. Não esqueço o malfadado dia em que a deixei só por instantes no local errado para se ficar só.
Tive a ventura de lhe conhecer uma irmã. Faz dias. Partilham as feições e o nome de família. Era americana a minha menina; e a mana, claro está, também. Podiam ser gémeas, já que à primeira vista nada as distingue. Ainda presumi que pudesse voltar a ser como dantes. Mas um olhar atento revelou-me a minha pior suspeita:
É virgem...
Como se pode conservar a virgindade por mais de quatro décadas?
Ciente de que aqueles idos foram os meus mais promissores, reconheço a minha falta de capacidade para dar a esta novo ânimo, incutir-lhe a vitalidade que me fizesse recordá-la alguma vez com a mesma grandiosidade e viver a mesma simbiose que partilhei com a outra, que ainda admiro e pranteio.
Seria preciso voltar a adquirir um tinteiro, bombeá-la para a vida inoculando-lhe o fabuloso líquido. Não sei se o farei...
Como poderia educá-la, submetê-la, torná-la dócil à minha mão?...
© CybeRider - 2010