quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Propensão marginal

Sinto o ar na cara, entra-me nos cabelos e nas narinas.

É de ar puro o vento que respiro quando olho para trás e vejo o lugar que deixo. Que bom é inchar os pulmões como odres e fazer entrar a maresia. As ondas aspergem-me o rosto como a tentar reanimar-me do torpor que me levaria a cair pela borda.

O batel deriva, neste triste vazio onde fiz coisas, algumas que me entusiasmaram, e que me corromperam a solidão. Barcaça vetusta e decadente, talvez de herança que já não recordo, que arrasto pelo meu mar de lamurias, ao encontro de uma praia inalcançável onde sei que só poderei soçobrar, envolto no nevoeiro.

Este vento é pouco propenso a marginalidade. Interventivo, sopra sempre com intenção definida, pura, até que atinge o seu objectivo e sem cedências muda de direcção, quando lhe apraz. Já o meu percurso tem sido erguido à volta de propensões marginais, incapaz de partir com o vento, analiso a frio as que me têm movido neste mar de pouca esperança.

Reconheço que deveria haver, no meu caso, um órgão moderador, algures entre a boca e o coração. Assim, não consigo identificar os rochedos onde desfaço o navio. Talvez por navegar sempre à bolina, de través, sem rumo directo que me leve de onde estou para onde queria de facto estar. De quem será a culpa, senão minha? Reles timoneiro que só conhece como destino o mar do propenso naufrágio. Sempre a mesma sede que nem todo o oceano envolvente conseguiria mitigar; no entanto sempre o mesmo rumo, por teimosia. Olho a estibordo, a espuma gorgoleja junto à linha de água límpida e cristalina. Quase enxergo o fundo, mas não pode ser... Alma como a minha não fundeia porque não tem o direito de se aquietar. Há que prosseguir, braça após braça, milha após milha, milhas mil, maravilhas que miríades de marinheiros também tiveram de navegar.

Acompanham-me na epopeia esses fantasmas que me trespassam, em direcção à brancura do seu leito natural, rudes esboços de exemplos, que não sigo, talvez. Ali se aquietarão até que o tempo os dissolva ou o vento os leve com ele; como às ondas espumosas que revolteiam na areia. Alguém depois de mim os há-de recriar, quando tudo os tiver já consumido e o vento, impiedoso, lhes tiver perdido o rumo.

Sai-me do pêlo, o ânimo com que teço considerações. Animais de pouco pêlo, teremos também curta a alma, por isso que nos tentamos bater por que algumas prevaleçam. As outras, descartáveis, olvidáveis, potencialmente inúteis, esquecemos que as vimos e voltamos-lhes as costas, por definição despidas. Ficam a oxidar-nos o mundo, a intoxicar-nos a mente, como meras ideias de tolos. Até que um dia vem uma onda mais forte que descobre as conchas profundas, alguém estende a mão à que mais brilha, e compreende que toda aquela miséria de memórias bafientas foi afinal um tesouro perdido.

Nessa arca imersa, abunda também o orgulho. Sentimento franco e virginal que só os espezinhados não reconhecem naquilo que fazem. Mas também existe, nas pequenas galáxias que se escondem em cada um, um sentimento que prevalece sobre a pureza do orgulho; chama-se vaidade e nada tem de excelso ou celestial.

Essa falsa pérola que eu próprio abandono no leito deste oceano, que perscruto, adornará as vestes dos mais singelos. Já os meus pretensos andrajos ninguém há-de cobiçar, nem levantarão suspeita do conforto que me dão.

Não há porém fim que me derrote. Hoje, não. De mãos nas malaguetas, giro a roda-do-leme, ainda que navegue sem rumo não me deterei perante os escolhos, nem que a quilha desta nave se destroce nas rochas nuas. Nunca voltarei aos breves instantes em que fui o ser mais jovem deste oceano, por mais voltas que dê ao mundo o caminho será sempre linear e desconhecido.

Sei contudo que a cada dia menos restos sobram na carga da minha nau. Mortais, os meus, esvair-se-ão antes que eu suspeite que alguém os pudesse encontrar, também eles numa propensão marginal para o absoluto esquecimento.


© CybeRider - 2011

7 comentários:

shark disse...

Eu, apesar de muito quarentão, às vezes também acho que precisava de um órgão de moderação, mas como é difícil de o manter discreto na zona a que fazes alusão tinha que o instalar talvez entre o umbigo e os joelhos...

E agora que já fiz a minha piadinha parva da meia-noite e vinte prossigo dizendo que nesta minha pele de esqualo aprecio sempre um fundo marítimo numa posta.
Que de resto está muito bem esgalhada, no meu modesto entender.

CybeRider disse...

Doze horas depois (na minha quarentanice, que não discuto em tamanho...) só me vem à ideia a história do elefante que olha para o homem nu e lhe pergunta como é que ele consegue, com uma tromba tão pequena, levar a água à boca. A localização do órgão parece que afinal é importante.

É um privilégio muito grande ter um predador do topo da cadeia alimentar a avaliar a iguaria.

CybeRider disse...

(Quando eu digo que são doze horas... São doze horas!)

XD

the dear Zé disse...

uma prosa brilhante, manejas as palavras como a minha avó às agulhas do croché, com uma destreza de prestidigitador...
por outro lado, lembras-me alguém:

http://www.youtube.com/watch?v=mADiz_vn0RQ

até logo

CybeRider disse...

OLHA, UM CLIQUE!!!!! (Dá o Zé nozes a quem não tem dentes!)

Os Antónios são uns filhos da mãe!

Até já! :)

Mário Rodrigues disse...

"...para o absoluto esquecimento". Mais uma vez, tens a arte e a mestria de me fazer reflectir. O caminho será sempre errante pelos mares de mil marés. Nunca saberemos se as rotas cruzadas foram ou serão as devidas ou indevidas, mesmo porque em nada nos é dado saber o que é devido. Recordas-me algo em que eu escrevi que "...afinal não passo de um grande sacana!..."
Somos vítimas de um apostolado de existência eminentemente útil. Nunca nos será intrínseca uma existência natural. Deveremos lutar por ela ou contra ela?

Talvez esteja de volta! Ainda não sei...

Um abraço

CybeRider disse...

Olá, Mário!

Nem esta eternidade virtual nos vale. A intemporalidade é uma ilusão, nem reconhecendo-nos como deuses autênticos conseguiremos a permanência. Quem disse que os deuses são imortais também espatifou a nau nas pedras.

Tu permanece, por mais que possas. O importante é navegar, que o naufrágio é sempre certo mas inglório.

Um abraço