terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Crise de identidade

Não costumo meter conversa na paragem do autocarro.

Não gosto de criar falsas expectativas acerca de possíveis laços que nasçam de coincidências absurdas. No absurdo de certos dias é o máximo que consigo fazer por alguém.

Naquele dia tinha acabado de passar um para o Inferno, mas ia cheio. Não faz mal, espero mais. Um jovem dirigiu-se a mim e perguntou se me chamava Orlando. Respondi que não, tinham-me chamado António há muitos anos, tinha-me ficado para sempre. Não adiantei mais nada, ao longe ouvia o ronco de outro motor, talvez tivesse mais sorte.

Semicerrei os olhos. “Parte Incerta”. Há-de servir.

- Passa ao Purgatório?
“- Se lá chegarmos.” Respondeu o condutor, com menos esperança que eu. Subi. Dali ao Inferno iria a pé, não devia ser longe.

É curioso apurar as coisas que nos passam pela ideia à medida que a farfalheira de um motor se tenta intrometer nas nossas vidinhas pacatas. Recordei o jovem e a sua pergunta.

Ora eu, que quando mal sabia que me chamava António já era Mourão, que sou Amália e Paco Bandeira, Florbela, Tonicha, Carlos Paião, Salazar para o mal, Madre Teresa para o bem; eu que sou Simone e Paulo de Carvalho também, Fernando Tordo e Ary dos Santos, que sou Alfredo e Marceneiro, Afonso e Viriato, não por esta ordem nem por qualquer outra. Eu que fui Vickie normando e Abelha Maia, Super-Homem e Super-Rato, que andei à chuva na praia, que me perdi no mato, antes de aprender a ser homem. Eu que fui Laranjina-C e sou Coca-Cola, que sou Picasso e Gauguin, Maluda e Fernando, sou também Pessoa; sei pintar à pistola; às vezes bicho, sou Saramago; António Antunes, e Lobo amiúde, que sou Camilo Castelo, dizem-me Branco, e a quem dizem essa de também ser Eça, que sou bela peça; também diria que sou Jorge e que sou Amado, e venero a saúde quando estou constipado. Que já fui rei e também princesa, Mário Viegas, e outra vez Branco, desta feita de Freitas. Que quando penso o que faço aqui, tenho atitudes que não lembrariam Dali, se grito a pedir uma pequena ajuda fico ansioso por medo de que alguém me acuda. Fui ainda Platão e platónico, e Aristóteles; fui mais gramático que matemático; também fui Sócrates, mas o antigo; fui Bocage, e antagónico, fui umas vezes sacana e outras amigo. E que nasci de uma corda agarrada ao umbigo. Que já fui pai e tentei ser mãe; já fui neto, tio e primo também. Eu que sou Rui e que sou Veloso, que sou Jorge outra vez, e sem dúvida Palma, que falo de Hitler e fico nervoso, que sou Lenine e matei Mussolini, que falo de Estaline com uma dor na alma, que vi fitas de guerra e de Pasolini, e filmes de amor, que dancei de alegria e gritei de dor, que choro sem saber às vezes porquê e rio para espanto de quem nem me vê. Sou tantos nomes que já me esqueci e outros tantos que também nunca ouvi.

O autocarro ia andando, ladeira abaixo e eu, o António, ia pensando que sou tantas coisas mas, tanto quanto acho, não sou Orlando.

Não era longe. Bati à porta. Pelo ferrolho uma voz cavernosa perguntou-me:

- És o Orlando?
- Não, sou o António. Se calhar, venho adiantado.
- Vieste enganado. Estão à tua procura na paragem do autocarro.

Não costumo meter conversa na paragem do autocarro.



© CybeRider - 2011

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Carta a um filho

Meu filho,

Tenho a dizer-te que pertences a uma estirpe antiga. A mesma a que pertencia o primeiro homem que traçou no chão um limite e usurpou um pouco do que era de todos e lhe chamou seu. Nesse dia determinou também a forma mais antiga de exclusão, aquela que ficámos fadados a esquecer, a exclusão pela propriedade.

Só pelo amor que te tenho, e por seres meu filho, te posso confessar este segredo que nós, os crescidos, guardamos arrependidos e do qual ninguém fala. Este foi de facto o pecado capital. Não importa o que te digam, hão-de mesmo tentar convencer-te, como fizeram comigo, de que é um deus que te condena por amor. Nunca deus algum terá por ti este sentimento que eu tenho e que é precioso, e por isso te digo a verdade.

Também nasci livre, como tu. Só no dia seguinte constatei que afinal os braços da tua avó me protegiam de algo horrendo. Por razão estranha o mundo não me pertencia como pensei quando o vi. Havia outros, com poder para me derrubar, subjugar e me dizer que eu não pertencia ali, e que também chamavam seu ao meu mundo. Durante anos a nossa família acolheu-me, como se acolhe um filho, alimentou-me, vestiu-me e deixou-me ter sonhos; mais até do que os que eles pudessem ter tido um dia. E sei também que sonharam contigo, ainda que não mo dissessem. Dirás que tive sorte, e é verdade. Tentaram a seu modo ensinar-me a obedecer, a tornar-me um escravo dócil de outros, para que a vida me fosse menos dura. Ocultaram-me esse segredo, que tão bem conheciam, e que te conto,  por terem sido também eles escravos vitalícios. Estudei quanto quis, muito mais do que eles alguma vez puderam, às suas custas. Chamaram a isso educação. O mesmo nome que dou aos ensinamentos que tive de te infligir, por saber que esses princípios te ajudariam a conviver com os outros com menos dor. Sei que chamas trabalho ao esforço em que te empenhas para seres "alguém", mas para mim, que sei o que é trabalhar para os ideais de outrem, aquilo que fazes serve principalmente a minha consciência, por compreender o teu sonho que torno meu, enquanto luto a cada dia por conquistar o meu quinhão de justiça que me permita deixar-te um mundo onde possas singrar por ti. Bem sei que as ferramentas que te dê te serão úteis, e sei também que precisarás de todas elas.

A tua geração já nasceu no resultado de um sonho que partilhei. Sonhei que o teu mundo seria diferente, ainda que não pudesse mudar o fundamental da realidade instituída, achei que deveríamos ter o direito de exigir a quem usufrui do resultado da minha força de trabalho, a nossa sociedade, que te pagasse os estudos, a saúde, e o acesso à cultura. Nunca soubeste a amargura de ser excluído destas facetas da vida por falta de dinheiro. Não te posso adiantar muito acerca da justiça, porque essa já nasce inquinada pelo pressuposto de que a natureza que te colocou no mundo tem dono. Sei que a tentarás encontrar, que a aplicarás com saber, e que sofrerás pela falta dela. Precisarás sempre desse bem, como do pão para a boca.

A vida ditou aos teus avós que eu seria português. Ouço-te dizer que este país não te interessa, a amigos teus ouço dizer que os envergonha. Dizes que és um cidadão do mundo. Esse outro mundo que também rejeita os seus, o mesmo que me chama turista, onde sou por vezes demasiado branco, noutras demasiado preto, por ocasiões demasiado pobre e pontualmente demasiado rico. Talvez não saiba fazer em Roma como fazem os romanos, mas sei que aqui posso fazer como fazem os portugueses, ainda acredito até que sou capaz de os levar a fazer coisas por mim, ainda que a minha esperança, como a tua, vá esmorecendo. Há uma diferença, a tua deveria estar viçosa como tu, enquanto a minha vai acompanhando a invernia que começo a ver chegar.

Ouço-te dizer que és parvo, e isso dói-me. A injustiça que te confunde é algo por que não lutei. Dás nomes tristes à tua geração, surpreendes-me. Eu pertenço a uma geração sem nome que viu surgir uma revolução de onde havia submissão sem ter havido revolta, para a maioria não passou de uma libertação de um cárcere que se sentia sem se ver, onde a minoria esclarecida estava arredada à força, incomunicável com a populaça que temia represálias. Os mentores da liberdade reuniram-se e aceitaram o poder da mão de um punhado de militares que, mal armados, se impuseram mais pela lógica que pela força. Até que nascesses vi mudanças que deram esperança a um povo amansado por décadas de ignorância e exclusão social. Vi-o em festa erguer os braços e gritar palavras de ordem e cantar canções de liberdade. Diziam então que “o povo unido jamais será vencido”, e pelo que vi avaliei que para mim e para ti o futuro seria promissor.

Como queres então que te ensine essa força de rebeldia que nunca soube conduzir? Os livros vermelhos estão algures esquecidos, as bandeiras que incentivassem a glória estão carcomidas e esfarrapadas nalgum caixote em parte incerta. Nunca pensei que voltasse a precisar deles.

Quando ouço agora as tuas canções de intervenção sinto a mesma desilusão que senti quando ouvi apelidar de “rasca” a geração que me procedeu, por sublimar a irresponsabilidade latente dos que não tencionaram honrar o corolário de um estado social onde todos pudessem ser iguais. Vi o poder alucinar os homens e compreendi que a democracia que acarinho ia sendo substituída por um sucedâneo de muito má qualidade onde impera a pouca-vergonha dos que singram com facilidade através de clubismos e artimanhas, regalias desmesuradas, corrupção, compadrios obscuros e vilezas sem que haja forma de os confrontar com a qualidade do desempenho nos cargos que ocupam, normalmente contrastante com as benesses que auferem, ou de puni-los pela forma predatória como se refastelam indevidamente.

Não, meu filho! O estigma que carregas não é o de seres parvo! É o de pertenceres a um povo humilde e ingénuo que se deixa enganar, que é chantageado para ter os seus poucos direitos e que sofre por ver frustradas as expectativas onde investiu toda a esperança. São qualidades e defeitos que abundam nos bons, sempre reprimíveis com facilidade.

Mas disso nunca terás de te envergonhar. Vergonha será sempre dever e não pagar. Cumpre sempre com os teus deveres, mas isso já te tinha dito.

Falta agora ensinar-te a que não te vendas por pouco, lição que não aprendi. Não esqueças o segredo que te contei. Pega num pau afiado, e traça com coragem uma linha à volta deste país, chama-lhe teu, e expulsa os que usurpam aos teus velhos pais aquilo que te pertence por direito.

Que parvo, tu não és.


© CybeRider - 2011

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Presença


São os diamantes do teu sorriso.
. 
São teus passos despidos sobre o silêncio
No chão vazio de sentido.
São os teus braços maternos
Vigiando-me menino
Sem cigarros nem gravata,
Sem pessoas...
São os teus olhos luzentes, curiosos,
Quase a medo.
É a tua pele do marfim mais doce,
Mais macio, mais quente,
Mais de veludo e seda.
São teus beijos de amante
É a tua língua rubra
Limando na minha carne
Linhas lindas de prazer-delícia,
Êxtase de loucura.
São raios do teu cabelo
Devorados vezes mil
 Por dedos tão cúmplices
 De mim e ti; os meus
Que sou teu... Tanto!
Salteador ateu
Profanando tesouros que encerras
Milenários
De carinho cuidado,
Tecidos por ti, vestidos por mim
Transformados unos
Nos lábios; na voz;
No sentir-te sentires-me
Em ti, em mim, em nós.

 
© CybeRider - 2011

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ode aos surdos


“O que dizes não se escreve”,
Tanta vez ouvi dizer.
E por acreditar não escrevia
Tantas coisas que esquecia
Por evitar de as escrever.

Bastas ocasiões invejei
Eruditos de toda a parte
E outras tantas me impedi
De dizer o que não escrevi
Por duvidar da minha arte.

Seguros nas convicções
Tantos em contracorrente
E eu em silêncio profundo
Ouvia as injúrias ao mundo
Por me negar a ser gente.

Por não ter os manuscritos
Calava a minha razão
E tantas vezes contive
Tantos lamentos que tive
Pela minha humilhação.

Gritos calados bem fundo
Que eu evitava escrever
E eles todos escreviam
Tudo aquilo que diziam
Sem terem de se esconder.

O que tanta vez pensei
Consegui dizer um dia
E olharam então para mim
Como se vissem por fim
Um morto que renascia.

Mais vale que vos caleis
Que não haveis aprendido
E nem amigos tivestes
Para vos tirar dos agrestes
Caminhos por onde tenho ido.

Por esses tão pobres conceitos
Calai-vos, tentai esquecer
E evitai a confusão
Não sabeis decerto a lição
Que eu tive de aprender.

A que me serviu de mote
Por bons exemplos ter tido
E não se devia escrever
O que tendes para dizer
Nem por ninguém ser ouvido.

Resolvi testar por mim
Aquilo que tanto me ocupa
E passar a escrever amiúde
O que considero, pela saúde,
Ser o que ninguém preocupa.

Com surpresa aprendo assim
Também com contentamento
E outra lição tiro a quente
Não fico mais eloquente
Nem mais forte de pensamento,

Não memorizo na mesma,
Descubro o que ninguém quis
E sei agora afinal,
No saber da gente normal,
Que o que escrevo não se diz.

© CybeRider - 2011