terça-feira, 11 de janeiro de 2011

Abel e Caim

Contaram-me acerca de dois irmãos, talvez um fosse bastante mais velho que o outro, não sei. Foi há muito. Num momento de irracionalidade, um deles, por lhe terem preterido o resultado da colheita em favor da imolação de um pequeno herbívoro do irmão, perdeu momentaneamente o tino e desfez o crânio ao outro.

Desde antes dos tempos bíblicos que a inveja e a ganância dominam as relações dos homens. Recordo-me que me falaram de um Freud, mais recente, que dizia que tudo tinha a ver com pulsões, as sexuais e as de vida e de morte. Entre o que recordo e o que constato verifico que muito hoje em dia não passa de reflexo de textos sábios que revelam conhecimentos antigos. Não há nada de inovador em pegar no que se tenha mais à mão e rachar a cabeça a alguém, seja um calhau tosco ou um artefacto de alta tecnologia.

Abel não seria perfeito, se o fosse não necessitaria de fazer oferendas em concurso com o seu irmão. Mas porque as fazia depreendo que pretendesse rodear-se de bênçãos. Procuraria a sua felicidade a seu modo. Caim por seu lado também; invejou o irmão, mas compreendeu que sendo agricultor não conseguiria agradar quando aquilo que merecia honras divinas era a carne e o sangue resultantes da pastorícia.

Talvez Caim tenha pensado em se tornar pastor também, em criar a sua própria cabra para imolar. Neste conflito de vocação, acabaria por pensar que seria capaz de fazer como Abel, para quem a sangria dos bichos era não só natural mas a única via para alcançar a felicidade. Enquanto para Caim essa forma de vida pudesse ter sido questionável e repugnante, era contudo tentadora. Talvez tenha concluído que não conseguiria cortar o pescoço ao produto do seu trabalho, que lhe seria difícil viver com a eventual culpa na consciência, talvez até temesse alguma explicação que outrem lhe pudesse vir a exigir por violar pretensões que entretanto se tivessem criado em torno da sua imagem de pacifista e objector, que seria contudo preterida pelo deus que amava, caso não fosse capaz da imolação. E no entanto, de cabeça perdida, condenou a humanidade.

Freud explica hoje tudo o que a bíblia revela. Se sexo e religião nos conseguem levar ao êxtase, cada um a seu modo, também é certo que os dizeres desse livro, que uns dizem supremo, nos ensinam que esses dois irmão eram filhos do único par de humanos na terra e como tal com hipóteses de escolhas sexuais diminutas, que deveriam gerar pulsões imensas, estranhas e incontornáveis.

Eram coisas antigas, de tempos em que a conceição era, tal como voltou a ser hoje, assunto secundário da única responsabilidade de uma obra e graça de um tal espírito que dizem santo, verdade pura porque a conheci ainda que por mera aplicação do sentido bíblico, eventualmente pecaminoso.

Não consta do livro o completo estado em que Abel foi encontrado, talvez tenham omitido os detalhes sinistros e estranhos para a época em que Freud ainda não estava na História e como tal muitas coisas não se poderiam explicar, mas que causariam decerto incómodas insónias caso tivessem sido reveladas.

Até por isso ninguém terá tecido qualquer consideração ou pensamento acerca da espiga de trigo que mutilava a masculinidade de Abel. O livro não a mencionou e foi preciso o tempo para me dar a conhecer que afinal tinha de lá estar.

Não deixa de me causar estranheza a reciclagem histórica com que a vida me confronta e que vende como coisa nova aos mais incautos.

© CybeRider - 2011

12 comentários:

shark disse...

Só te digo uma coisa: no dia em que conseguirem sequer aproximar o efeito em mim da religião relativamente ao que produz o sexo fica aqui determinada uma garantia. Nesse dia converto-me todo. Mas todo mesmo, com ida à missa e tudo.
:)

CybeRider disse...

:)
Meu bom amigo,

Em bom sentido bíblico te digo que o conhecimento pertence aos que disfrutam. o resto serão apenas histórias, como vem no tal livro. Por isso te desejo, nesse mesmo sentido toda a sabedoria. O hábito nunca fará o monge.

:)

calamity jane disse...

Tudo se explica então pela ignorância - a minha, claro. Dupla. Por um lado, ainda bem...

CybeRider disse...

Olá, CJ!

Explicação... E sem explicação? Haveria notícia? Porque temos de explicar aquilo que só os intervenientes sabem verdadeiramente? Para mim, num mundo de escolhas, as que fazemos determinam as decisões que tomamos, nada é verdadeiramente como quem ignora poderá pensar, às vezes temos como destino a revelação, poucas vezes. Num mundo de escolhas nenhum irmão deveria matar outro, para isso nunca terei explicação, a não ser talvez num conto bíblico de sentido dúbio e moral questionável. Prefiro de longe ignorar essa motivação, bem como a que envolve a estranheza de certos pormenores que um dia nos poderiam ter passado despercebidos, por serem de todo incompreensíveis, mas que nem por isso deixarão de lá estar. Hoje sabemos mais, mas isso faz diferença?

Nilredloh disse...

Fantástico, CyberRider! A importância dada aos pormenores por nós desconhecidos é brilhante! A diferença de idades entre os irmãos, seria muito grande?, a espiga de trigo e a mutilação", são brilhantes, no mínimo. O teu conhecimento de "O Princípio do Prazer" de Freud é muito interessante...

Um abraço

com toda a amizade,

Jorge

CybeRider disse...

Olha Jorge, ainda pensei em analisar a coisa pelo prisma dos ensinamentos do Nagisa Ôshima, mas entre ter de ser incompreendido por uma análise que se consideraria sexista e uma outra de um episódio que nunca terá sido referido como tal, optei, talvez erradamente pela última, mesmo sabendo que teria de rebuscar segredos recônditos capazes de gelar as mentes mais puras. Num caso e noutro a sociedade sedenta de sexo, homo ou hetero, imolará sempre um dos cordeiros, apenas pelo sangue, mas também creio que se deveria ficar por aí. Quanto a Freud, dirá a sociedade: "maldita cocaína". Estranho poderá ser querer agradar a gregos e a troianos, mas que explicação poderá haver para repudiá-los a todos?

Grande abraço, meu amigo!

alyia disse...

com ou sem explicações freudianas ou bíblicas, há coisas que transcendem por completo a minha capacidade de compreensão…

coisas como por exemplo, um (des)governo mata cidadãos à fome e chama-se politica, quando alguém nega um pão a outrem chama-se desumano; um homem dispara noutro chama-se assassino, um homem manda lançar uma bomba chama-se guerra; um marido bate na mulher chama-se violência doméstica, um chanfrado interesseiro assassina violentamente outro, é muito bem feito porque o estafermo era gay e o coitado do chanfrado é boa pessoa, jogou basquete e até tem uma fila de namoradas…

oh Cyber faz o favor de procurar aí na bíblia ou num qualquer compêndio de Freud explicação, mas faz o favor de a guardar para ti porque eu sou suficientemente lerda para mesmo assim não entender, é espiga demais para a minha camioneta, portanto nem me dou ao trabalho de tentar encontrar teorias que justifiquem o (des)governo, o homem, o marido ou o chanfrado

CybeRider disse...

Olá, Ana!

Não vou ao compêndio buscar a explicação para as espigas. Pode ser simplesmente esta: há sempre uma espiga que não se sabe explicar mas sem a qual tudo o que se tente apurar quanto à subjectividade do caso será mera especulação, só a Abel e Caim caberia explicação para ela, ou então para outro exercício, por isso não vou explicá-las, talvez nem eu as compreendesse. Na história de Abel e Caim chega que um tenha acabado com o outro para termos a moral que nos ensina e que constitui a condenação da espécie. A mesma que nos deveria ensinar aqui, independentemente de pretensos factos mais doces ou mais azedos, as espigas ou os saca-rolhas. A espiga, que todos parecem procurar com fervor, mas cujo sentido só aos outros cabia, nunca pode importar para avaliar a dimensão da coisa. Tal como tu bem a visualizas, sem precisares da espiga para nada.

A populaça e a imprensa chamam a sexualidade à colação, para baralhar e tornar a dar, e isso chama-se hipocrisia.

É bom ter amigos como tu.

Mário Rodrigues disse...

Com os diabos!
Valha-me a santa loba!
Os modos como, o trigo está ligado aos destinos da humanidade!
...
E se fosse uma espiga de milho?... O efeito teria sido o apocalipse em pleno génesis...

Brutal!

Um abraço

the dear Zé disse...

é pá estou todo baralhado, essa coisa da espiga de trigo, é bom?
olha, e se não te importas, espero pelo filme, ok?

ciao

CybeRider disse...

Olá, Mário!

Mencionas santa tão icónica e pura, fico sem capacidade de tecer quaisquer juízos de valor. Também eu tenho a minha religiosidade! :)

Abraço

CybeRider disse...

Olá, the dear Zé!

Temo que o filme tenha sequelas, a História é afinal isso mesmo. Relativamente à agricultura, espero que algum erudito apregoe que "primeiro se estranha e depois se entranha" antes de emitir opinião. Há coisas em que tendo a acreditar no que ouço. Afinal de contas, também não gosto de cabrito, o que não quer dizer que tenha de condenar quem goste. Ainda se há-de descobrir que o Caim afinal era vegetariano. É o que dá contar as coisas sem saber tudo sobre elas!

Abraço