Fica de noite mais cedo.
E cada vez mais cedo entranho a noite que cai. Olho o Sol, rei mudo que nos ilumina, e vejo-o sempre a pôr-se na escuridão que me colhe. Ainda quando nasce é a escuridão que lhe sinto, a cada dia que passa inexorável.
Invejo-lhe o percurso ilusório, silencioso e lânguido, como se o tempo não se lhe acabasse, como se a rua que palmilha existisse para sempre, a cada segundo a inércia que o impele à escuridão que me atormenta.
Vem-me o frio mais cedo, a solidão de cada passo sempre no mesmo sentido, o impulso cego para o beco escuro do vazio. O relógio não define o que o coração sente, dali não emana luz que acalente a minha ânsia. É a noite sombria que me espera para me entorpecer no sono a que sucumbo por fim, despojado de força anímica por outra vez. Num ininterrupto activar e desactivar a que me sujeito inutilmente, nesta noite entrecortada que chega sempre mais cedo.
Cubro-me com a manta, transpiro o desperdício a que me sabem essas horas. Esqueço-me por fim de mim. Um hiato basta para que desperte atento de novo ao percurso igual da luz que tudo aclara, e observo atentamente até à exaustão cada momento do seu percurso gigantesco que me volta a atrofiar. Manifestação rotineira a que não escapo, sinto-lhe de novo o bafo frio, ei-la que se renova sem demora, com pontualidade confrangedora. Mais um dia que se esfuma e me esborracha como um verme nesta noite temporã.
Na ausência do pequeno Sol que nos aquece, e que nos oculta a dimensão real do cadafalso, ela surge sempre negra, a noite, que é tudo o que há.
E é mais cedo que me chega, sempre. Não importa que voltas dê aos ponteiros enganadores do meu relógio. Como a sinto, silenciosa e fria...
© CybeRider - 2009
12 comentários:
Olá, Cybe
Dizem que a noite não é boa conselheira, que "estou triste como a noite", que de noite todos os gatos são pardos, etc...
A noite não será muito amada, digo eu, excepto para os apreciadores da vida all night long, e para os dorminhocos. Verdade também que o dia, a luz, é muito mais apreciado. Ninguém tem um interruptor para ligar a escuridão. Já para a luz, todos sabemos onde eles estão e ligamo-los mal chegamos a casa.
Eu gosto da noite. É a única altura do dia em que consigo estar comigo. Às vezes acovarda-me outras torna-me corajosa, mas a culpa não é dela.
Bem sei (ou pelo menos acho) que não te referes à noite, noite, aquela que vem depois do dia, dia. Mas certo é que a noite é inevitável, como tantas outras coisas. Certo é também que a noite é uma continuação do dia, e será tanto mais sombria quanto mais sombrio for o dia, mesmo que o sol tenha sido resplandecente.
O dia existirá para fazermos do sol o que quisermos. Podemos ignorá-lo, esconder-nos dele, tornando os dias sempre iguais. Ou podemos aproveitá-lo, mesmo quando está fraco, e tornar os dias mais claros. Há até quem use painéis solares, para prolongar esse sol.
Beijinhos, Cybe
Olá Nirvana,
Mal afamada será, mas há também quem não evite dormir sobre um assunto controverso para encontrar solução. Tenho algum sangue de morcego, decerto, porque valorizo muito a noite, a solidão, a escuridão atrai-me inegavelmente também. E o sono tortura-me, pela sua inutilidade.
O dia encandeia-me, ilude-me. Força-me principalmente a convívios que não escolho. Mas à noite posso finalmente mandar tudo à fava e voltar a reconhecer-me, nem sempre foi assim. Já gostei mais do dia, quando a sua luminosidade não me confrontava com tantos óbices, agora anseio pela noite que tudo apazigua. Dias haverão em que me arrependa. Valha-me que até de noite a esperança brilha, e o génio respira, ligado à máquina ultimamente, e como se comprova.
Beijinhos, Nirvana
Nunca tinha pensado nisso assim, o meu sangue até parecia normalzinho, mas deve ser 80% morcego :)
Fico feliz por saber que não sou só eu que acha que dormir não é das melhores coisas que existem :)
Beijinhos
Na "Primavera" da nossa vida, é de noite tempo de mais, só queremos o dia - "maldita noite"!
Uns anos depois é o dia que se alonga; escurece e ele teima em não ir embora... Doze horas para cada um, alguém acredita? - Não as posso viver assim. Parece que quando nasci, já havia uma promessa que ousaram assumir que eu cumpriria!? - Prometo que ele será do dia. - Mas amo outra! E estou com "ela" todas as "noites", às vezes só algum tempo depois de "ela" chegar, nem sempre me chega quando escurece...
Se eu juntar os "primeiros 2" dos teus 2 últimos títulos, obtenho "Um dia, De noite", que tanto procuro, que tanto vivo!
Coma induzido, Cybe? ;)))
Abraço.
Foi a pensar nisso que nasceram os solários.
Nisso e em gente que gosta de imitar torresmos...
É pá, não te sabia astrónomo. Então o terramoto, foi pior que o hiato, não?
Abraço moço.
Nirvana, isso é porque ainda não experimentaste dormir de dia, pendurada do tecto pelos pés...
:)))
Beijinhos!
Olá Gemini,
O tempo passa e a magia vai desaparecendo, vai havendo menos dia, e sucumbimos à noite que nos atrofia. A noite é "fora de horas", é tempo livre, por nossa conta, que biológicamente estamos talhados para o dia. Mas com as responsabilides acaba por nos faltar noite para cumprir o nosso dia. Entregues de dia ao domínio de obrigações, o desalento empurra-nos para uma noite que é nossa, mas pouco proveitosa; e o tempo faz o resto, entorpece-nos a vontade e atira-nos para o leito, ou para o banco de jardim.
Induzir o coma será uma questão de coragem ou de alternativa à eutanásia previsível pela incapacidade de interpretação da realidade, que nos empurra para as novidades que já não pretendemos aprender.
Abraço, Gemini.
Os torresmos também vão estando fora de moda, Mak. Mas lá está, os solários são modernices que nos prolongam artificialmente o dia. Será porque a noite nos consome?
Terramoto? Isso foi só para alguns, Caçador. Só soube dele pelas notícias. Acho que o hiato me impediu os sentidos. É como te digo, estes hiatos são desprezíveis!
Abraço!
Olá meu bom amigo,
O sol realmente tem andado um pouco escuro! Também o não tenho visto muito claro! Ai de mim se não procurasse um pouco de luz reflectida... O arrasto pelo meio parece-me penoso.
O teu olhar mostra folhinhas de oliveira com o pé virado para baixo e de vértice rombo...
A noite, essa madrasta que com rancor amamos, tem-te deixado à espera. Chega como uma prostituta sequiosa que está plena de satisfação. Não repara quem a espera. Avança, bruta e cortante. Nos seus braços, tristes entregamos as armas... Não temos a certeza que querer reviver aquilo no dia seguinte...
Se ao menos eu tivesse razões para, vibrante, dormir mal a noite, na ânsia de objectivos vitais para o universo, como se de um qualquer super-herói se tratasse
Um abraço
A noite é tudo o que há, Mário. Procuramos o dia para nos esquecermos dela, mas ela volta e destapa-nos a coberta. O dia é o luxo a que nos entregamos na expectativa de que ela não nos descubra, mas é omnipresente. E acabamos por ser super-heróis, de uma mera história aos quadradinhos. Que ela não entre em cena e que tarde em nos ofuscar o brilho dos holofotes. Até lá brilharemos nesta ilusão de representações pouco aplaudidas, porque os espectadores são simultâneamente actores nesta peça burlesca.
Um abraço
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