quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Este carro é teu?

Causava-me calafrios.

Nunca ouvi esta pergunta num contexto positivo em relação ao meu carro.

Ora era seguida de sonoras gargalhadas que me faziam sentir qualquer coisa a encolher, ou de um silêncio sepulcral que me fazia desejar ter à mão os sais Eno para alegrar o estômago.

É que parece saída do manual "Como catalogar e etiquetar para sempre um homem em 10 segundos". Não importa o que faça ou diga.

Aquilo parecia apontar a dedo a essência do meu ser.

Por outro lado, nas vezes que as minhas mãos acariciaram a pele do volante de uma verdadeira "macchina" ou fui profusamente atravessado por olhares de soslaio pelo vidro, com vontade de me arrancarem uma orelha à dentada, ou de terror como se eu fosse o campeão olímpico de carjacking.

Há coisas que não combinam. A minha relação com automóveis enquanto objectos de culto é um bom exemplo.

O meu primeiro carro foi um Renault 4L. Nascemos cerca da mesma altura. Com os nossos 19 anos, e amigos como éramos, nunca me fez confidências. Bem vistas as coisas talvez tenha sido melhor assim, as melhores relações por vezes são as que não têm passado. Como nunca o via sair sozinho tinha nele uma confiança quase cega, que ele nunca traiu.

Enquanto eu tirava um prazer absoluto da condução daquele cangalho, todos os que tinham de me acompanhar sentiam que estavam a entrar na barca de Caronte.

Depois vieram outros. Mas não há amor como o primeiro.

Há qualquer coisa de mágico na aquisição de um carro novo que dá ao dono o ar prazenteiro de uma promoção. No meu caso, esse almejo, era decerto a busca por um desfecho agradável para a minha resposta à temida questão: "este carro é teu?"

Nesta busca por um final feliz ser-me-ia mais fácil que a vida fosse como nos anúncios ou andássemos todos de bicicleta.

Hoje a minha auto-estima alimenta-se ou evacua-se mais das minhas acções que das opiniões alheias. Sem necessidade de impressionar senão o meu ego, estou mais velho e tenho a pele mais dura. O carro é uma ferramenta ou mero meio de transporte. Perdi-lhe a noção de culto.

E a outra pergunta que para tantos tem resposta fácil e idealista: "Que carro gostavas de ter?" traz-me sempre à ideia o Renault velhinho, de quilometragem inconfessa, que me libertou nas primeiras estradas da vida.


© CybeRider - 2009

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