sábado, 30 de abril de 2011

Dos bichos que bocejam

Tentar descrever o bocejo em palavras não é um exercício fácil.

Se tivesse de o explicar a quem não o conhecesse, que diria? É um estado de alma em que se abre a boca a uma dimensão extrema, de forma involuntária, reprimindo um Ahhhh incomensurável, à medida que o ar se solta fugazmente do peito de uma forma anestesiante e pacificadora. Não ficava explicado. Há outros bichos que bocejam, a quem o Ahhhh é impossível, mas para os quais terá o mesmo efeito repositor e inebriante. O bocejo dos roedores, por exemplo, é terrífico; abrem as mandíbulas expondo os incisivos ameaçadores e inimagináveis, como se não se coibissem de mostrar ao mundo o potencial vencedor se o mundo acabasse amanhã à dentada.

Comparativamente, o bocejo dos humanos é ridiculamente embaraçoso, temos uma dentição exígua para qualquer confronto. Talvez por isso seja de bom tom tapar a boca quando nos acorre esse impulso. Que pensariam os cães e os gatos se nos vissem nesse desconchavo? Perdiam-nos logo o respeito e saberiam imediatamente quem deveriam ser os verdadeiros senhores do mundo. Resignados à sua condição, bocejam à nossa frente perante a nossa indiferença, injustiçados por uma realidade estranha que nos coloca como dominantes nas suas vidinhas aparentemente simples e pacatas.

Será uma necessidade fisiológica tão importante como qualquer outra. Quanto tempo poderemos ficar sem bocejar? Não me consta que alguém tenha bocejado com a ponta de uma navalha apontada à jugular, nem que comandante algum tenha bocejado ao mandar as tropas à carnificina. Nem quando o professor nos pergunta a questão fundamental para avaliar o nosso desempenho.

Bocejar será um privilégio que nos faz sentir reis por um segundo. Por um instante não sentimos a ameaça que pende sobre a nossa cabeça, nem o medo que nos tolhe a um canto, nem a culpa pelo que fizemos ontem, nem a inquietação pelo dia de amanhã. Naquele hiato ficamos sós e supremos. Nada nos pode atingir, sente-se uma invulnerabilidade incompreensível e inquestionável. E há um misto de resignação e de tédio, semelhante ao do conquistador que abarcou o território imenso e sinta que nada mais lhe reste a realizar.

Logo após, volta o estado de alerta; por vezes a mera acção de nos virarmos para adormecer, se pertencermos ao grupo dos mais felizes; outros terão de despertar para a luta, e continuar o combate.

Por isso, o bocejo será um acto demonstrativo de uma inteligência subconsciente, pelo que tem de aquietador e necessário à manutenção de uma sanidade mental que nos limita como seres separados do contexto, definindo por instantes a nossa absoluta individualidade.

Dito isto prometo respeitar profundamente qualquer animal que boceje, e verifico que quase todos o fazem; todos os mamíferos, carnívoros, herbívoros, omnívoros; as aves e os peixes. Falta-me descobrir como interpretar algumas semelhanças comportamentais relativamente aos répteis e aos batráquios... Terei de continuar a investigar.

Os insectos, os aracnídeos e os moluscos não creio que bocejem. Não me merecem por isso, e até prova em contrário, a mesma consideração. Terei de encontrar outras razões para respeitá-los que não esta, tão fundamental.  


© CybeRider - 2011

12 comentários:

mfc disse...

Gostei de ter percebido essa supremacia intelectual do bocejo!
Uma argumentação brilhante.

shark disse...

Uma boa razão para respeitar os moluscos é a forma como acompanham bem as imperiais.
:)

the dear Zé disse...

os peixes bocejam? não acredito, nesse caso também se espreguiçavam - que como sabes é um complemento sine qua non (já viste como fica bem aqui o latim?) do bocejo, ainda que não sincronizado - ná.
quanto ao resto, só posso elogiar este elogio ao bocejo, e mais, li-o de uma assentada, sem o mais leve assomo do dito.

abraço moço

CybeRider disse...

Obrigado, mfc!

Partilhamos muito com muito do que nos rodeia, mais do que às vezes esperamos.

CybeRider disse...

Shark, bem me parecia que tinha de haver uma razão forte para o respeito que tenho pelos tremoços! :)))

CybeRider disse...

Zé, bem me parecia que este assunto seria controverso. Textos antigos afirmam que o bocejo é uma característica dos vertebrados. No entanto a tua teoria parece-me bastante forte para refutar os argumentos dos textos científicos, que não abrangi na plenitude. :)

Por exemplo:
http://baillement.com/recherche/insidestory.html

A minha teimosia relativa aos répteis e batráquios deve-se ao facto dos que tive me terem deixado dúvidas. Já os peixes de aquário distendiam as barbatanas por vezes sem razão aparente. :)

Abraço

Nilredloh disse...

Caro CybeRider,

adorei este texto! Será o bocejo o orgasmo da soneira? hehe:) Acerca de caracóis, uma coisa que nunca perceberei é esta (vou buscar o livro "Memória" de Kandel): as moscas da fruta (drosophila) têm 4 pares de cromossomas mas os caracóis (Aplysia) têm 17!! Para quê tantos! Nós só temos 23. E como disse o Shark, para além de serem comidos enquanto se bebe cerveja (que não é o meu caso, não sou um comedor), sempre pensei que "não servissem" para nada (para além de serem ultrapassados)!

desculpa um comentário tão e... tão erudito lol (foi book moves!) a ler com o livro à frente, mas aceita um abraço com toda a amizade do,

Jorge

Nilredloh disse...

"desculpa um comentário tão longo", faltou o longo!

CybeRider disse...

Olá Jorge,

Belo comentário! Andaste a estudar a lição! Essa coisa dos cromossomas é complexa, por exemplo, o cão e a galinha têm 39 pares. Apriorísticamente diria que a estrutura de cromossomas define a flexibilidade a que uma espécie se pode sujeitar antes de se tornar em algo diferente. Não sei se haverão muitas espécies mais "moldáveis" num curto espaço de tempo do que o que acontece com o cão, mas creio que uma pequena alteração do DNA de uma mosca da fruta a transformaria imediatamente em algo diverso, sem possibilidade de cruzamento com a base genética anterior. Há um feto, a planta, vegetal, que tem 92 pares... Olha, nem sei o que te diga!

Um abraço!

Nilredloh disse...

as plantas terem tantos pares é de dar em doido!:) Mas não sabia que havia seres vivos com mais do que 23 pares... santa ignorância hehe. Um dia vi num livro de anatomia de animais o cérebro de um golfinho... muitíssimo mais complexo do que o de um ser humano (já nem digo maior, muito maior também, claro). Há coisas...

Um grande abraço, António, :)

com toda a amizade do

Jorge

Alguém da Cidade disse...

muito mais esclarecida agora na arte do bocejar. quanto à dúvida ou necessidade de encontrar merecida razão para o respeito pelos insectos, os aracnídeos e os moluscos...acho que o "viver" será suficiente.

(bolas..e esta coisa do bocejo é de facto contagiante...mesmo que seja a ler sobre o assunto)!

L.

CybeRider disse...

L., creio que o meu próximo estudo no campo da biologia será sobre a forma de coçar as costas das diferentes espécies do reino animal. Não prometo que seja mais apelativo, mas antevejo que venha a ter sucesso na substituição com vantagem significativa sobre o Xanax, Prozac, Vicodin e afins, pelos efeitos calmantes e analgésicos. :)