terça-feira, 28 de abril de 2009

Fútil

A HORA DO CHÁ

A senda do ser
É um fio estreito da tua blusa.
Duas pitadas
Da areia mais pura do deserto
Dissolvem-se no teu chá:
Mar morto juncado de cadáveres
Importados da Índia.

Uma pele manchada de natureza
Escorre-te pelos braços nus, agora quentes
E um rafeiro de tédio
É um nó bocejante a teus pés,
Leitosos, tratados, de garras limadas
A tinta escarlate.

As cinco horas queimam-te os dedos
Na porcelana de renda.
O cheiro a nostalgia
Enche-te o salão sonante
De claves de piano;
A sensualidade
Brota-te dos poros, humedece-te
Queima-te a pele nívea, agora rósea.

E tu, flutuas nas florais borras
Do teu chá
Sem gosto,
Adormecido.



© CybeRider - 2009

sábado, 25 de abril de 2009

O meu primeiro cravo vermelho

- Acorda pá! Anda ver a guerra!

Mas não era. Era a satisfação e o nervosismo do meu pai, ainda sem perceber bem o que estava a acontecer, mas já na expectativa de que as coisas nunca mais seriam as mesmas. Nem a BBC de Londres que ouvia baixinho e com a recomendação do "nunca fales disto a ninguém..." o poderiam ter preparado para tudo o que iria mudar naquele dia.

Muito se escreveu, muito se fotografou, muito se falou. Mas esta perspectiva ninguém teve.

Porque é a minha.

Recordo as imagens a preto e branco na Tv. E ficou-me para sempre a memória de um homem que vi pela primeira vez nesse dia, o capitão Salgueiro Maia. E para mim a revolução só aconteceu porque na Rua do Arsenal este homem, que era um revoltoso, teve o sangue frio de ficar frente à mira de um atirador que, à ordem de um oficial para que disparasse, não obedeceu.

Vem-me no entanto à ideia que o nome desse atirador eu nunca o soube...

Talvez esta tenha sido a primeira injustiça de Abril. E talvez seja por isso que a nossa democracia afinal seja como é, onde o protagonismo de alguns deixa no anonimato os verdadeiros autores dos feitos dignos de nota.

O 25 de Abril de 1974, como factor que rapidamente se compreendeu ser de importância fulcral para o futuro do país, foi também o momento de mencionar demasiados nomes, desde os intervenientes heróicos, aos derrotados, aos que estiveram presos do antigo regime. Alguns desapontaram mais tarde, outros nem tanto.

Não nos lembramos muitas vezes que aqueles soldados, ao contrário dos do meu tempo, estavam absolutamente preparados e treinados para matar, essa era a sua função. E se ainda pelos anos oitenta, já sem guerra, o respeito por qualquer ordem de um oficial era inquestionável, como comprovei pessoalmente por obrigação que me foi infligida, penso que naquela altura o seria ainda mais.

E quanto mais penso nisto, menos compreendo por que motivo ficou esse para a história como um fraco se foi afinal o que fez toda a diferença. Era apenas uma gatilhada legítima e não teríamos provavelmente tido a nossa festa. Os diários teriam parangonas menos vibrantes, um traidor teria sido abatido e a honra do convento teria sido reposta.

A esse atirador que por uma aparente falta de coragem em cumprir uma ordem de execução, transporta talvez ainda o peso da injustiça, a esse como digo, atiro o meu primeiro cravo vermelho.

Ao Salgueiro Maia, atiro o segundo.

Aos outros desse dia... Que agradeçam a boleia que estes dois lhes deram.


Eu era um puto, que dali a poucos anos iria para África matar turras. Tinha a cabeça feita para isso, fazia parte de crescer homem. Abençoado atirador, que ou me salvou a mim ou aos que me estariam destinados.

Quanto aos cravos... Só nesse dia lhes conheci verdadeiramente o nome, e a cor.


© CybeRider - 2009

terça-feira, 21 de abril de 2009

Xadrez

Espanta-me o realismo do xadrez.

Os peões, os cavalos, os bispos, as torres, a rainha e o rei; numa aparentemente pequena variedade conseguem transpor para um pequeno tabuleiro muitas das situações com que nos deparamos a cada passo.

Se hoje sou o peão que se desloca vagarosamente pelas colunas, amanhã serei o cavalo veloz que salta obstáculos, ou uma das outras espécies que percorrem grandes distâncias de uma só vez.

A identidade com o rei é no entanto menos evidente, claro que há semelhanças, no refastelanço do sofá, na inércia que me atinge nas horas vagas, no pairar calmamente no sossego do meu reino. Só a assumo verdadeiramente, na maioria das vezes, para perder o jogo. Não fui decerto talhado para grandes protagonismos.

As torres, surgem como metáforas à forma como nos deslocamos, galvanizados nas nossas armaduras, do ponto A ao ponto B.

Os bispos, sugerem a forma idealista com que transpomos subjectivamente a relação entre o empírico e o desconhecido (a diagonal é uma via pouco clara num panorama marcado por eixos perpendiculares).

Noto que me esquivei a comparações com a rainha. A minha faceta de transvestimento é demasiado diminuta para que me identifique com ela, prefiro admirar-lhe os movimentos graciosos e as jogadas tácticas devastadoras com que dominam o panorama estratégico. O meu trajecto é principalmente mais linear e previsível, do que aquela capacidade omnipotente de devastar com um simples gesto tudo o que se encontre ao seu alcance.

Isto para alinhavar uma ideia que me ocorre sempre que no meu trajecto de torre, ansiando chegar rapidamente do tal ponto ao outro, me deparo com um peão que me salta à frente do percurso numa passadeira, em manobra repentina de um en passant quando estou a chegar à beira da dita e me obriga a esforços obtusos para conseguir parar antes de o comer, trocando-me em seguida ares de reprovação em vez de um merecido agradecimento. É que eu paro de facto nas passadeiras, e paro sempre! Mas devia haver mais respeito pelas regras. Cada jogador devia jogar na sua vez.

Se na condição de peão sou levado a pensar nessas circunstâncias, em que me esmero por cumprir as regras do jogo e dou espaço, quando estou investido de outros poderes sinto que também deveria merecer o respeito dos que se deslocam como peões no nosso tabuleiro. Sou no entanto levado a acreditar que há um sentimento de vingança, que não partilho, em certos jogadores que os faz correr riscos inúteis, só para atrasar o nosso jogo, derivando em seguida com altivez, pompa e ar sobranceiro, numa tentativa velada de nos fazer perder a paciência e consequentemente a partida.

E depois há os outros, que ficam plantados junto à passadeira e que, depois de me verem parar, me acenam pendularmente com a cabeça e com um sorriso amarelo, que não partilho pela sensação de anedota já batida. Já pensei em sair e pegar-lhes num bracito e mostrar-lhes que somos todos cidadãos do Mundo e como tal as regras são para cumprir por todos sem excepção, e levá-los amigavelmente, ou não, para o outro lado da via. Mas não costumo andar com tempo para tais justezas.

Esta falta de respeito, que a ninguém aproveita, leva-me a pensar que existe uma efectiva e generalizada falta de formação e compreensão pelas regras de jogo. Todos os automobilistas são peões e a maioria dos peões serão automobilistas também, tudo depende de que peça estamos a movimentar em cada fase do jogo, daí que não compreenda tais despropósitos.


E fico a pensar se o meu desporto não deveria ser antes o golfe ou o basebol.


© CybeRider - 2009

sábado, 18 de abril de 2009

Diálogos

De que falam duas pessoas que se encontram?

O que define afinal aquilo com que nos atrevemos a quebrar o silêncio?

Temos à partida uma tela imensa, para descrever todo o Bem e todo o Mal, toda a Alegria e toda a Tristeza, o Sol e a Chuva, os devaneios dos ventos, as estrelas na noite, o sangue da Guerra ou a tranquilidade da Paz, toda a Riqueza e toda a Pobreza, a Religião ou a Descrença, a grandeza do Mar e da Terra por contraposição ao Céu infinito, e simples banalidades de uns e de outros e nossas também.

Qual o motivo então de abrirmos a boca e começarmos a cercear essa imensidão, que só o silêncio consegue conter?

Porque não conseguimos simplesmente partilhar um silêncio? Abordando assim, em conjunto, todos os temas do Universo?

Porque teimamos em afirmar as nossas diferenças na fraca expectativa de ouvirmos consensos ou discórdias? Sempre para constatar que não percorremos os mesmos caminhos, não tivemos as mesmas vivências, afirmando principalmente as nossas diferenças?

E fazemo-lo muitas vezes com a clara convicção de que o que quer que opinemos poderá alterar o rumo do Mundo.

O prazer de partilhar ideias com que acabamos também por aprender, justificará todas as vezes em que reduzimos o diálogo a uma simples pretensão de deixar a marca da nossa individualidade?

Quantas vezes o silêncio não substituiria com vantagem aquelas ocasiões em que nos exprimimos por mero protocolo, simples cumprimento de formalismos com os quais nem concordamos, em que acabamos por deixar uma imagem errada da nossa verdadeira identidade, exactamente porque não permitimos que nos avaliem pela imensidão do silêncio virtuoso que poderíamos partilhar?

E tantas outras vezes em que dissemos afinal o que não queríamos... Ou partilhámos mentiras, pois que toda a verdade está afinal contida no Silêncio.

O que teremos de tão importante para dizer, a alguém que encontramos no cenário de um pôr-do-sol resplendoroso, para interromper um pensamento?

O que teremos de tão importante a partilhar, que não se saiba já contido no conhecimento que temos de quem nos está próximo, que permita interrompermos aos gritos o quebrar das ondas ao fundo da falésia?

O que nos faz erguer a voz contra o murmúrio do vento?

Nada do que dissermos poderá conter tudo o que o Silêncio transporta.


O que será mais importante que a partilha da imensidão dos nossos silêncios?




© CybeRider - 2009

quarta-feira, 15 de abril de 2009

O especialista

Desde que nascemos trazemos uma capacidade deveras invulgar.

Começamos imediatamente a fazer escolhas. Desde o sugar o mamilo preferido em detrimento do outro, até chuchar um dedo da mão ou um do pé.

Não sei até que ponto o bem e o mal serão escolhas ou formações congénitas que aplicamos num caso por conveniência, no outro por sujeição; mas sei que as decisões que temos de tomar ao longo da vida nos irão tornar em autênticos especialistas.

Desta forma, custa-me aceitar que alguém afirme que tomou esta ou aquela decisão incorrecta. E isto só pode ser um defeito, que também os temos! Já me aconteceu, pensar que podia ter optado de outra forma, é nesses momentos que apelo à razão e me condeno.

O que torna as decisões acertadas, ou não, são fundamentalmente factores externos, a constatação do sucesso ou do fracasso, é apenas a verificação das consequências, que também não dependem de nós.

No que varia pelas nossas premissas tudo o que decidimos é de facto exemplarmente bem decidido. Sempre analisado pelo nosso sentido de integridade física ou moral, ou pelo nosso instinto de sobrevivência mais ou menos exacerbado, ou pela aprendizagem de regras e comportamentos que acabam por nos apurar os gostos e definir desejos e ambições, ou rejeições e repulsas.

Tudo o mais são factores que não temos capacidade para controlar, ou porque não lhes conhecemos as origens, ou porque não os estudámos o suficiente, ou porque alguém decide trocar-nos as voltas, ou porque a natureza decide que aquilo de facto não será assim.

Como não podemos conhecer todos os factores, decidimos com base na especialização que fomos apurando ao longo do tempo, e consequentemente sempre da melhor forma que nos é possível.

Claramente, nem todos temos ao dispor os mesmos caminhos, opções, e consequentes decisões. As nossas vidas são, por isso, muito diferenciadas.

Acredito que nada na nossa vida poderia ter sido diferente do que de facto é, no que deriva das nossas decisões; a menos que não fossemos humanos, exímios em escolhas, e tivéssemos optado algures no nosso percurso por algo que tivéssemos acreditado ser menos interessante ou conveniente, quer fosse em nosso próprio benefício, ou para beneficiar a outrem para o regozijo do nosso ego, ou por um grau de altruísmo superior ao nosso sentido da vida.


Estive indeciso em colocar aqui este texto. Agora sei que foi a escolha certa.

Pois, se ele aqui está...



© CybeRider - 2009

domingo, 12 de abril de 2009

O formulário

Sou do tempo em que não haviam estas máquinas preciosas para nos arrumar as ideias em formulários bonitos e nos darem os resultados estatísticos num carregar de botão.

Num brainstorming numa empresa em que trabalhei incumbiram-nos de criar um formulário (mais um) para descrever uma multiplicidade de situações que poderiam acontecer face a determinado acontecimento, que não passo a descrever por ser de uma irrelevância absoluta.

Pensámos. Cada um a seu modo produziu o que achou ser mais adequado.

Farto de tanto formulário e talvez por, no meu caso particular, já me encontrar sobrecarregado de papelada, resolvi apresentar o meu modelo inovador, que acabei por ver eleito no final da discussão. (Não, não tive aumento de ordenado, pelo menos por isso não.)

Tratava-se de um modelo que permitia de facto explanar minuciosamente todas as características derivadas das tais ocorrências, com precisão, objectividade e que permitia a sua própria evolução com o desenrolar das conclusões e o avanço do tempo.

Este rasgo de genialidade, existia já implementado não só na nossa empresa mas em muitas outras, e mesmo em casas particulares e locais públicos. É de facto uma ferramenta poderosa que está ao alcance de qualquer um e que poderia revolucionar todo o sistema burocrático nacional.

Perto do meu formulário qualquer forma de Simplex ou seja lá o que se queira simplificar, no que quer que seja, não passa de fugaz tentativa de aproximação à solução, logo predestinada ao fracasso.

E como sou de facto um benemérito, passo a esclarecer em que consiste efectivamente o meu formulário:

O formulário que tanto enalteço e que me servirá sempre de referência para a organização das minhas descrições e das minhas ideias é de facto... Uma folha em branco.


E agora que preenchi esta reconheço que ficou muito comprometida.



© CybeRider - 2009

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Guerra Fria (2 de 2)

Olha-me o tipo!

Que estamos em crise, e baixa os preços... Até parece que não gosta de dinheiro! Depois que me venha cá com a música de que isto está mau, que é preciso fazer umas horas... Isto está bom é para ele! A porcaria que me paga... Nem sei porque é que continuo a aturar isto.

Mas lá que anda com mau ar... E no outro dia? Acho que ficou cá toda a noite, agarrado aos papéis. Fachada! E no fim do mês que me pagou com um cheque pessoal?... É só teatro!

Temos clientes. E o gajo ainda se queixa da crise. Não quer meter mais ninguém e eu que me lixe a dar ao cabedal! Se bem que este mês já chegou cá uma data de vezes antes de nós. É para vigiar... (Deixa-me abrir-lhe a porta!)

Deve estar a arranjar desculpas para correr com a gente. Estes? Quem não os conheça que os compre! (Senhor A. vai um cafézinho?...) Aproveita a conversa da crise e ainda lixa a vida a algum. Últimamente é todos os dias de trombas. Para a malta pensar que lhe corre mal a vida. É controle para a gasolina, é controle para o papel, é controle para os telefones. Já não aturo muito mais esta paranóia!

Mais dia menos dia, vai daqui vende as máquinas e deixa-nos com o menino nos braços.

Não! A mim não me engana! Só por cima do meu cadáver!



© CybeRider - 2009

Guerra Fria (1 de 2)

Não vos cheira?

Este clima de paz podre?

Saio de casa e os vizinhos desfazem-se em amabilidades. As pessoas mais afáveis na rua. Menos buzinadelas nas avenidas. Os funcionários mais concentrados. São salamaleques, falsas simpatias... Até arrepia...

Mas eu sei o que se passa. Sei, sei! Leio-o nos olhares e nos gestos.

Passo por eles... Só sorrisos, abrem-me as portas... Nunca lhes tinha visto os dentes, dantes... Agora, todos "bons dias"... "Boas tardes"... Os vizinhos?... Tratam-me bem para que, se isto der para o torto, tenha dó e não lhes vá bater à porta, têm esperança que me envergonhe.

E no escritório?

Sabem que me têm na mão. Leio-lhes o pensamento: "Esmiframos-te até ao último cêntimo!"

Passo por eles... Olho-os de soslaio, e penso: "Hipócritas! Enquanto precisei de vocês, era faltar ao trabalho, chegar a qualquer hora, nem ai nem ui..." Agora... Mas nem vale a pena dizer nada.

Que isso de aparecer essa malta da comunicação social a dizer que as empresas isto e aquilo... E as indemnizações? Se fecho a porta fico sem trabalho, sem dinheiro, nem direito a fundo de desemprego... Comemos do quê?

E estes? Vão para o fundo de desemprego, já aqui não lhes podia pagar muito, ainda lhes faço companhia às esmolas...

Eles sabem disso, por isso agora é tudo certinho, tudo "Senhor A., assim..."; "Senhor A., assado...".

Frito! É o que estou. Se ao menos um gritasse comigo! Um só! Mas não...

Hão-de ficar comigo até isto ir ao fundo, vão fazendo mais um buraco. E já sei que no fim, o último a largar o leme, sou eu...



© CybeRider - 2009

terça-feira, 7 de abril de 2009

Memória de elefante

E porque a memória tem destas coisas...

Vem-me à memória uma a que gostaria de prestar homenagem.

Conhecemo-nos há muitos anos. Ele com cerca de quarenta eu com cinco ou seis. Pegou-me na pequena moeda de cinquenta centavos, daquelas brancas da República, que lhe estendi a custo, sustido pelos braços fortes do meu pai, e depositou-a numa caixinha, depois voltou-se e tocou o instrumento preso à parede.

O grande elefante indiano era uma das atracções do Jardim Zoológico de Lisboa.

Voltei lá por várias vezes. Voltei a vê-lo. Dessas vezes diria que os pequenos olhos, proporcionalmente ao corpanzil descomunal, se não me reconheceram, pelo menos souberam destrinçar-me dos que, por estranha humanidade, lhe depositavam cigarros acesos na tromba hábil. À confiança lá nos apontava a pedir que o deixássemos ganhar outro amendoim.

Entre nós um fosso intransponível, e um pequeno terreiro em que aquele imigrante à força se movia lentamente observando a multidão atónita.

Escapara da dura vida de empilhar troncos numa terra que o consideraria sagrado, para animar ali os visitantes para quem aquele era um ponto alto do dia, a troco de alguns amendoins que lhe compensavam o feito repetido diariamente, uma e outra vez.

Regressei lá com o meu filho, como o meu pai fizera comigo. O gigante tinha partido, a idade e talvez a monotonia do horizonte tinham-no levado. No seu lugar um jovem aprendiz, um elefante africano, tentava aproximar-se a custo da grandeza do antecessor.

Fiquei triste.

Mas fico também inquieto. É que apesar de ter visto tantas vezes o elefante tocar o sino, e depois de tantas pesquisas que fiz sobre o assunto afirmarem que de um sino se tratava, a minha memória teima em afirmar-me que este elefante indiano, que no seu auge só aceitava moedas brancas recusando as negras que atirava por cima do dorso, aos meus olhos de infância tocava um tubo fixo à parede que emanava o som de uma corneta, e que veio mais tarde a ser substituído por um sino. E nada me demove desta convicção profunda!

É que este pequeno detalhe, com dezenas de anos, pode ser a simples prova de que a minha memória não é, de facto, de elefante.




© CybeRider - 2009

domingo, 5 de abril de 2009

Maria tinha um cordeirinho!

Não sei qual foi a primeira gravação a atingir o sucesso da platina.

Mas lembro-me de ter aprendido, há muito tempo, algo sobre a primeira gravação. Foi feita num cilindro de estanho, e reproduzida num aparelho rudimentar, o fonógrafo, por um senhor que o inventou, chamado Thomas Alva Edison, e consistia numa frase: "Maria tinha um cordeirinho".

Conheci a Maria, não garanto que fosse a mesma, até porque não me mostrou cordeiro nenhum. Talvez por ter sido imolado para alguma celebração pascal, ou talvez por se ter tresmalhado com medo de o vir a ser. Nunca falámos de facto sobre isso, e já passaram tantos anos que ela se calhar nem se lembra.

Mas consigo imaginar com facilidade a surpresa que terá sido para o Mundo saber daquela notícia, dada por um senhor empreendedor que resolveu divulgar a todos aquele facto real.

Com alguns anos de experiência na observação da forma como as notícias se propagam, não me é de todo difícil imaginar que aquela frase, dita de boca em boca, terá levado a nossa Maria a ser considerada titular da maior ovinicultura alguma vez existente, e as consequentes dificuldades que terá tido para escapar à renhida perseguição dos agiotas que terão visto nela uma verdadeira mina de ouro, apenas comparável às do inóspito Klondike de há mais de um século.

Não sabemos se o cordeirinho era bem tratado, se era apenas mais uma peça de um rebanho. Mas sabemos que houve um cordeirinho e que pertencia à Maria. E sabemos também que aquele cilindro gravado, do qual talvez não se tenham feito muitas cópias, com a voz de um inventor que teria os dons artísticos de um Zé Cabra, foi o precursor de todas as gravações que há no Mundo.

Isso é, no mínimo, notável.

Pelo meu lado, tive alguns periquitos, dois cães, um ouriço, algumas rãs, um cágado, peixes dourados e tropicais, um papagaio cinzento, um canário amestrado, um casal de bicos de lacre, vários hamsters, um porco da índia, e outros que agora não me ocorrem. Gostei muito deles, e estou certo que se o Edison fosse vivo, teria gravado um cilindro, que teria que ser maior, para perpetuar a minha memória.


© CybeRider - 2009

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O Pacto

Sei que o fiz.

Quando tenho tudo o que quero, mas nem tudo o que preciso. E quando tudo o que preciso é muito menos do que o que tenho. E quando não consigo deveras querer aquilo que precisava, porque este é afinal o limite.

Sei que o fiz. Quando todos os caminhos apontam apenas numa direcção e passo pelas encruzilhadas sem as conseguir ver. Quando todos vibram de felicidade partilhada e não os posso seguir porque tenho de ficar aqui à espera de mais um dia. Quando o Sol me entra pela janela enquanto os outros passam à chuva. E também nos dias em que a chuva cai só para mim.

Sei que o fiz. Quando os que amo ficam infelizes pela minha falta de escolhas. Quando me dão bons conselhos que não me atrevo a seguir. Quando penso nas opções que tomei e compreendo que foram contra tudo e contra todos. Quando as linhas do comboio são um caminho para o infinito a que teimo em resistir. Quando perco o medo de andar de avião.

Sinto-o também quando abraço quem amo, e quando lhes vejo as lágrimas da infelicidade que espalho sem querer, sem escolha. Em cada dia que passa sem projectos. Quando os vejo para lá das chamas da desilusão a caminhar para longe. Quando muitos deles já não são mais que um punhado de fotos amareladas ou algumas memórias que se dissolvem no tempo.

Sei que o fiz, quando me confronto com o dedo que me acusa da pálida sombra que sou daquilo que planeámos para nós.

Não houve cortes, nem velas, nem sangue. Não vi o humanóide com cabeça de bode, mas sei que o fiz. Manchou-me a alma como uma bênção do céu. Imperceptível. E perante todas as escolhas da vida, aceitei poder tocar a felicidade, sem perceber que por troca tudo me ficaria sempre à simples distância de um sopro.

E ainda assim valeu a pena, por ter podido amar e ter podido estar tão perto da plenitude.

E sei que é para sempre, por cada dia que não se repete.


Mas sei sobretudo, que se o quebrar perco tudo o que conquistei.





© CybeRider - 2009