O castanho da pelagem contrastava com o negro do alcatrão.
O animal cigano jazia imóvel. O dono, a polícia, os passantes, olhavam incrédulos.
Não é como no National Geographic, nem quando os leões os comem. Aqui toca-nos a alma. Estamos mais habituados a ver a divindade ressuscitadora das mãos humanas que a morte de um animal de tracção assim na rua.
Ficou deslocado. Como num engano. Era um adereço de outra cena, talvez de uma planície alentejana, nunca da cidade. A realidade a mostrar-nos o surreal de Dali. O píncaro da esquizofrenia.
Já fiquei com um carro avariado na estrada, nunca com um burro. Há de facto muitas coisas para as quais não estaríamos preparados se se nos acabasse a tecnologia. Bastantes tão fundamentais que a nossa própria sobrevivência estaria em causa.
Coisas banais para os nossos avós são-nos herméticas. Coisas que a humanidade tinha como seguras e fundamentais há milhares de anos hoje desapareceram nas brumas do tempo.
O meu bisavô talvez tivesse sabido lidar com o animal avariado. Naquele tempo os transeuntes não olhariam com tal estranheza o acontecimento; lamentariam a sorte do homem, não a do burro. A estrada não seria negra de alcatrão. A sombra não seria de um prédio de vários pisos, talvez de uma alfarrobeira. A polícia não teria comparecido, até por não ter tido o telefone a tocar; mas se passasse seria a cavalo ou de bicicleta.
Hoje, ali, todos pareciam perdidos.
Quanto ao dono do burro, ainda me questiono se teria direito a veículo de substituição.
© CybeRider - 2009
Sem comentários:
Enviar um comentário