Lembro-me de devorar as aventuras do dito, e de viver cada vinheta como se a tencionasse transpor para a realidade.
O pequeno momento que refiro é, por tudo isso, intemporal.
Luke deixara o Jolly Jumper junto a uma árvore à entrada do saloon. Lá dentro, comia-se, bebia-se, falava-se. Espiras de fumo ocasionais percorriam o ambiente levadas pela brisa do entardecer. O pianista não tinha comparecido. Luke pegou na viola e começou a entoar uma balada.
Ela aproximou-se, juntou a sua voz potente e maravilhosa. Aos poucos a voz de Luke deixou de se ouvir, acho que ele não tinha afinal tanto jeito para a música, porque a viola se calou também. Em minutos era apenas a voz dela que entoava pelo salão. O pequeno, de cabelo encaracolado e uns olhos lindos de arcanjo, sentara-se havia pouco tempo junto deles.
Escutava atento, também ele, aquela voz melodiosa de beleza ímpar. Olhou-a nos olhos e, com a honestidade que só as crianças têm, e talvez a tentar interpretar o olhar cúmplice daqueles dois, perguntou: "Mãe, estás a tentar seduzir o Luke?..."
Ela, sem interromper a balada, talvez à espera de uma reacção à altura, olhou para Luke; que mudara de cor; que olhava agora para o lajedo do chão, enquanto afagava o Rantamplan; enquanto tentava engolir um impossível do tamanho do Mundo, e com esse impossível também todas as frases que justamente demonstrariam ao pequeno que a mãe dele, por ter além do atributo da voz também os outros; de ser linda, inteligente, e jovem; não haveria nunca de precisar de seduzir quem quer que fosse, pelo simples facto de que qualquer homem ficaria logo seduzido, apenas pela presença dela. No balão da vinheta ficaram apenas as reticências que emanaram da voz do Luke.
Luke, que fora o pistoleiro famoso que conhecemos, já raramente ensaiava o tiro, a sua sombra que ele batera em rapidez tantas vezes, era agora a mais rápida, e ele tentava apenas segui-la.
Também naquele dia a sombra o levou por um caminho dúbio, onde ele ficou sem resposta adequada, sentindo que mais um pouco da sua juventude se esvaía naquele cenário.
Saiu do saloon, montou o dorso do Jolly Jumper. Sem olhar para trás, seguiu o seu destino. Quem tivesse boa audição ainda o poderia ter ouvido a cantarolar ao longe:
"I'm a poor lonesome cowboy... And a long way from home..."
© CybeRider - 2009
28 comentários:
A parte boa dos blogs, é que acabamos sempre por ler aquilo que nao lemos noutras alturas enquanto podiamos...
confesso que as bandas-desenhadas que lia, eram sempre sobre o tio patinhas...
se me perguntares porquê, responderei que talvez fossem pelas imagens que eram mais chamativas, as cores (etc).
enquanto pegava noutras e bastava nao gostar da côr e dos desenhos, que arrumava logo para canto :P
tambem ja lá vao uns anos, mas é bom recordar :)
beijinho :)
O Lucky Luke, lê-se melhor depois de alguma experiência de vida. Apesar de ser dos 7 aos 77, há uma fase em que aquilo é uma delícia, e depois fica-nos para sempre. Recomendo vivamente! :)
Beijinho! :)
O Lucky Luke, com a palhinha na boca, é imortal.
Durão, que não hesitava em enfrentar os malvados irmãos Dalton, que sacava da arma mais depressa que qualquer um, que arrumava com meia dúzia de bandidos ao mesmo tempo, que impunha respeito no oeste selvagem... e que se acovarda perante uma mulher... que faz jus à frase que o caracteriza - mais rápido que a própria sombra - e, muito mais rápido que essa sombra desaparece, sem responder, pois reticências não são resposta.
E, a provar que o Lucky Luke é imortal, esta história pode ser tão facilmente enquadrada nos dias de hoje. É só vestir ao Lucky Luke umas roupinhas mais actuais, substituir o Jolly Jumper por um carrito. O resto da história pode continuar tal e qual como está.
Já estava com saudades dos teus textos, Cybe!
Beijinhos :)
A tua perspicácia... Dessa eu também tinha saudades...
E foste mais rápida que a minha sombra (está velha a minha sombra), que anda a pairar por lá, mas hoje tem que ser...
Até já!
Beijinhos! :)
A Nirvana já disse tudo!
Por isso, acrescentar algo seria dizer alarvidades.
Até podia estar calada, já que não acrescento nada à história. Nem a mudo!
Foi só mesmo para te dizer que é bom voltar a ler-te!
e o resto que eu diga, é conversa!
Olá Pepita!
Ainda bem que vieste.
Na realidade estás a dar-me um bom exemplo. (Pelo facto de conhecer muito mal certa cidade podia ter dito um olá...) As conversas não têm que ser todas sobre o que escrevemos, pois não?...
Bom é também encontrar-te por aqui!
Beijinho
Olá outra vez, Cybe
Ah,ah... pois, eu andava sempre aqui a ver quando ia haver um texto novo :))
Em relação à história do Luke (ontem já era tarde e mesmo sem sono a essa hora as ideias não fluem tão facilmente), acho que ele não se acovarda só em relação a uma mulher. Acho que poderia dizer que essa mulher representaria muito mais do que uma mulher em si. Representaria ele confrontar-se com ele próprio, com os seus sentimentos, com o deixar espaço na sua vida atribulada e programada para alguém, para algo novo, com o desconhecido. Porque neste campo dos sentimentos, das emoções, nada é certo. Tudo é um risco. Por isso, muito mais fácil bater em retirada. Assim, tudo continua na mesma. Assim, continua a ser o lonesome cowboy de sempre.
E, graças a ti, hoje ando a cantar "bang bang, Lucky Luke"... bonito! :P
Um bom dia para ti.
Beijinhos
Só uma notinha de rodapé:
Os comentários fazem-se por prazer e quando há tempo! Não há obrigações! Portanto, deixa-te lá disso!
Beijinho!
Não sou o único (jamais seria) a aguardar, impaciente, o teu texto, a tua menssagem. Pela mensagem em si, sempre rica, mas muito pela relação conteúdo/continente que estabeleces de forma singular.
Não sou o único a elogiar-te o modo como...
Esta hi(e)stória, de todos e de ninguém, podia ter acontecido perfeitamente, no brinde de umqualquer aniversário...
É bom l(t)er-te de volta ;)))
Abraço!
*um qualquer (engano, acontece a toda a gente "naquela vez sem exemplo que nos torna humanos")
Também já escrevi sobre o cowboy que me acompanhou na infância.
Olá outra vez, Nirvana!
Isso que referes é o tal "jogo" que sabemos, certo? :)))
Quanto ao nosso amigo Luke, acho que quando se montou no carro... (perdão, no cavalo...) tinha um destino bem estabelecido, que ninguém conhece, mas que era outro mundo que ele talvez não quisesse misturar com este, da BD... Mas ao qual ele devia tanto que nada o poderia pôr em risco.
É uma figura cheia de bons ensinamentos. Ainda volto a lê-los todos outra vez... :)
Que tenhas um dia fantástico.
Beijinhos!
Olá Gemini!
Também sinto falta das palavras (de incentivo, e das outras)que sempre encontro quando cá consigo voltar (aqui e aos vossos espaços). Também me parecem eternidades estas ausências, involuntárias, sinto-as quase insuplantáveis - com tristeza. Mas a vida nem sempre é mãe.
E acho que tens razão, este episódio pode muito bem ter acontecido, exactamente como relatei... Se assim foi, gostaria que o argumentista lhe tivesse colocado na boca mais que umas meras reticências... Ela tê-lo-ia merecido, e o pequeno também.
Abraço!
Em relação ao resto:
(Que seja uma vez sem exemplo... só essa nos torna humanos.) :)))
Ricardo Martins Pereira, sejas bem vindo a este espaço.
Obrigado pela referência ao teu texto que me enriqueceu.
Eu gostaria de ter escrito sobre o cowboy que me acompanhou na infância.
Não sei se gostei de relatar este momento de uma vida, ainda que de uma personagem fictícia...
Volta sempre, este espaço é teu.
Olha meu, este saiu-te mesmo bem. Gostei particularmente de... bem, tudo. Um grande texto.
Parabéns.
Olá Caçador!
Há horas de sorte... É o que é!
:)
Li, reli, limpei as lágrimas, li de novo. Levantei-me. Voltei a sentar-me. Alternei janelas no desktop. Tentei desatar o nó. Deve ser da chave...
A única coisa que uma personagem de BD pode dizer face a isto é, claro está, uma onomatopeia: Glup.
Pois, era o que eu temia... O gajo não se devia ter ficado pelas reticências, a frase merecia resposta...
Ainda bem que cá viste, eu sabia que faltava aqui uma chave.
O diabo do meu livro tinha as folhas coladas e esta parte da história passou-me em branco. Imperdoável!
(Cy, queres falar?)
Como diria um grande amigo:
"Está tudo escrito ou quase..."
:)
Mas tens que concordar Tereza, é uma estória bonita com'ó raio!!!
cy, tantos e tão bons conselhos te dei...
É bem verdade Gaija, bastam uns dias sem nos falarmos, vê tu como me perco...
Eu gosto mais do Astérix. Mas isso é porque caí na poção mágica em piqueno...
Nessas, o Assurancetourix (depois arranjaram-lhe outros nomes...) acabava sempre amarrado à árvore. Pouco espaço à música. Era mais enfardar javalis.
:)
Nem todas. Numa das aventuras, de que não lembro o nome, o Assurancetorix acaba como convidado de honra no banquete e o ferreiro (Ordralfabetix?) amarrado à árvore.
Grande sorte, foi na primeira que peguei. O Ordralfabetix não está amarrado mas amuado junto à árvore e a história é A Grande Travessia...
E fico a pensar que mesmo ainda antes da invenção da Internet já havia um elevado nível de globalização em certas coisas... E todos sabíamos já do que estávamos a falar, mesmo sem Google...
Pelo sim pelo não tenho todos os Luky Luke, Astérix e Tintin em "pdf" (a maioria em francês ou inglês), não fossem as traças comê-los.
Esse episódio é estranho noutras coisas, é o único que me lembro que tem índios...
Enviar um comentário