segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Drive-In

O carro é uma coisa maravilhosa.

Lembro-me da estima com que um primo, afastado no tempo e no espaço, nem tanto no sangue, escovava o pêlo sedoso da mula que atrelava à carroça para o tal passeio à vila. De férias por lá, na planura tórrida do Alto Alentejo profundo, ainda recordo a primeira vez que me sentei na tábua que servia de poltrona à simples carruagem. E lá fomos...

A trepideira e o ruído dos aros metálicos das rodas gigantescas a arrepiar o empedrado é quase inimaginável. Dir-se-ia que os meus dentes de leite iam a arar o granito empedernido e invulnerável que as suportava. A compasso com o matraquear do galope, a quatro cascos bem ferrados, no pavimento.

O meu primo, homem possante de braços espessos atiçava a besta que avançava sem custo pela rua quase deserta. Recordo o movimento pendular da cabeça do animal, para cima e para baixo, a afirmar a certeza de chegarmos ao destino. Os guizos do malim a soar com brio, a rédea a fustigá-lo para passarmos da velocidade-de-cruzeiro a mata-cavalos, por ali fora. As minhas pernitas de franganote e os dedinhos ainda frágeis a agarrarem-se a cada trave, para não desaparecer com a nuvem de poeira que se libertava do restolho sobrante das cargas brutas vencidas.

Lembro-me do sorriso dele, a embrulhar-me puto naquele delírio. Lembro-me da confiança que aquele sorriso franco e quente, na tez encortiçada, me punha na alma; e que me fazia gritar por mais, sem perigo que me assomasse.


Rodei o volante. Entrei naquela produtora de alimentos a metro, logo a seguir à placa que indicava "drive-in", como num cinema à americana. Nunca tinha lá estado. Parei no primeiro guichet e reparei que vinha outra viatura atrás. Olhei para o rapazola de boné vermelho, à americana, e disse-lhe à antiga portuguesa que como tinha "outro" atrás talvez fosse melhor parar no guichet seguinte. Ele olhou-me com aquele olhar com que eu costumava olhar para o meu avô, quando me dizia aquelas coisas à antiga portuguesa. Disse-me que estava ali bem e anotou o meu pedido. Depois percebi... Percebi que estava atrasado, que os anos tinham passado por mim sem delicadeza, a mata cavalos.

O outro guichet era apenas para levantar o pedido. Não havia espaço a gentilezas, a coisa já estava pensada assim. Se tivesse sido gentil, teria estragado a mecânica do espaço. O rapazola, de boné à americana, também pensou nisso mas era tão complicado tentar traduzi-lo para o meu vocabulário à antiga portuguesa, que se limitou a olhar-me com aquele olhar com que olhei tantas vezes o meu avô e limitou-se a balbuciar: "Deixe-se estar. O senhor está bem aí..."

E de facto acho que sim. Agora que penso nisso, acho que estou bem melhor aqui do que com um boné à americana a cobrir-me o cabelo grisalho.

Mas estaria ainda melhor sentado sobre a tábua rachada, que servia de poltrona no carro do meu primo.



© CybeRider - 2009

23 comentários:

calamity jane disse...

DE certa forma estamos sintonizados. Hoje lembrei-me de coisas que não vivi. Essa memória rural que não é minha mas que ao mesmo tempo me pertence, porque é universal...
Um sorriso enternecido para ti.

CybeRider disse...

Olá CJ! (Donde andas pá?)
Esta ruralidade mágica que nos atrai, cosmopolitas anestesiados por coisas complicadas e stresses que aqueles meios ainda vão conseguindo desconhecer.

São as ternuras que nos guarda a terra que esquecemos tanta vez, mas que nos receberia sempre, de braços abertos, como uma grande amiga.

Valeu também o sorriso, que retribuo.

Soraia Silva disse...

vá, acho que um boné à americana, nao te ficaria assim tao mal, mesmo estando a cobrir esse cabelinho grisalho :P

a menos que tenhas grande estima pelo teu cabelinho e poucas sao as coisas (ou pessoas) que lhes pode tocar ahahah

beijinho Cybe :))

CybeRider disse...

Ó Soraia, e eu sou lá capaz de deixar o meu chapéuzinho à antiga portuguesa que aparece aí na fotografia?...
:)))

Beijinho Soraia :))

Mário Rodrigues disse...

Caríssimo Cybe,

Este texto é delicioso. Li-o com bastante atenção e fui-me deixando fluir também pelas minhas recordações motivadas pelas tuas; dos galopes em pêlo que me deixaram 3 dias a andar de pernas abertas, de tomar banho no tanque dos cavalos e os poldros morderem-me a cabeça e de me afundar á noite quando me deitava, em um colchão de lã de ovelhas que parecia uma nuvem, de correr a fugir de um ganso que tinha filhotes e muita coragem... Enfim...
A piada que achei á cena do drive-in... Extraordinária! Simples, mas complexa ao mesmo tempo. Realmente as coisas são assim mesmo; mas não consigo achar inquietude na situação, e até a achei... Carinhosa! Mesmo porque o que o rapazola te explicaria, teria como objectivo perceberes o que entendeste sem a explicação, e isso sim, evitar os apitos estúpidos e os impropérios de quem estava a trás e se apercebera que não pescavas muito da matéria...
Quanto ao local onde estavas melhor! Esse é-o em todo o mundo. Mais uma vez comprovaste ser um homem do mundo, e que está bem nele (assim como assim ele é teu), estás bem em todos os sítios onde sejas feliz, e esse também foi um deles...

Um agradável abraço, meu homem do mundo...

Soraia Silva disse...

ahahahah

logo eu que sou tao boa observadora, e nao fui reparar numa coisa dessas :P:P

beijoca :)

CybeRider disse...

Ilustre Mário,
É sempre um grato prazer provocar sensações. Quando são boas melhor ainda. Mas olha que as situações que descreves têm aquele toque pitoresco que haveriam de nos encantar também. Põe lá isso na agenda! :)

Este choque que descrevi fica ligado pelo conceito do "carro", mas principalmente por uma distância no tempo que separa o tempo em que nascemos do outro, que tantas vezes nos apontam como um destino, das formas menos óbvias, como a do rapazola do texto. Há que acatar a verdade, sem nos deixarmos cair da mula, e sem nos perdermos na nuvem de pó que sai do restolho.

Continuo a gostar do Mundo. Mas não me posso esquecer que "para a frente é que é caminho", lá tenho de agarrar de vez em quando uma muleta para a caminhada ser mais leve, e as recordações são muletas fantásticas.

Fraterno abraço, amigão!

Chapa disse...

O tempo é uma tábua rachada que galopa à desfilada, sem nos deixar tempo para respirar.
Belo texto Cyber.

Nirvana disse...

Cybe
Que texto delicioso!! Como já te disse uma vez, descreves as coisas de uma forma que as tornas uma imagem viva!
Eu acho que cada vez se vive mais depressa, mas cada vez se vive menos. Episódios como o que contas, em pleno Alentejo, seriam impraticáveis hoje em dia. Hoje seria:
-Vá, vamos lá entrar no carro, que tenho pressa.
- O que era aquilo ali? pergunta o miúdo, olhando para uma árvore estranha.
- Aquilo o quê? - responde o adulto que passou, nem viu e já está longe demais para ver.
É-se crescidinho na infância, e é-se adulto na juventude. Não há tempo para estas pequenas grandes coisas que fazem toda a diferença.

Quanto ao drive-in, infelizmente (porque não devia) conheço bem esses guichets ;). E até eu, que os conheço tão bem, mas nunca decoro o nome daquelas coisas que fazem tão bem, o outro dia ia ligeirinha para o primeiro guichet quando ouço uma voz a dizer o seu pedido, por favor. Como?? Substituiram o guichet onde estava a placa com os nomes por uma coisa colocada num sítio que não me permitia ler a dita placa. O seu pedido por favor... Ora muito bem, como não gosto de dar parte de fraca, lá pedi o único cujo nome sei...e que nem gosto muito.

Acho que se fizesses essa pergunta, onde estaria melhor agora, muita, muita gente responderia um local diferente daquele onde se encontra agora.

Beijinhos, Cybe

CybeRider disse...

Olá Chapa,
É mesmo assim como dizes. Não terá sido sempre assim. Ficam-nos as memórias de quando nos sentávamos sobre a tábua e víamos o mundo a passar devagarinho à nossa volta.

Um abraço!

CybeRider disse...

Olá Nirvana,
Tenho voltado algumas vezes ao Alentejo, continuo com a mania de tentar encontrar coisas que pudessem lá ter ficado guardadas e que nunca voltei a ver. Vou-me de facto convencendo... Desapareceram. Foram-se substituindo por essas coisas modernas, algumas à americana. Ficam-me tantas saudades de tantas coisas à antiga portuguesa... Mas raras vezes tenho sido confrontado com o facto de também eu estar a passar para o lado dessas coisas antigas, que vão desaparecendo, muito por resistir à aglutinação das modernices, algumas bastante vulgares. Vou-me convencendo também de que são essas pequenas desilusões que nos vão fechando o ciclo. Gosto de ver os jovens a vibrar com essas coisas novas que deixaram de me despertar curiosidade, e sei que entre eles arranjam explicações e entreajudas a que vou perdendo o acesso. Tenho a noção perfeita de que vêem o meu mundo de uma forma completamente diferente da minha.

(Ninguém de 20 anos se teria questionado sobre aquele "guichet"... Mas se o fizesse a resposta seria decerto outra...)

Beijinhos, Nirvana

Gemini disse...

Guardei-me para último, no comentário, fui aproveitando, nas vezes que cá vim, para fazer também algumas viagens ao passado. Que me serão mais perto no tempo do que esta te é, naturalmente! Faço-as amiúde, não deixam de ser nunca "as nossas vidas"... É o tal "passado que não queremos doloroso"!

Mas antecipo outras viagens ao passado. Passado que será o presente que agora vivo, onde, a exemplo, este teu cantinho será "a minha poltrona" daquela que era a carroça do teu primo!

Resta-me saborear, intensamente, esta "viagem", tão sabiamente por ti conduzida.

Forte abraço!

Pepita Chocolate disse...

Seja de burro ou de carro, garanto-te que não me ficarias à frente no comportamento.

Não tenho burro, mas tenho carro. Garanto-te que cargas dessas, que recebeste pela janelinha, das mãos de alguém de boné à americana, são coisas que não vão fazer parte da minha albarda. Só quando não houver mais nada para comer à face da Terra. E caminhos desses o meu carro não conhece, nem por lá pára.
A uns enfiam o boné pra nos servirem, seja de burro ou de carro. Mas a mim não me enfiam o barrete,só se me levarem e a minha boca nem se abrirá!

e se por lá parasse, garanto-te que eu chamaria burra a mim mesma!

(sim, detesto a comida do local que descreves! Porquê? não tem nada a ver com dietas, garanto-te! Mas talvez a burra esteja a ser eu!)

Beijinho (e um agradecimento pelas tuas palavrinhas. Brotaram daquelas coisas a que chamam lágrimas.compreenderás porquê...)

CybeRider disse...

Olá Gemini,
O passado... Tem partes dolorosas, por vezes, mas essas ficam para ali num cantinho sem luz para que se escondam com vergonha dos momentos que não aproveitam a ninguém. Outras vezes coisas que nos pareciam físicamente dolorosas são maravilhas que desenterramos com saudade. Já as dores emocionais... Algumas recordam-se com algum carinho, com que o tempo as soube aquecer, já outras ficam a doer para sempre.

E há coisas, que a partir de um certo momento acabam por adquirir um valor inestimável e inesquecível, e que talvez nunca se cheguem a contar, mas que permanecerão para sempre.

Os teus comentários neste espaço estão nesta escala. Tu és único, pá!

:)

Forte abraço!

CybeRider disse...

Olá Pepita,
Compreendo prefeitamente a tua aversão, mas eu sou muito... Como direi?... Gastronómicamente eclético. Sobretudo desde que passei pela vida militar onde tive que comer coisas indescritíveis, tipo de apertar o nariz e abrir a boca. :)))

Por isso tendo a considerar que o que não me mata me engorda, e de facto...

Sou por vezes um "bocadinho" descuidado, mas também gosto de "haute cuisine", mas prefiro quando tenho tempo. E não tenho dúvida nenhuma de que tu é que estás certa.

(Em relação ao resto, sou eu que te agradeço a franqueza que colocas lá, que me deixou bastante expectante em relação ao resultado. Nem te vou dizer o quanto esperava a "tal" resposta porque te imaginava a alegria... Mas ainda não veio... Mas eu acredito Pepita... Mais que tudo acredito (mesmo!) que um dia vais ter essa felicidade. Sei que não desistirás.)

Beijinho grande!

escarlate.due disse...

oh Cyber que delicia de texto :)

até me fizeste lembrar o meu avô...

aaahhhh e o ensopado de borrego comido na companhia dele... e aquelas conversas que tinhamos... e as histórias que me contava e que eu ainda só compreendia pela metade... e os cavalos... e as carroças... e os livros que me lia e eu ouvia atentamente mesmo que não compreendesse... e... tudo...

obrigada Cyber :)

CybeRider disse...

Olá Escarlate,

Essas memórias de outros tempos, em que queríamos crescer depressa, sem compreendermos que esse crescimento fazia desaparecer tantas coisas...

Agora vêm estes garotos contar-me histórias que não compreendo, mas ouço atentamente... como se compreendesse. :)

Eu é que agradeço esta troca de ideias que é sempre um enriquecimento meu, que sinto sem justa causa. :)

Milu disse...

Adorei este seu texto pela mensagem e pela escrita criativa. Ri-me algumas vezes, que é para isso que nos servem as nossas memórias. Para nos rirmos de nós, notei isso, pela forma como se descreveu em criança. Os dentes de leite que aravam o granito e as pernas de franganote. Maravilha!

CybeRider disse...

Olá Milu,
Seja bem vinda a este humilde destino. Que bom seria se de cada contacto com outrém resultasse sempre um sorriso sincero.

Também o seu comentário me fez sorrir, por me transmitir a sua impressão positiva.

Obrigado por isso. E sinta-se aqui como em sua casa.

o dear coiso disse...

Muito bem escrito, sobretudo a parte alentejana, as palavras exactas a convocar imagens e sentimentos. Tremendamente cinematográfica a narrativa, que peca por ser curta (a tal primeira parte), a merecer, ou melhor, a exigir, o continuar dessas memórias, sem proveito nem exemplo, apenas o prazer de contar, bem, essa estória/memória.
Por isso, chega-lhe!

Abraço.

CybeRider disse...

Dear coiso, as memórias dessa época, são assim como o provento do ventre de uma galinha... Se os ovos parecem de ouro, até é possível que o sejam... Mas vou lá espetar a faca na pobre criatura?

Vou esperar que ela os vá parindo, devagar, devagarinho... Que as coisas preciosas têm que se saborear a golinhos delicados.

Talvez para a próxima evoque, cinematográficamente, a primeira vez que vi uma bosta de vaca...

:))))

Milu disse...

Vim verificar se o CybeRider tinha respondido ao meu comentário e deparei-me mais uma vez com um circunstância: Os seus textos são muito interessantes porque fazem pensar, mas as respostas que dá aos comentários dos seus leitores são verdadeiras preciosidades. Elas reflectem um grande saber. E eu gosto de ouvir as pessoas que sabem pensar, porque assim me é dado aprender.

Por exemplo aqui nesta afirmação: "Essas memórias de outros tempos, em que queríamos crescer depressa, sem compreendermos que esse crescimento fazia desaparecer tantas coisas..."
Lembro-me bem de também assim sentir. Parecia que nunca mais chegava aos 18 anos. Tudo era vivido na pressa e na ansiedade de ser um adulto, é claro que isto também tem as suas explicações. Porque se haveria de querer deixar de ser uma criança? Para esta interrogação tenho eu a minha resposta, aquela que melhor se me encaixa!
Mas há tantas outras coisas belas que aqui nos transmite!...

Olhe, só sei que ganhou uma fã, não vou mais deixar de vir aqui,a este seu espaço, onde liberta as emoções que num determinado momento o invadem. Porque aqui, a lê-lo, eu aprendo um pouco mais, até a conhecer-me melhor. E isso interessa-me...

CybeRider disse...

Milu, tento sempre dar uma resposta aos comentários, algumas não saem com a rapidez desejada (como esta, enfim...), ou poderão um dia faltar-me as palavras...

Quem me dá a honra de alguma visita há mais tempo já sabe o grande valor que qualquer comentário tem para mim. Sou eu que aprendo com as opiniões que leio aqui nas caixinhas, que espero sinceras para o bem ou para o mal, tudo o resto são devaneios de um louco, que nada pretendem ensinar a ninguém.

Fico por isso surpreendido com a sua gentil afirmação. Penso que a aprendizagem brotará principalmente do confronto de ideias.

Por outro lado fico um bocadinho apreensivo, porque (já vi que...) o "Miluzinha" é um espaço todo arrumadinho, com um domínio da escrita absolutamente invejável, que denota um prazer enorme na obra feita e que faz muito bem aos olhos e traz muita tranquilidade à alma.

Tomei a liberdade de também o passar a recomendar na barra ali da direita...

Mas peço-lhe que não empenhe a sua palavra para o futuro. Eu próprio não sei se não escreverei um dia o texto que há-de envergonhar a humanidade, e nesse dia compreenderei que todos me abandonem.

Até chegar esse momento indeterminado e involuntário, vou tentar esforçar-me por que esse desaire seja longínquo, ou que a minha fraca inspiração não chegue a tanto!