terça-feira, 19 de março de 2013

Uma verdade conveniente

Que pode um aprendiz dizer sobre a vida?

Tenho vindo a descobrir a significância das coisas insignificantes. A minha última epifania é que nascemos de coisas ordinárias, um saco de supermercado, uma bilha de água, às vezes dum pneu furado. Dirão que não. Que nascemos de uma mãe e de um pai, mas essa constatação é já a da natureza a formatar o disparate, mera tentativa de dar nexo ao caos.

A insignificância do nosso início é tão notória que nem sabemos ao certo como viemos cá parar, e no entanto temos o arrojo de achar que devemos estar destinados a algo sublime. E nisto arrisco se haverá alguma situação em que não tenha sido o acaso a colocar a nossa génese em factos absolutamente inocentes e imperceptíveis. Recuo décadas, avanço quilómetros para outras latitudes, e vem-me à ideia o casamento por conveniência, instituição venerada que entretanto tem caído em desuso, apenas para verificar que não. Mesmo aí teria de haver algo de casuístico e diminuto a colocar certas pessoas em incerto trilho.

Esta é a grande diferença entre nós e os outros animais. Por mais que observe os pássaros, os cães ou os peixes, não encontro tamanha variedade de razões tão pueris, para o enlace de dois seres num destino comum, o do nascimento de um filho.

Caso curioso é o daqueles miúdos que nasceram de um porta-chaves. O caso é tão óbvio, e tão embaraçoso de divulgar, que ainda não tive coragem de o revelar ao progenitor que mo contou com a maior naturalidade, sem compreender que me estava a lançar a chave do segredo da existência de uma boa parte da humanidade, eventualmente de toda desde que nos passámos indevidamente a apropriar do termo "racionais".

Contava-me que conheceu a actual companheira, a mãe dos filhos, numa noite, numa festa de estudantes, num bar algures por Amesterdão. O facto de ele, de ascendência inglesa, nascido na África do Sul, estar a estudar na Holanda é, a meu ver, absolutamente irrelevante para a minha conclusão. Facto importante é que no final da noite se prontificou a dar boleia a uns amigos da ocasião que foi distribuindo, pelos diversos destinos, na sua carripana. Como ele mesmo diz, nunca mais a teria visto se não fosse o facto de no dia seguinte ter encontrado, caído entre os bancos dianteiros do carro, este referido porta-chaves, o mesmo que eu lhe entregava agora, por ter encontrado caído entre os bancos dianteiros do meu. Objecto insignificante, uma pequena bota em couro, agora velho e seboso, com uma argola de metal meio corroído e meia dúzia de chaves tilintantes. Só depois veio o romance, talvez do sorriso grato dela e do olhar mais atento dele, conjecturas derivadas exclusivamente do meu pensamento.

Não fora isso e hoje, Dia do Pai eu, que não sei de onde nasci, estaria a relatar outra história, muito menos interessante, de um outro filho que nasceu de um enorme urso de peluche. Para mim muito mais complicada de aceitar e de contar, e no entanto também verídica e naturalmente conveniente.

© CybeRider - 2013

2 comentários:

the dear Zé disse...

«Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.»

dizia um outro que dizia muito melhor do que eu das coisas do acaso, e da necessidade, fortuita ou não

mas de facto, ele há coisas, cliques estalar de dedos, que são o princípio do mundo... pois é...

abraço moço

CybeRider disse...

Bem lembrado o Régio poeta, mas em vez de melhor será diferente. Mas daí nasceriam os trovões e relâmpagos, eram outros tempos e outras gentes. De deus sobrou a teta e do diabo o crematório.

Abraço Zé