terça-feira, 23 de agosto de 2011

Bicho raro

Há duas espécies de Homens: os que lêem e os que criam.


Houve um livro que quis ler e não li. Odiei-o, não o compreendi. Quase obliterei o autor nesse dia, mas degredei-o por anos. Ele um génio, eu imbecil. Depois percebi, faltava-me tempo e caminho. Ofereci esse livro, que ainda temo, por altura da minha incompetência. Nunca voltei a tentá-lo. Optei por outros e hoje, esse autor que desdenhei, quero que viva para sempre, por ser um dos meus favoritos.

Porque há duas espécies de Homens: os que se arrependem e os que nunca reconsideram.

Durante anos temi pegar numa caneta. Quanto mais lia mais evitava. Deixei de ler. Restaram as memórias obscuras da minha realidade singela, exígua, perante a imensidão de clarividência alheia que me assombrava de fora. Assisti impávido à vida dos outros, como livros abertos que me desinteressavam, as suas realidades exóticas, os seus feitos excêntricos, apontamentos publicitários de uma existência que desconheço. Incompreendido, por não saber copiar, pesaram-me os olhares que sustentei de reprovação e calúnia. O medo de reproduzir assolava-me com frequência, a insónia dominava-me por vezes, pelo temor de não conseguir recordar o que era incapaz de redigir.

Porque há duas espécies de Homens: os valentes e os cobardes.

Compreendi que, para ter memórias, não precisava de ler; precisava de ter vivido. Deixei-me então levar sem resistir. As mentiras em que me refugiei faziam acreditar que vivia. A honestidade tem implícitos a resistência, o exemplo, a discórdia, a acção. Todos incapacidades que assumi, inocentemente, com frequência. Infiel a mim próprio, percorri caminhos paralelos ao traçado que deveria ser o meu, alguns sem retorno.

Porque há duas espécies de Homens: os leais e os que mentem.

Fui comandante inepto, subalterno de incompetentes e servidor de incapazes; nem sempre por esta ordem. Corrompi-me a construir destinos que, por simpatia apenas, construíam o meu. Perdi batalhas e guerras, das que venci não me restou particular orgulho, por não serem maioritariamente minhas; das outras não há registos que me socorram.

Porque há duas espécies de Homens: os que montam e os que se deixam montar.

A cedência a paixões, fraqueza congénita, condenou-me por fim a aceitar o meu destino. A medo encetei um livro e li-o em desespero. A dificuldade de lidar com os conceitos, de voltar a apreender o alheio, o medo do regresso à intrusão na essência de alguém, fui-os dizimando em parágrafos, páginas, capítulos. Entreguei-me por fim, como quem reconhece uma amante e a beija com fervor, sequioso, após anos de contenção. Voltei a temer perder a escrita outra vez.

Porque há duas espécies de Homens: os que amam e os que só conhecem o desdém.

Descuro com frequência os interesses que não me interessam, sinto-me um pária também, por vezes; mas os que me interessam persigo-os com fervor, sem esperança na conquista de adeptos para a minha causa. Uma tenacidade invisível mas indelével impele-me como um instinto, por vezes para o abismo, destino que pelo meu egoísmo atinjo sozinho.

Porque há duas espécies de Homens: os que vivem e os que vão morrendo.

Gosto de caminhar na areia húmida, onde as ondas se abatem; ver essa força imensa recear os meus passos e recuar perante a minha insignificância. Uns dias sou da terra, noutros sou das águas, nestes chego a acreditar que é a terra que me teme e que me deixará cavalgá-la eternamente; é nos outros que reconheço como estou enganado.

Porque há duas espécies de Homens: os que escutam o mar num búzio e os que recolhem búzios no mar.




Por haver apenas duas espécies de Homens, e não me enquadrar em nenhuma, suspeito que poderei ser afinal o único cromo desta caderneta; um exemplar de uma terceira espécie, em vias de extinção mas sem  protector que me valha.


© CybeRider - 2011

10 comentários:

mfc disse...

... porque há duas espécies de homens: os que sabem escrever(inteligentemente) e os que não sabem!
E tu pertences aos primeiros!
Obrigado, Amigo.

Nilredloh disse...

Que texto mais fantástico, António!!

CybeRider disse...

Olá, mfc!

Há os que têm amigos que os puxam para cima e aqueles que só têm quem os empurre para o fundo. Não sei se mereço a sorte de estar também entre estes primeiros como demonstram as tuas palavras.

Obrigado, meu amigo.

CybeRider disse...

Olá, Jorge!

Fantástico é o mundo! :)

Abraço!

the dear Zé disse...

(e lá venho eu atrasado)

grande texto meu - e não, não me refiro ao tamanho - brilhante e inteligente, pessoalíssimo e universal para a espécie de homens que nele se reconhecem como num espelho embaciado ou, os meu preferidos, com a prata a estalar e a ganhar matizes que só se encontram nos espelhos com a prata a estalar, e, continuando, admiro aqui este invejável feito de contabilidade, o mínimo denominador comum de todos nós...

(só um pequeno reparo e perdoa-me o atrevimento: eu terminava a coisa no "búzios no mar", fica perfeito assim, o último paragrafo nem faz falta. pronto já disse)

abraço moço (que este verão foi curto)

CybeRider disse...

Olá, Zé!

Vens sempre a horas, que aqui o comboio espera sempre pelos passageiros, e até acontece que eles acabam por seguir a pé que chegam mais depressa.

(Sem o parágrafo, melhorava a estética, mas incluía-me -a todos- no estereotipo, na etiqueta, no irreal da cerca que nos confina. Há duas espécies de Homens, os dos livros que se classificam e aqueles que são o tudo-em-um. Quando conseguir compreender -um bocadinho- a humanidade, venho cá e apago-o a nosso gosto.)

Abraço rapaz! (se foi!...)

the dear Zé disse...

atão??!!

CybeRider disse...

Olha, Zé, quase nada!

Abraço

Alguém da Cidade disse...

... porque há duas espécies de homens: os que cativam (por todas e mais algumas razões que tão bem referiste) e os que aborrecem (por todas as outras). E tu sabes bem a qual pertences!

L.

CybeRider disse...

Sei, L.? Nuns dias bestial e noutros besta, como a generalidade da espécie. Por vezes falam-me das expectativas de futuro, e a minha resposta é a de que o que está feito terá de valer por si. O peso de criar falsas expectativas é-me verdadeiramente insustentável. Por isso, o presente do indicativo do verbo pertencer, substitui-lo-ia pelo pretérito perfeito para alguns momentos fugazes em que me ficaria mal a falsa modéstia, que outros haverá indignos de nota.

Obrigado pelas tuas palavras gentis.