quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Pequenos detalhes

Pasmava-me a facilidade com que aquela gente me punha numa família com a mesma facilidade com que me ajudavam a sentar ao banco do balcão do café.

"Antão de quem éi o caspinhooooo?"

Outro lá me traçava o esquiço de uma àrvore genealógica de espécie que me era absolutamente desconhecida. Adivinhava-lhe o tronco grosseiro e os galhos partidos, mas teria de servir assim mesmo. Depois o desfecho:

"Éi o neto do Gatooooo!"

E também do Progressista. Do Gato ainda me lembro. E lembro-me de me ter ofendido. Gato era também um dos meus amigos da minha idade, o Tó Zé que, não sabendo enfiar um soco, nos esgatanhava as bochechas mesmo que o deixássemos no chão de lábio rebentado a chamar pela mãe. Só isso evitou-lhe monumentais cargas de pancada, as menos permentes que as outras levou-as todas, e aos pais outros tantos cuidados. Assim, como poderia eu ser neto do Gato? E lá imaginava o meu querido velhote, mais pequeno mas já com rugas, a esgatanhar as bochechas de alguém, com a mesma injustiça que o outro que nem sabia dar um soco direito, por que carga de água, à revelia das valentes tareias que em boa verdade nos conferiam o respeito da irmandade e como tal absolutamente necessárias e inquestionáveis. Tinha de ser mentira!

Cinco ou seis teria, não mais, mas da primeira vez ofendi-me. Olhei para aquelas caras de sorrisos abertos à maneira de algum cartoon do Vilhena e dediquei-me aos dentes tortos e espaçados, aos meus que ainda eram tenros tinham chamado "de mentiroso", porque a falta dos molares restantes não oprimia os incisivos que ficavam com um ligeiro espaço. E se há coisa que nunca fui... Mas mirei-os por horas, um minuto para eles, mas para mim foi o suficiente para que lhes recorde os deles, até hoje. Os espaços de uns, o amarelado dos Provisórios e Definitivos, de outros. Deixei os dentes e memorizei-lhes as panças à tractorista. Foi por vingança, bem sei, mas guardei cada pormenor no pequeno cofre onde ainda não haveria espaço para muito mais.

Levei anos a juntar os incisivos ao espelho, acabaram por nascer enormes e saídos e tive de tolerar o arame que não era da moda e que me fazia da boca uma máquina de tricotar, ou um radar do aeroporto, como tantas vezes achincalhei outros infelizes. Tudo para me tornar, um dia, num homem honesto e cumpridor, que me apagasse de vez o cognome que herdara da província, pelos amigos daquele Gato que amparou o meu pai nos seus braços rústicos. Também ambos sem dentes de mentiroso, nem dizeres que nos enganassem.

Talvez não percebessem porque não sorria e eu, comprometido pela razão justa mas infantil, não lhes saberia explicar.

Ocorre-me que não saibam quem é talvez um dos maiores caricaturistas de sempre deste rectângulo, desde o colonialista e totalitário, ao revolucionário e europeu; mas não importa, não havia lá gaiatas como as dos livros do Vilhena, era tudo gente campestre de vestes pudentas, mas por essa altura esses assuntos eram-me estranhos.

Pueril era-me também o ódio de me ver apelidado de "caspinho" por aqueles latagões brutos. Imaginava os ombros com caspa dos estivadores do Poço do Bispo, ou dos engraxadores do Cais de Alcântara, sem ver nenhum paralelismo com a minha tez imaculada de menino lavadinho e metropolitano, que me valesse ali, para os lados de Portalegre, tal epíteto. Já o meu avô me chamava assim, mas dele tolerava tudo, até que me pudesse esgatanhar as bochechas. Mais tarde percebi o paralelismo com "cachopo" acrescentado do diminutivo à minha altura.

Queriam-me bem, afinal...

Nesta minha injustiça, eu cresci e eles definharam. Dos cognomes dos avós nunca lhe saberei a razão, perderam a causa em quase cem anos. O Progressista acompanha-me num papel que entesouro, nunca o conheci em pessoa. Amarelado no preto-e-branco em sépia natural, de ar austero e severo, no seu fato de Domingo, a sobressair a corrente e o relógio respectivo, que o tempo nunca me mostrou. O farto bigode e olhar sóbrio ainda lhe conferem a altivez e o respeito que me impõe quando o imagino meu ancestral. Conta-me a minha mãe que nem sempre assim era, que quando a vida lhe começou a correr pior ele bebia... Nunca à minha saúde, penso eu.

Mas não lhe consigo imaginar tal descompostura.


© CybeRider - 2010

16 comentários:

the dear Zé disse...

Que grande lençol. Mas do mais puro linho.

Creio que, mais coisa menos coisa, todos temos histórias assim.

E o que eu não dava para ter a tua memória...

Abraço

Milu disse...

Olá CybeRider!

Estas tuas recordações de criança reportaram-me para um tempo em que também me senti como tu:indignada com os nomes que me chamavam.

Nos meus tempos de criança costumava ficar magoada sempre que visitava a aldeia, terra natal dos meus pais e também minha por acidente, visto que a minha mãe decidiu que eu iria lá nascer, porque as pessoas daquela terra assim que me viam diziam: "Olhem, vem ali a Rominha", outros diziam ainda,"Olhem, vem ali a Tróinha". E eu ouvia aquilo e pensava para mim, Rominha, Tróinha, eu? Sem saber porquê sentia-me incomodada, algo me dizia que aqueles nomes não eram coisa boa, por isso dei em detestar aquelas gentes. Talvez fosse o comportamento delas que me causava algumas reservas optando por nelas não confiar. E tinha alguma razão se não veja-se.

Naquele lugar da aldeia havia um monumento constituído por uma cruz de pedra, em redor da qual as mulheres, que a mim me pareciam velhas, mas que verdadeiramente não o eram, vestidas de negro integral da cabeça aos pés, incluindo um lenço preto que lhe resguardava a trança, se juntavam aos magotes para todas conversarem, quase sempre na vida alheia. E eu, que por ali cirandava, entretinha-me a observá-las. Assim que avistavam vindo alguém todas elas cochichavam entre si, sabe lá Deus o quê. Quando a pessoa ficava mais perto, calavam-se, para logo retomarem o cochicho ainda com mais ímpeto mal tivesse acabado de passar. Lembro-me que sentia uma curiosidade quase indomável, ficava em pulgas para tentar perceber o que teriam dito de quem havia passado. Pressentia que teria sido algo de demolidor, se avaliado pelos semblantes que ostentavam. Por vezes até me divertia com aquele jogo. Mas o caldo entornava quando quem assomava à esquina era a minha mãe, que sempre andava atarefada com as mais variadas ocupações, ou então, carregada de tralha, sacos, seiras, enfim... E quando eu percebia os cochichos inspirados pela aparição da minha mãe algo se remexia dentro de mim, porque agora me tocavam a doer. Era a minha mãe, aquela figura tão familiar, que ora me dava um tabefe, ora me acolhia no regaço com carinho. Sobre ela eu não queria ter percebido os cochichos! Só anos mais tarde vim a saber que me chamavam Rominha ou Tróinha porque estes eram os apelidos dos meus avôs, materno e paterno, respectivamente. Afinal, nada havia de mal nestes nomes que tanto me angustiaram. Mas aquelas aves raras daquelas velhas sinistras, perduram ainda na minha memória como algo de desagradável.
Um beijinho.

Nirvana disse...

Que delícia, Cybe!!

Estava a ver o que era Caspinho :).
Até me fizeste lembrar das minhas tacholas, como eu chamava aos meus dentinhos. Felizmente lá se juntaram sem ser preciso aparelho!
Era comum na aldeia tirarem a "pinta", que é como quem diz as parecenças. Lembro-me que ficava toda "inchada" quando me diziam que eu era tal e qual o J. das máquinas, que era como o meu avô era conhecido, por se dedicar a arranjar fogões, e tudo quanto era "máquina" para as pessoas lá da terra nos tempos livres. Muitas tardes eu passei a desmontar fogões e a limpar peças!

Então andavas aos socos, Cybe? :))

Beijinhos

escarlate disse...

eu diria como o 1º comentador... "que grande lençol" (de bom linho)... e "quem me dera ter uma memória assim"... se bem que a memória da minha infância felizmente, não foi apagada

Gemini disse...

"Quem sai aos seus" (não é de Genebra, como dizia alguém que conheço)

Por isso nos brindas com peças magníficas, está-te no sangue, mais do que te estiveram algumas "unhadas" na cara!

Agora te compreendo melhor a preocupação, num comentário perto de "nós", sobre a "formação do técnico", que talvez tivesse obrigação de fazer melhor"!

Jamais poderá ser a tua "obrigação de fazer melhor", que avaliará a excelência da peça! Tu liberta-la como um filho criado, e haverá sempre quem se encarregará de a alcunhar!

Um abraço, Cybe, e "acaso" não te tenha ainda dito (que nunca me ouviste a voz) é uma delícia ler-te!

CybeRider disse...

Olá Caçador!
Há pequenos detalhes nas nossas vidas que explicam muito do que somos. Não será tanto a memória, será a busca por explicações que nos faz recordar coisas que já julgavamos esquecidas.

Abraço

CybeRider disse...

Olá Milu!

Concordo em absoluto que essas ideias que formámos com base em juízos apriorísticos das mentes pouco treinadas da infância nos deixam marcas que permanecem. Essa aprendizagem acerca da fiabilidade das nossas interpretações poderá ser afinal o cerne dos nossos destinos. Talvez uma outra interpretação mais acertada nos tivesse originado alguma inevitabilidade em permanecermos junto das nossas raízes. Assim, afastámo-nos do que considerámos menos adequado às nossas realidades numa busca incessante por destinos mais aprazíveis que nos tornassem o futuro mais risonho, nem sempre com o melhor resultado. Ou não, se faltou a coragem.

De qualquer forma quando aprendemos finalmente a reconhecer os sinais, já com outra sabedoria mas eventual menos pureza, já alterámos na maioria das vezes o rumo noutro sentido de uma forma absolutamente irreversível. Tomada esta consciência fica-nos por vezes a nostalgia de pensarmos como teria sido se nunca tivessemos sentido esse apelo. Mas não o digo a pensar em eventuais arrependimentos, antes porque a distância a que nos encontramos nos coloca numa realidade tão diferente que poderemos chegar a pensar que nos desenraizámos de vez, e no entanto...

Não te despeças das tuas histórias de criança, este teu relato diz-me que ainda há por aí muita coisa linda a revelar.

Um beijinho.

CybeRider disse...

Olá Nirvana!

Pois é... Estas memórias longínquas mas tão indeléveis... Fiquei a pensar nas "máquinas". Lá havia as de costura, cozinhava-se à lareira, a luz era a petróleo. Tudo diferente da cidade onde vivia. As pessoas tinham "sotaque" e chamavam-me nomes estranhos. Sem despertador que incomodasse, levantavam-se pelo cantar do galo, que funcionava a milho, para a ordenha dos animais; eram estranhos aqueles animais "de estimação" que na minha escola conhecia pelos "bonecos" dos livros, vinham ali como "domésticos". Mas lá eram enormes e em 3D, como compreendo agora. Desfaziam fardos de palha e pareciam desfazer-se em leite, em quantidades que eu nem imaginava possíveis.

Lá nunca andei aos socos, mas na cidade era assim que resolvíamos as contendas e que amávamos os semelhantes. Outros tempos, outras gentes, as maiorias não contavam para nada, prevalecia a força, e os exemplos vinham de cima... Já passou... :))


Beijinhos

CybeRider disse...

Olá Escarlate!

Há coisas que não devemos apagar, ainda que mudem os dogmas e as certezas, servirão para nos justificar muito do que somos. Poderemos até não querer recordá-las, mas definem-nos. Gostava tanto que o lençol de onde retirei o retalho fosse maior, mas há muito pano que desconheço

escarlate disse...

há coisas que não devemos apagar Cyber... pois há... mas nem sempre o "devemos" está na nossa mão...
quem me dera que todos os meus lençois se mantivessem extensos mas... alguns foram encurtados outros foram mesmo eliminados... se calhar é por isso que não consigo parar de escrever, sempre dá para guardar como reliquia os lençois que sobraram :)

vim ler de novo o texto... grazie :)

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Também não sou de Genebra, aliás também se diz que "quem não se sente não é filho de boa gente", este bate-me mais vezes e serve-me muitas vezes de balança, pouco católica é certo. :)

É essa responsabilidade que referes, que referi, que pesa por vezes demasiado e que me deixa com dúvidas, porque sinto a proximidade de quem comenta e o peso de honrar com alguma dignidade. E depois a vida chama-nos nestes apelos incotornáveis, contas para fechar, contabilistas, revisores... E falta o folego à alma, e olhamos para o rio numa tentativa de aplacar a arritmia e de abarcar um fardo de serenidade, que não flutua à mão...

Mas isso já passa.


Abraço Gemini, e até já!

CybeRider disse...

Olá Escarlate!

Esta tua ressalva tem o mérito de me recordar a talvez principal razão que me trouxe para aqui. De facto comecei a perder muitos lençois, sabia que estavam algures, mas deixava de os ter à mão. Assim, pode ser que as traças não os roam e que daqui a algum tempo ainda sobre algo para enxugar alguma humidade.

Mário Rodrigues disse...

Por muitos lados o álcool faz as suas visitas... Bate, deixamo-lo entrar, e poderemos suplicar-lhe a presença.
Descompostura? Não seria com certeza o caso... No entanto, conseguiram ambos, ele e o dito, ficar um de cada lado da mesa e com cuidados, encetarem diálogos.
São entidades que nos sobrevoam, essa como a do avô Gato que nos demonstram que já fomos outros.

Um abraço Cybe

escarlate disse...

hello???

CybeRider disse...

Olá Mário,

Soubéssemos o futuro e talvez nos resguardássemos da ignomínia. Talvez o sensato seja a quebra de laços com o passado e o futuro, deixamos assim de nos responsabilizar pelo impacto que os nossos momentos de baixa auto-estima possam vir a ter nos descendentes. A vida que se dá por um filho nada terá então a haver com o sangue, porque o brinde com que afogarmos as mágoas nunca terá em conta os netos que não conhecemos.

Abraço

CybeRider disse...

Olá Escarlate!

I'll be back...