domingo, 27 de novembro de 2011

São cruzes, senhor.

Ligado à máquina...

É sempre um passo difícil, largar a aflitiva realidade e mergulhar neste isolamento ansiolítico, e podia pensar-se que seria um refúgio, mas não é.

Lá, é simples, as coisas derivam e escolhemos as interacções, consoante casualmente nos atinjam ou pretendamos atingir. Aqui, invariavelmente, tudo nos atinge e temos de abrir caminho pela pesada tralha que nos sujeita à aparente passividade. Na verdade há tanto a tirar de cima que chego a pensar se, depois de cá vir, conseguirei sair do lodaçal que me sufoca.

De súbito invade-me a ideia de como seria se ficasse aqui para sempre, assim como os volumes que me olham do cimo destas prateleiras. São cruzes, quase todos, marcam a localização de entes que partiram mas que podemos visitar para uma vénia, um derradeiro adeus, uma flor na campa. Ficaria aqui sentado, ligado à máquina que se alimenta a chouriço e casqueiro, até que o pó me cobrisse, entupisse o aparo e estagnasse a corrente; o braço a mexer invariavelmente, com uma tremura lânguida, as letras imaginárias; os olhos semi-cerrados; e mais nada, até ao fim da eternidade. Por isso temo sempre o regresso. Ainda que consiga desligar o braço a tempo, há sempre algo que acaba por ir parar à prateleira e que fica ali a olhar para mim, à espera da tal vénia, de um acenar saudoso ou de um aroma a crisântemo que lhe eleve a alma, e torço para que não seja eu a cruz que ali falta.

Até por isso recorro com frequência a um subterfúgio, deixo-a ali a dar ao braço, enquanto vagueio por outros sítios que me trazem melhores recordações; nessas alturas fico atento à criatura, que não venha no meu encalço, que não descubra o que ando a fazer, enquanto a vejo dedicada, imersa na imensidão de escombros, a tentar desenvencilhar-se, e parto para a prateleira das recordações, onde as cruzes são etéreas. A memória é uma amante traiçoeira, sempre pronta a afirmar tudo o que me convenha para o bem e para o mal, uma pretensiosa meretriz que se aproveita da minha necessidade para me encher de convicções de que também se empanturra. E no entanto é essa mentirosa que me conforta, que me aperta a bochecha entre os dedos de uma velha e que me sussurra ao ouvido:  "que linda bochechinha" , e ali fico a sonhar, a sentir um leve ardor na bochecha e a recordar dias em que as cruzes não faziam sentido. E de repente todas as velhas me parecem dignas de me ter apertado as bochechas, vá-se lá saber porquê.

Duas mãos firmes nas minhas costas empurram-me num baloiço, o meu joelho esfolado; sempre tive um joelho esfolado. Agora cai-me um dente de leite, vejo-me ao espelho com um  sorriso desdentado, mas não sou eu, é a criatura. Eu nunca tive dentes de leite, ou tive? Fico confuso, a memória a rir-se de mim e eu, como de costume, estatelado ao comprido, com um fio de sangue a brotar do joelho. O sangue é sempre meu, até o do perú do natal e o do porco da matança.

Olho para a criatura, maquinal, frente à sua página, debate-se, atolada. Enquanto tricota, confiro-lhe a solidez do relato, verifico a escolha dos caminhos mais fáceis de que se socorre; vem-me à ideia que procurará uma saída airosa que justificasse a sua independência de mim. Não a censuro.

Faz hoje cinquenta anos que convivo com ela, sei, sempre soube, que um dia me há-de abandonar à minha sorte, e eu talvez nunca venha a saber se as memórias são minhas ou dela. Tolerante, ou simplesmente interessado, acabo-lhe de novo com o sofrimento, ocupo-a, tiro-lhe a caneta da mão, tranquilizo-a. Arrumo na prateleira outra cruz, que trás com ela, dos destroços onde nos tínhamos enterrado. Nesta simbiose encontro-me velho e tenho até vontade de lhe agarrar na bochecha descarnada e de lhe dizer ao ouvido: "que linda bochechinha", mas contenho-me; ela saberia o tamanho da minha hipocrisia.

Sou sempre eu quem salva a criatura fleumática, sem especial prazer, apenas porque preciso dela para transcrever o sorriso desdentado ou as lágrimas saudosas que algumas cruzes me provocam, pontualmente, à medida que vou interiorizando, com um aceno tímido e uma pressentida fragrância a crisântemo, que nunca as poderei voltar a visitar.  


© CybeRider - 2011

Clique do the dear Zé:

20 comentários:

mfc disse...

Fizeste um fantástico retrato irónico e sarcástico da vida!
Sim, é o que ela merece... mas como é só uma e ninguém nos dá outra temos que a ir suportando!
Um grande abraço.

CybeRider disse...

Olá, Manuel!
Palpita-me que ainda acabo por nunca vir a saber lidar bem com ela!
Grande abraço, meu amigo.

the dear Zé disse...

invejo-te, invejo essa capacidade de exposição a que nunca me atrevo escondido atrás de uma cortina de cinismo. deve ser duro. mas tão libertador... acho eu, sei lá.

só agora é que consegui ler tudo com a atenção que mereces, que merecem os teus fantásticos escritos. apetece-me escreve-los em aviões de papel e lançá-los aos milhares por sobre as casa e sobre as gentes, num espectacular bombardeamento de palavras...

à falta disso, toma lá:

http://www.youtube.com/watch?feature=iv&annotation_id=annotation_977018&src_vid=WLH5bWoQmtc&v=Yzup8j-Ifzk


aquele abraço

the dear Zé disse...

eh eh eh ópramim a lixar-te a arrumação do belogue...

CybeRider disse...

Olá, Zé!
Deixas-me sem palavras, e não é pela (des)arrumação da casa. Não me invejes, tens obra que te nega o cinismo que referes, os aviões não abonariam a ninguém, talvez contagiassem os pesadelos que encerram e o mundo ficaria ainda mais infeliz. Mas olha, o teu contributo trouxe luz ao espaço, e este até deu para colocar assim. Gostei!

Aquele abraço, moço!

Gemini disse...

Parabéns! Muitos!

És grato à vida qb, porém, pareces assumir que há muitas vidas que poderiam tornar a vida melhor. A vida depende das vidas, para nos ser melhor!

50 anos, venham outros tantos mas com vida, não apenas com existência!

Sem anos não haverá vida, talvez, mas há vidas que merecem Cem anos!

Parabéns, Cybe. Que honra ler-te!

O Nosso Abraço.

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Que boa surpresa. Obrigado! O mestre dos trocadilhos soberbos, sente-se a tua falta! Honra é ter amigos assim.

O Nosso Abraço

Nilredloh disse...

Querido António,

a única ideia que tenho de alguém a lutar pela da vida nos cuidados intensivos, seria a de passar da primeira à segunda classe, e desta à terceira, podendodar-se o caso de descer por aí por baixo, da quarta para a primeira classe, uma vez mais. Um sufoco. Não, não invejo a a vida dos intubados por doenças que lhes ameaça a vida, pois têm que pôr tudo em causa. E se calhar que os outros é que o lixaram... se calhar, têm razão!


Com toda a amizade, um abraço do teu amigo, Jorge

Nilredloh disse...

Enfim, outro texto genial.

CybeRider disse...

Ilustre Jorge,

dás-me uma perspectiva nova para este mísero relato. Não me tinha ocorrido essa dolorosa leitura. No entanto o paralelismo é atroz, também para o comatoso existirão talvez duas entidades, a que quase se esvai e a que se liberta; a eterna luta entre o corpo e o juízo -há quem lhe chame alma, há quem lhe chame espírito, há quem nem repare que existe e que sobreviva apenas com um pavor da morte, talvez inexplicável. Há dias em que me esqueço do cárcere que me confina ao corpo falível, ainda relativamente fiável, num minuto de cada vez, mas sem garantias. Noutros, conto os 5 minutos que faltam para o ataque fulminante que me vai deixar a obra por terminar, noutros pergunto-me que importância terá a obra que justifique a minha permanência. Todos me confirmam apenas a minha falta de domínio do fundamental, a eterna ignorância com que espeto cruzes (as marcas que deixamos, se quiseres) à minha volta para me lembrar do que me deveria esquecer antes que tudo se esqueça de mim e delas.

Grande abraço meu bom amigo!

Alguém da Cidade disse...

A vantagem de se estar ligado à máquina (com saúde) é manter viva a esperança de um dia, em vez das saudosas "que linda bochechinha"… vá ouvir “conta-me todas as tuas rugas!” acompanhado de uma festa dada por mãos jovem, curiosas e sensíveis, vindas de um corpo ágil sentado na minha frente, numa atitude demonstrativa de sensibilidade, carinho e disponibilidade.
Parabéns pelo meio século, Parabéns pelo espaço, Parabéns pela partilha! Bom…parabéns pela vida! :)
(Agradeço-te o “Engano”!)
L.

CybeRider disse...

Bonitas palavras L. "da Cidade", agradeço-te a visita ao campo, onde abundam ferraduras e coisas de antigamente; a maioria fantasmas, talvez. Que providencial "engano"! Pelas tuas palavras, só posso confirmar que há males que vêm por bem. Do que me felicitas pouco domino; nem o tempo; talvez alguns espaços, exíguos e em aluguer de curta-duração; nem a vida; só talvez a partilha, e essa pode ser uma fragilidade pela entrega de... enfim, tu sabes. Eu é que te agradeço, a visita e as palavras positivas neste espaço que já conheceu melhores dias.

Bem-vinda! :)

Chapa disse...

È da minha vista, ou tens a ferradura a enferrujar?

CybeRider disse...

Olá Chapa!

É assim como a pescada, que antes de o ser... Ou de outro modo, um dia é da lixa, outro do lixador. Enferruja a ferradura, mas o burro está num brinquinho!

the dear Zé disse...

... reticências?...

CybeRider disse...

Pontos de exclamação, duma perplexidade indescritível. Nem sei que te diga.

L.Reis disse...

Sabes quando a gente anda assim a ver o blog de outra pessoa (neste caso do "Dear Zé , caçador de palavras e de clicks" ) e enquanto não escreve o que quer, vai lendo em modo de acaso um ou outro comentário? E depois, quando volta, lê mais uns quantos e por aí fora? E depois , às vezes já não é tão ao acaso e dá por si a ler sempre o que determinada pessoa escreveu? Pois é, foi assim com o CybeRider. E hoje em jeito de epifania, dei comigo a pensar: " Mas afinal quem é o raio do CybeRider, que tem esta capacidade de pôr as palavras no sítio certo e se atreve a fazer sentido, ameaçando despudoradamente o marasmo da razão, que já não fica nada bem tratada depois de se acabar de ler um texto do Zé" Ora vai daí, enchi-me de força anímica e cliquei mesmo em cima do "CYbeRider" e aqui estou eu...
Não sei se fiz bem...dei comigo a passar de um post para o outro, na tentativa pouco honesta de contrariar este "bem dizer" .... (tenho lá a culpa de ser desconfiada...)
Não sei se fiz bem, porque dei comigo com o tempo passado, já atrasada para uma reunião e mesmo assim a ler mais meia dúzia de linhas.
E agora vou, vou, mas não vou nada descansada, porque as pessoas que escrevem como tu são...como direi...?...olha, são um grande "desassossego :):)
(Desculpa lá que isto foram quase dez dedos de conversa!)
Um beijo!

CybeRider disse...

Sei sim, L.Reis. Tão bons encontros proporcionam esses momentos. E por vezes acontece um como este, em que somos surpreendidos com um comentário tão simpático como improvável, que nos afiança que afinal a simpatia das pessoas é mais frequente do que em certos dias pensamos e também que a probabilidade de um artista ser alguém intratável e anti-social não passa de um mito. Mas da tua arte deveria falar em sede própria, para que não parecesse uma troca de galhardetes. Assim, tenho de esclarecer que a refiro porque me lisonjeia a curiosidade que te despertei. Do Zé, sei que me tem estima e que me tolera as boutades com que afirmo o meu atrevimento, escandaloso abuso da sua benevolência. Chegares aqui vinda de lá será um pouco como apanhares uma auto-estrada que termina abruptamente num pardieiro. Também não sei se fizeste bem... Por um lado porque recebo um prémio que não mereço, por outro porque fica claro que esta minha desfaçatez que tornei (por enquanto passado, que o voltar ao presente talvez ainda não se avizinhe) pública não passa de um atraso de vida! :)

Mas que gostei muito, lá isso!...
(Eu é que terei de te pedir desculpas por gorar expectativas, nisso sim, modéstia à parte, nisso sou mesmo muito bom)

Um beijo!

Alguém da Cidade disse...

e é bom saber que a máquina é resistente e se mantém ligada, silenciosa porém...mas "Porque (entre outros) há duas espécies de Homens: os que vivem (ainda que ligados a um mecanismo externo) e os que vão morrendo"...retorno ao campo, eu que "Não costumo meter conversa na paragem do autocarro", eu que por engano aqui vim dar, para te felicitar por (mais) este dia, e aproveitar para reler alguns dos textos que aqui tens e que merecem ser revisitados.

A Esperança, dizem, é a última a morrer ;)

Um dia feliz, na companhia de quem mais desejas …hoje e sempre! A fatia do bolo...já comi, Obrigada!

Beijo, um sorriso (e um abraço apertado!)


L.

CybeRider disse...

Olá L. da Cidade!

Que surpresa! Por momentos é como se o tempo tivesse parado, não fosse todo o torvelinho de 366 dias, esquecidos ou apenas por relatar. Não fosse a paragem ter algumas teias de aranha e dir-se-ia que o autocarro não tinha chegado a passar. Ou voltámos por engano, com possibilidade de passar por tudo outra vez, repetindo o destino. Depois da conversa inicial não se pode voltar ao silêncio, a memória já não deixa.

Possa a Esperança resistir a tanto atentado.

Grato sou eu, por voltares, por te importares, por teres mandado os emissários que fazem flores pairar no ar. :)

O bolo não era doce, o teu sorriso, o beijo e o abraço, que retribuo, sim.