domingo, 19 de julho de 2009

Bom dia, Mr. Magoo!

Os meus óculos ridículos...

Desde cedo me envergonharam. Quantas vezes me apontavam a dedo, e riam-se na minha cara. Quantas vezes por isso os tirei, e deixava de ver o Mundo. Seguia às apalpadelas, à espera que me guiassem, por caminhos que não conhecia. Aí ninguém se ria, faziam-me acreditar que ia pela trilha certa.

Caí. Esfolei os joelhos. De novo o riso... Agora pelas minhas mazelas.

Por maldade me enganaram, sempre que os não tinha. Poucas vezes cheguei, portanto, a horas ao meu destino. Sempre incógnito. Por vezes tarde demais, também àqueles que me foram comuns a tantos, que fizeram comigo longas caminhadas.

Há porém os que me aceitam, sem embaraços. Acompanham-me pelas ruas onde alguns me caem aos pés, mortos de riso. Olho-os, a esses meus companheiros, nos olhos; enquanto encolhem os ombros sem compreender o efeito que causo, em quem nunca me viu. Ficam tristes, penso. Não é bonito rirmo-nos dos defeitos de alguém. Aceitam-me, com as minhas fraquezas; embora achem que as minhas lentes já me distorcem as coisas.

Estão muito velhos os meus óculos, as hastes mal se seguram, as lentes têm muitos riscos, adquiriram uma pátina, do tempo. As suas armações exuberantes, de cores esdrúxulas, dão-me um ar ridículo, muitas vezes. Sem que compreendam que, sem eles, não vejo nada. Já não tento, também por isso, que me vejam sem eles. Nem mesmo no meu campo de girassóis, onde passeio tantas vezes. Lá, nem procuro já distinguir a cor viva das pétalas. O meu campo de girassóis é todo cinza. Uma realidade a preto e branco que as fotos teimam em registar as cores.

Só os meus óculos me permitem ver essa realidade, exactamente com as cores que não tem.

Chego a acreditar que quem me conhece já nem repara que os trago. Não é raro ouvi-los dizer: "Nunca te vi de óculos...". Nessas alturas, quem se ri francamente sou eu, é nesses momentos que sei que cheguei ao meu porto seguro. E alguns até se arriscam a deixar-se guiar por mim. Aí, fico tentado a confessar-lhes a verdade. Sinto que lhes deveria dizer que os caminhos que sigo com estes meus óculos, os únicos caminhos que consigo de facto destrinçar, não são os mais directos, nem os mais seguros, mas apenas os únicos que consigo percorrer com alguma certeza. Talvez os mais longos e íngremes, muitas vezes os menos óbvios.

Simplesmente os que me permitem chegar a um destino.

À noite, finalmente, guardo-os na caixinha, de dobradiças já carcomidas; e adormeço.

Sonho... Vejo-os. Uma multidão que se ri e me aponta. Lembro-me de cada rosto que se repete, sempre da mesma maneira, nesse meu pesadelo:

Encontro-me nu, num imenso campo de girassóis cinzentos onde apenas a armação nos meus olhos brilha. E eles encontram-me pelo brilho e seguem-me, seguem-me todos para um abismo enorme onde serei o primeiro a entrar.

Vêm sequiosos, como feras famintas, querem ver-me cair do cimo do penhasco; uns trazem máquinas para registar o momento, outros vão tirando apontamentos. Não consigo parar, a minha queda será inevitável, naquele abismo imenso, naquela boca imunda e fétida que se abre a metros escassos dos meus passos compelidos e inseguros.

De repente, oiço um ruído cavado. Olho para trás, ainda a medo, e vejo-os a todos caídos. Alguns levantam-se contundidos e confusos. Nenhum conseguiu ver o obstáculo que saltei.

Olho para o abismo, que se abre a curta distância e volto a olhar para eles. Todos esfolaram os joelhos.

Rio-me, rio-me mesmo muito, por fim. Vejo-lhes os esgares de espanto. Apreendo que todos caíram por não terem afinal, uns óculos iguais aos meus.


© CybeRider - 2009

18 comentários:

Soraia Silva disse...

Há muita gente que vive para gozar os outros e o seu papel principal será apontar o dedo.

li algures, que antes de apontarmos um dedo ao outro, nao nos devemos esquecer que temos 3 apontados a nós (nao preciso de fazer desenho pois nao? :P)

É dificil viver quando "meio mundo" olha para nós com um sorriso no rosto pensando eles que nao nos apercebemos, ou entao gozando directamente... principalmente gozando com algo que nos é indispensavel e que por algum motivo sem isso nao andamos, nao vivemos, nao vemos etc etc.


há quem veja o mundo em dois tons, outros vêm o mundo completamente colorido.
aqueles que têm a visao mais limitada talvez sejam mais felizes que os outros, porque apesar de saberem os seus limites, sabem até onde podem ir, se cairem levantam-se, e nesse tal abismo, ainda há uma esperança de sobriviver.
enquanto que os outros, fazem e abusam do que querem, sabem os seus limites mas querem sempre mais e quanto mais fazem mais se afundam, por consciencia, e o abismo será tao profundo que jamais haverá uma hipotese que se levantarem...

é a minha opiniao...

beijinho :)

Pepita Chocolate disse...

Tens te lembrado da BD para liustrares o pensamento que te acompanha na escrita... mão me lembraria de Mr. Magoo para ilustrar o peso que carrego no nariz: um par de lunetas; porque,também eu uso óculos. Também os meus me incomodam. Mas eu comecei tardiamente a usá-los! não sofri na pele a malvadez de que não percebe que nem todos possuímos a mesma visão. E que não usamos óculos porque queremos, mas porque precisamos...
Felizmente consegui substituir oculos, por lentes de contacto. Permite que não haja aberrações. No entanto,às vezes nem as lentes de contacto conseguem esconder aquilo que nos faz doer os olhos.
Mas para abreviar, relembro-te um texto que escrevi lá pelo Queque, que retrata aquilo que penso sobre os óculos:

http://quequechocolate.blogspot.com/2009/05/e-dificil-arranjar-um-bom-par-de-oculos.html

Mas ele já te é conhecido. Mas é só para não me repetir... Porque o que penso está por lá...

Beijinho!

Mas sobre os úc

CybeRider disse...

Olá Soraia!
Gira, essa dos três dedos... Não estou habitudo a vê-los, sou bastante civilizado, mas às vezes... :)

"O último que ri, é o que ri melhor". Não me importo com as opiniões alheias. Os "óculos" de que falo vão-nos servindo para vermos o Mundo à nossa maneira. Gostaria que os meus servissem para salvar legiões (em sonhos...), mas não chego lá.

Para alguns, a vida é de facto mais colorida que para outros, a ausência de cores é muitas vezes o desânimo que a vida nos impõe, porque temos uma forma de encarar a realidade que não condiz com a maioria, somos muitas vezes incompreendidos, sem estarmos no entanto completamente errados, por vezes até antes pelo contrário.

Beijinho!

CybeRider disse...

Olá Pepita!
De facto, parece que os heróis da BD são um bom cajado para ilustração de ideias, talvez porque têm algumas mentes brilhantes na sua génese. O Mr. Magoo (o Pitosga) pareceu-me adequado como título, porque também ele conseguia desempenhos brilhantes no desenlace das situações mais diversas, ficávamos a pensar que as coisas se solucionavam por acaso, sem conseguirmos ver para além do "pitosga". Também eu tenho alguns sucessos absolutamente inexplicáveis, por irem contra cânones que todos consideram como certos, ou então serei mesmo pitosga e tudo o que de bom me acontece será por acaso.

Achas que estás livre desse tipo de malvadez? Tens a certeza de que começaste a usar os óculos tarde?...

Pois eu sou constantemente confrontado com esse tipo de situações, em que sou considerado diferente porque a minha maneira de ver o Mundo não condiz com estereótipos e acabo por ser olhado como um tolo (ou pelo menos um excêntrico, na pior acepção do conceito).

(O teu texto tem um comentário meu, daquela altura. Já ali te referia que me tinham agradado os aspectos dos "estados de alma" e das "influências externas". Foi bom tornar a lê-los.) :)

Beijinho!

Nirvana disse...

Se não me engano o Mr. Magoo tinha sempre um ar feliz!
Eu acho, sinceramente, que a ignorância é a melhor caracteristica que alguém pode ter. Não digo isto em tom trocista. Não ver, não questionar, não saber, ir ao sabor do mundo, como carneirinhos todos para o mesmo sítio, todos contentes. Haverá algo melhor? Quem me dera ser assim. Era muito mais feliz, de certeza. O único problema é que tinha de ser assim sem saber que era... mas aí já estaria a pensar, a questionar.

A sociedade, de um modo geral, não lida bem com a diferença. Podem dizer que sim, que todos diferentes todos iguais, etc, etc, mas não é verdade. Quem é diferente é sempre visto como alguém a quem falta algum parafuso... muitas vezes afastado e ignorado propositadamente.

Quando temos os nossos óculos, eles tornam-se parte integrante de nós, já não conseguimos andar sem eles. Acabamos por esbarrar nas paredes (eu que o diga nos últimos tempos). Mas, felizmente, estes nossos óculos são resistentes. Podem ficar riscados, ferrujentos, embaciados, mas continuam a manter uma nitidez sem igual.

ADOREI este teu texto (que novidade!!! :))

Beijinhos

Gemini disse...

Pelos "vistos", não é quem usa óculos que tem problemas de visão... Essa pessoa, através do seu uso, já terá solucionado o seu "problema". Isto vem provar que quem pensa que não precisa de usar óculos, é que tem de facto a vista limitada, e por consequência parte do cérebro também...

Haverá muitos ainda que se rirão antes de mim. Rirei por último.

(Não CybeRider, não uso óculos. Mas vejo (melhor) o mundo, através de algumas pessoas que os usam!)

Um abraço.

Mário Rodrigues disse...

Olá caríssimo Cybe,
Há ausências de óculos que provocam desfocagens. Poderemos não ser melhores, nem piores, mas seremos quase sempre bem diferentes das etiquetas que nos colam nas testas.
Irrita-me profundamente, esta epopeia interminável que une toda a humanidade, ou pelo menos 99,9% dela, e eu muitas vezes deparo-me com dúvidas de que lado estou, em separar todos os outros, nossos irmãos seres humanos, em “camadas qualitativas”. Há-os, de primeira; os nobres; os elegíveis; os que devem dispensar obedientemente o ar que respiram para que outros, obviamente de uma cama superior, possam encher balões; os “miseralizáveis”, combustível essencial à manutenção e progressão dos “benfeitores”… De repente veio-me à cabeça, uma explicação para isto; a “manutenção animal da espécie, luta pela sobrevivência”, encaixa aqui, que nem…uma mer…. Há! Já sei, há outra, aquela das elites que são o impulso do desenvolvimento… O que comem as elites, se algures os escravizados não produzirem para que eles esbanjem? E quem consegue ser “nata” num tanque de leite? Os meus filhos reconhecem-me facilmente, no meio de uma manada de burros! Se bem que tenho consciência de estar a incomodar o nobre jumentada. Só me faltava, aparecer “prá’í”, uns iluminados com aquela estupidez das uniões das diferenças para um todo único em que todos têm o seu lugar (deles), e como num puzzle, se falta uma peça não há puzzle... Pecas, pecas… Pecas, pecas… Pecas, pecas… Rótulo – “UTOPIA”. Gostava de saber quem foi o “caramelo”, que inventou essa … dessa UTOPIA que aparece, tipo o estúpido do bobo da corte, sempre que fazem perguntas embaraçosas ao monarca, e assim livra-o de mais aquela!! Também ouvi dizer que há por aí uns bobos que… papam as princesas…

Um abraço

CybeRider disse...

Olá Nirvana!
Bem lembrado esse aspecto do Mr. Magoo! Mas ele era uma personagem fictícia. :)

Pois Nirvana, por isso é que o ignorante sabe tudo. Já o sábio, só sabe que não sabe nada. No fundo não será essa a nossa realidade? A de um enorme desconhecimento? A nossa fraqueza é mesmo o facto de termos descoberto que ela existe, e aí começamos a questionar... Os ignorantes não serão felizes, a cobiça é uma infelicidade e só um ignorante tolo não ambiciona aquele "pouco mais". Diria antes que felizes serão eventualmente os inconsequentes, o que implica um elevado grau de tolice. Logo, seguindo o raciocínio, felizes os loucos... - a ideia é bem descrita por Erasmo de Roterdão em 1509 - "O Elogio da Loucura".

A sociedade também inveja os loucos, pensa que são paradigma de felicidade, daí os estereótipos de insanidade que se tornam modas (outro tema para resmas...). No entanto são apenas pessoas que encontraram a sua forma própria de interpretar o mundo. São os seus óculos, que como sublinhas mantém "uma nitidez sem igual", pois... Que outros?... :)

Eu também ADOREI o teu comentário (já que estamos numa de novidades) ;))


Beijinhos

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Repara bem... Tu és dos que têm uns óculos bastante nítidos. Tens-te visto ao espelho ultimamente? :))

Ou também ouves quem te conhece dizer-te que nunca te viu com eles, ao ponto de também te convenceres?

Que seríamos nós sem os nossos óculos? Que nos deixam ver as cores e formas que acreditamos que o Mundo tem? E tantas vezes de uma maneira tão individual que ninguém nos entende?

Repara bem Gemini... Quando os ouvires menosprezar e fazer chacota dos pensamentos que divulgas. É do teu par de óculos que se queixam!

Abraço!

:))

CybeRider disse...

Olá ilustre Mário!
De facto não será uma questão qualitativa em primeira instância, mas antes uma determinação de um efectivo direito à diferença. Já numa segunda instância a separação das águas impõe-se, por um lado porque as opções que tomamos nos definem como úteis ou dispensáveis (se bem que tenho defendido a necessidade dos dispensáveis, não sei se em legítima defesa, se como ponto de aferição...) afigura-se-me porém que muitas dessas opções nos são infligidas e que talvez na percentagem que referes a estratificação não o seja por mérito próprio (que o será muito poucas vezes, os méritos são normalmente julgados pelos pontos de vista de quem julga, que é muitas vezes cego a outros defeitos e qualidades).

99,9% significa que no Mundo haverão menos de 7.000.000 de bajefados, isentos, que são capazes de uma destrinça justa. Não creio que se possam colocar em nenhuma categoria também, estarão distribuídos talvez por todas, ou então simplesmente nem se ralam com isso.

Na espécie humana os artifícios socialmente criados tornam
a “manutenção animal da espécie, luta pela sobrevivência” numa parada injusta.

A manutenção dessa nata que referes acaba por ser o que todos os outros efectivamente dispensam. E numa terra de pobres é triste verificar que o que eles não consomem e canalizam para a nata, é o ouro que lhes faz falta (!!!...).

Há de facto chavões que envergonham a humanidade. Não bastasse muitas acções já justificarem bastente embaraço...

Os bobos que papam as princesas... Ora aí está um belo conceito. Serão esses os que têm o verdadeiro sangue azul a correr-lhes nas veias, e ocupam o lugar de bobo por circunstancialismos que definem a sua sobrevivência? Conseguirão as princesas detectar-lhes as feromonas e por isso consentir o cruzamento?

Um abraço!

Gemini disse...

Ah, esses óculos... Sim, claro! Envergo-os com orgulho. E o tal menosprezar, a tal chacota... Apenas a constatação do quão bem me assentam!

Um abraço!

CybeRider disse...

Agora estiveste muito bem Gemini!

:)))

Um abraço!

Nirvana disse...

"Que seríamos nós sem os nossos óculos? Que nos deixam ver as cores e formas que acreditamos que o Mundo tem?" Não seriamos nós, não é Cybe? Afinal, o que nos define é a forma como definimos o mundo. O certo, o errado. O bom, o mau. Cores que gostamos, cores que não gostamos. E às vezes, algo no meio termo entre isto tudo. Estes óculozinhos (os meus, não os teus) às vezes alteram a graduação sem avisar. Mas têm um poder de auto-correcção fantástico.

"E tantas vezes de uma maneira tão individual que ninguém nos entende?" Fiquei muito contente com esta frase. Afinal, a culpa é dos óculos, não é minha ;))

Gostei do que o Gemini disse, Quão bem me assentam. É isso mesmo!
Beijinho
Nota- Não tinha nada de jeito para dizer, mas apeteceu-me vir aqui :)

CybeRider disse...

Olá Nirvana, pá... Tu volta sempre! Mas sempre, assim te dê vontade.

E que ninguém nos peça para vermos o mundo pelos óculos deles; aí sim, tudo fica distorcido. Até podemos tentar perceber e aprender, mas só os nossos nos dão a verdadeira dimensão da coisas, mesmo as novidades teremos sempre que as tornar nossas.

:)

the dear Zé disse...

Eu como um exemplar da espécie dos 6 olhos 6, digo que adorei de inveja as cores esdrúxulas. E que também gostava do velho pitosaga, alguns episódios eram tão... como dizer... exagerados, absurdos? que se tornavam surrealistas, um bocadinho como o teu texto. Digo-te ainda que esses episódios eram os meus preferidos...

Até breve

(PS.: Olá Nirvana)

CybeRider disse...

Olá Caçador!
O surrealismo, essa seita que a muitos atrai e nada rejeita... Quase a tentar-nos para colocarmos os nossos óculos nos outros para eles verem as cores como nós. Também lamento esse conceito gasto logo aqui... É daquelas coisas que não se podem repetir muitas vezes. Gastam-se logo e ficam para ali perdidas, inutilmente. :)

Abraço!

escarlate.due disse...

"À noite, finalmente, guardo-os na caixinha, de dobradiças já carcomidas"... e vejo tudo claramente! :)

CybeRider disse...

Olá Escarlate!
Sem a nossa interpretação das coisas, sem as nossas emoções e pensamentos, o mundo fica difuso e incompreensível. Talvez por isso os sonhos só façam sentido depois de os sujeitarmos a uma análise. Aceito que não seja assim para todos, mas para mim, é como refiro no texto, sem os meus óculos não vejo nada. :)