sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Da liberdade dos outros - 3

O luto faz-se de raiva, de revolta, de blasfémia, mas principalmente de libertação. Nesse caminho acaba muitas vezes por nos deixar em pontos longínquos, muito afastados do local de partida e sem retorno. Como as confissões.

Confesso! Que a liberdade dos outros me incomoda profundamente.

Poucos são os que me amam, menos seguramente que os que estão dispostos a odiar-me. Essa liberdade deles é um ultraje,  ofende, magoa, porque sei que nunca me hão-de olhar nos olhos e ainda assim me condenam. No entanto não consigo conceber que a erradiquem. Preciso dessa liberdade como se fosse a minha. A liberdade que têm a usufruir da ignomínia, da ignorância, do desprezo e da calúnia. Sem ela. como poderia eu aprender esses sublimes pecados?... Como poderia torná-los meus para meu próprio delírio?

Somos seguramente dos mais interessantes humanos. Os europeus são únicos em muitas formas de sentir, e nós, que ainda agora aprendemos a dar os primeiros passos de uma realidade que outros já vivem há muito, e somos já nessa mesma aprendizagem rasteirados todos os dias, somos ainda mais peculiares.

Confesso! Incomoda-me a vossa liberdade de amar sem me incluir, de conviver sem me convidar; aquela que vos permite rir e chorar por coisas que já não compreendo e por outras que nunca percebi.

Confesso! Incomoda-me a liberdade de adorarem um deus numa crença pura e devota, porque a invejo de não ser minha. Tanto quanto me incomoda a vossa liberdade de não acreditar em nada nem em ninguém; porque essa forma de mortalidade em vida me deveria ser exclusiva, por ser um veneno que mata a esperança.

Confesso! Incomoda-me a liberdade que tendes de discutir constantemente o sexo dos anjos com a mesma intensidade com que enfrentais qualquer epopeia desconhecida. Estranho que se confunda a liberdade que de facto temos com a que deveríamos ter, e que isto se torne passível de dúvida. O luto a que me refiro não é por vítimas humanas que se perderam, esse poderá ser outro; é pela tranquilidade que partiu nessas dúvidas.

Poderíamos ter seguido normalmente com as nossas habituais dores e incertezas. Ao invés deixámo-nos atingir nos nossos valores. Não eram um objectivo do agressor. Não tínhamos o direito de os colocar na sua mira! No entanto foi exactamente isso que fizemos.

Agora enveredamos por este carreiro de bárbaras questões em que leviana e hipocritamente afirmamos que o que tínhamos era demasiado, quando deveríamos há muito ter percebido que em boa verdade nunca foi suficiente.

O que morreu no atentado, muito para além das pessoas de génio invulgar, que usaram de forma serena mas temerária os dons que tinham, para deleite de alguns e maledicência de outros, mas principalmente como forma de ocupação laboral; e de que imoralidades não serei capaz para assegurar eu a minha; foi principalmente um rol de valores de que muitos nunca chegámos a usufruir e que estão em risco de se perder para sempre, por os questionarmos inconscientemente com tamanha veemência.

Até por isso, confesso! Incomoda-me essa liberdade na forma de velar os mortos, em que só depois da carne começar a arrefecer as suas ideias comecem a fazer sentido.

Eu próprio, assim, estarei sempre em atraso.


© CybeRider 2015

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