domingo, 27 de setembro de 2009

Enfarruscado

Acordei noutra dimensão.

Estendi o braço para puxar o cartão e os jornais que me aqueceram pela noite.

Sete da manhã, pelo relógio da torre. Se é que ele sobreviveu a outra noite, ou talvez esteja a dormir, como eu deveria estar… Para sempre. Chamei o Bartolomeu, que me tem acompanhado nestes derradeiros dias de exílio. Não o encontro... Chamei de novo… Ah! Lá vem ele, a abanar a cauda… Afago-lhe a cabeçorra sorridente, de língua de fora... "Só tu para te rires, meu amigo...".

O jardim está todo lá. E a rapariga do fato de treino rosa, já corre por ali, junto ao canteiro das hortênsias, de auscultadores nos ouvidos. Nunca me viu, como ninguém me vê... A rega não está ligada… Dirijo-me a ela, passo-lhe a três, quatro metros, a contravento, não quero que me sinta o cheiro nauseabundo, que só eu já não sinto. Tomo o meu pequeno-almoço: o cheiro inebriante que ela exala, vai-me durar para uma boa hora.

Há muito que ninguém sorri para mim. Só o Bartolomeu, "não é, meu velho?..."

Acordar noutra dimensão pode trazer-nos dissabores. Começo a achar que também este dia me vai correr mal.

Olho para as minhas mãos. A pele grossa e suja, as unhas partidas de sabugos negros. Podia ir ao mar, mas não quero que pensem que o Adamastor se ergue das ondas. E se fico pior da tosse?... O desalento é grande, arrasto-me pelo passeio, sujo como eu. Condizemos, e o Bartolomeu não se importa. Apanho a beata quase inteira que alguém deixou ali para mim, à porta de um táxi que partiu. É fácil encontrar tudo nesta natureza. Onde tenho o isqueiro?... Revolvo os bolsos. Neste não, que já estava roto, tem de estar neste... Ahhhh! A primeira passa estremece-me de prazer.

Preparo-me para a aventura. O jardim ainda cheira a manhã. Vou ao lixo, passo sempre cedo, porque as coisas grandes são deixadas durante a noite, para que ninguém encontre quem as abandona. O sofá, a mesa, o rádio que funciona quando encontro pilhas, apanhei-os todos assim. A comida é junto ao hipermercado, às duas da manhã. Aí chegamos quase a andar à pancada... Que tenho o meu orgulho, não vou à "sopa dos pobres", esses são os que não têm espírito de aventura, eu sou um sobrevivente. Também não quero ser "inserido", antes que me esqueçam, quero perder os números que já me ligaram à sociedade, há muitos anos, e o nome. Que me esqueçam, para sempre! Moradas... Sim, essas tenho-as todas, cada rua e avenida, cada praceta, rotunda ou cais, todos meus sem que eles saibam.

No desperdício valorizo os medicamentos... Hoje não há.

Olha... Uma bicicleta! Que aconteceu?... Começo a pensar que me estão a pregar alguma partida. Olho à minha volta, mas não vejo ninguém que pudesse querer rir-se de mim. Hoje não. Só vejo os que não me conseguem ver, do costume. Não me recordo de alguma vez ter tido uma bicicleta só minha... Ena! Tem mudanças!

Há-de haver uma explicação para tudo isto, penso; enquanto vou pedalando rua abaixo até ao quiosque dos jornais. Podia ter sido pior, nem os pneus estavam muito vazios. Há-de haver uma explicação... Logo estarei de volta, ao padrão que tão bem conheço.

Tenho de encontrar o Chico, troco-lhe isto por um maço de cigarros e o gajo vende a bicicleta e compra uma ganza. O gajo consegue vender tudo por causa da droga, a necessidade dá-lhe a astúcia. Já eu, não tenho necessidades. Além disso, com a bicicleta, o desgraçado do Bartolomeu esfalfa-se para me apanhar. Outros me seguiram, o Acácio, o Manuel, a Catarina, a Júlia... Só o Bartolomeu responde pelo nome que lhe dei. Os outros partiram, fartos da minha vida podre. Como a família, esses malandros que se me desapareceram para a solidão. Não guardei as moradas nem os telefones, da família; que os cães, esses nunca foram meus, os nomes que lhes dou fazem-nos ser da minha trupe. Os da família querem-me menos que estes soberbos que passam; que nem me acotovelam pelo temor que lhes causo, e para quem um metro de distância me torna transparente. Pensam que não tenho escrúpulos, nem sentimentos. Que sabem eles de mim, se nem me vêem?

Que fome...

Ah... Um jornal de ontem!

Separo as folhas. Quase nem reparava, no nome igual ao meu, ali, em letras garrafais. Hum... Este teve problemas com os negócios... Pois, a fábrica... Coitadinho...

Não devia ler jornais. Fazem-me reviver um mundo que já vou esquecendo.

Pior que acordar rico no dia em que se perdeu tudo, será acordar com pouco ou nada para perder.

Amanhã... Amanhã, não quero recomeçar, outra vez.


© CybeRider - 2009

18 comentários:

Nirvana disse...

Cybe, meu amigo

Como com os mesmos nomes se podem construir personagens e realidades tão diferentes e ao mesmo tempo semelhantes! Só o Bartolomeu arranjou mais duas patitas e com certeza um ar mais simpático. Sim, porque os mordomos têm sempre um ar muito susudo!

Não vou comentar a realidade de quem vive na rua. Este teu texto não me fez pensar, ou sentir, ao lê-lo, apenas nisso, na realidade de quem a isso é obrigado. Essa realidade é por demais conhecida, apesar de as razões que levam a isso serem desconhecidas de todos menos dos próprios.
O desalento e a solidão são o que mais me toca. A saudade também. Saudade do que se teve e saudade do que não se tem nem nunca se terá. Provavelmente esta última é a pior. Saudade da vida que se teria se não tivesse de apagar os números e nomes de amigos e família, se nem tivesse que os apontar sequer, porque estariam sempre presentes.

Acho que não haverá pensamento muito pior do que "amanhã não quero recomeçar outra vez". Isso é morrer em vida. Mas acredito que por vezes seja muito, muito difícil ter um pouco de esperança que seja. Por isso mesmo acordar com a sensação de que pouco ou nada se tem a perder será o começo do fim. Temos sempre algo para perder. Então e o Bartolomeu, ia apanhar beatas para quem?

Beijinhos, Cybe
Não. Não vou dizer o quanto gostei deste texto, nem do anterior... ops! já disse ;))

CybeRider disse...

Nirvana, minha amiga,

Quantas realidades poderíamos de facto encontrar entre uma e outra?... Estas apontam o desespero que evocam, e que não é equivalente. Quem tem algo para perder, ainda que para a maioria sejam coisas fúteis ou inacessíveis, parece que é tudo. Já para quem nada tem...

Sabes, enquanto escrevia o outro senti logo que tinha de ser uma rampa de lançamento. Porque é este, pelos motivos que apontas (o desalento, a solidão, saudade do que se teve...), que me faz uma colagem com coisas que já conheci, felizmente nunca em situação tão precária. E os motivos que nos empurram para essas realidades negras são sempre mais importantes que os bens materiais.

Por isso também é difícil falar de quem vive na rua. Alguns são por muito más escolhas, mas outros são por uma escolha concreta de não pactuar com o sistema, e estes serão eventualmente os casos mais complicados porque odeiam a sociedade em que nós vivemos e não estão dispostos a uma integração. Se me custa a falta de alternativas para quem fez más escolhas, interrogo-me sobre quem faz a escolha deliberada de viver em condições absolutamente inqualificáveis de pobreza e miséria. Sinto-lhes o arrastamento com que passam pelos dias, nunca encontrei nenhum que fosse feliz assim, e sinto que estão presos à vida por mero circunstancialismo. Sempre sem ambições.

Ia falar de um caso concreto, mas afinal cada caso talvez seja "só um caso".

Beijinhos Nirvana,

(Tu estragas-me com mimos!)

the dear Zé disse...

Atão o imprevisto não tem sítio para as marteladas? Olha que isso não estava previsto. Mas o gajo estava mais inchado que um quisto maligno, fogoda-se.

CybeRider disse...

Olá Caçador, o sítio para as marteladas é no Blogre, do Ogre e do Troll, que aquilo foi resposta ao último deles. Falta-me é o atalho.

(Sabes que eu de política não percebo nada).

Pudera pá, nem todos os dias se ganham as eleições com 10% dos votos...

Mário Rodrigues disse...

Desejo profundamente que todos nós acordemos com tudo para perder. E que saibamos mantê-lo...

Um abraço Cybe

CybeRider disse...

Olá Mário! Que voto bonito pá!
Já me estás a dar ideias para os SMS de Natal!

:)

Um abraço, meu amigo!

Mário Rodrigues disse...

Já sabes!
Tudo o que este humilde vagabundo poder fazer por ti; teu será!

Um abraço para ti também.

:-))

Milu disse...

Na minha opinião um ex-empresário não se torna assim um indigente do dia para a noite, por muito mal que lhe tenham corrido os negócios. Este desalentado da vida, expresso neste texto, foi alguém que desistiu de si mesmo... Porque viver pressupõe luta, porque é uma caminhada constante e difícil. Há quem nunca saia do mesmo sítio, caminha em vão, mas caminha.
Não digo que todos somos precisos que é para não parecer a "outra", direi antes, que todos temos algo que nos dá valor, e, o indigente, é aquele que se esqueceu disso. No meio de tão grande desamparo surge o sorriso redentor do Bartolomeu, que só não o abandonou, porque é apenas um cão, fosse um ser humano e....

Gemini disse...

Acordar sem nada para perder, é também acordar com tudo para ganhar!

E quando se perdeu tudo (tudo o que se tinha), é preciso acreditar que talvez existam coisas melhores para se ganhar! Talvez aquilo que tenhamos perdido, afinal não era o "tudo" de que precisávamos.

"Vale mais uma solidão escolhida do que um património de amores fracassados".

Talvez se aplique a tudo o que se perde... A tudo o que se possa ganhar!


Um abraço, Cybe!

shark disse...

Uma rapariga em fato de treino rosa?
Hummm...
:)

uminuto disse...

Gostei do teu poema eleitoral, mas não consegui deixar o meu comentário lá.
um beijo

CybeRider disse...

Mário, vagabundos somos todos se o infortúnio nos atingir de formas que não prevemos e que não possamos suprir.

Compreendo o título que te atribuis. Que seja assim, virtual, para sempre. Mas é importante ter-lhe a consciência...

Que nunca tenhamos de nos encontrar para partilhar a última bucha.

(Já para outras...)


:))

CybeRider disse...

Milu, não sou de facto um romancista. A dimensão nova que leio do seu comentário, que é absolutamente plausível, e que não posso negar que me tenha ocorrido, num momento, pelas coincidências de nomes, não deixa de ser para mim um ponto de vista novo, que me enriquece a ideia subjacente ao que pretendi.

Quando começo ambos os textos pelo facto de ter acordado "noutra dimensão", refiro-me não a uma realidade continua mas a realidades paralelas à qual convivo. Não estou de facto numa ou noutra das situações. E não estando, a minha realidade acaba por me mostrar, no entanto, situações desesperantes, que se tornam quase fracturantes como as dos textos. Algumas vezes por negativismo meu, outras por contrariedades imprevisíveis. Assim, foi-me mais fácil tentar a análise de dois desesperos em situações limite, que a idealização de uma realidade semelhante à minha, talvez mais preenchida de nuances mais complexas.

Ligar a primeira à segunda histórias, aumentaria o extremismo da situação de partida. Estaríamos perante a mera reacção individual, e tornaria a coincidência do nome do jornal, igualmente complexa, uma vez que já tinha sido referida no primeiro texto.

(Gostei do afastamento da "outra"...)

:)

A situação da solidão do indigente, como bem refere, não é apenas motivada pelos outros, deriva muitas vezes de posições sociais assumidas. Muitos não serão assim, porém alguns não negarão esta colocação, por réstias de uma dignidade que pretendem manter e que os leva a posições absolutamente marginais por vontade própria, que acabam por anular eventuais tentativas de recuperação.

CybeRider disse...

Olá Gemini!

Haja vontade de viver, e uma força anímica invulgar para ver as coisas da forma que as colocas.

Esse será o motivo pelo qual quem nada tem a perder acaba por nada ter de temer.

As lutas ficam bastante mais fáceis de travar se não tivermos de proteger aquisições de uma vida, sejam materiais, mas também de princípios.

Quantas vezes nos rebaixamos a evitar pretensos embaraços que mais não são que fantasmas de aquisições infundadas? A honra, por exemplo, deveria levar-nos a agir, porém muitas vezes surge disfarçada de princípios éticos que nos tolhem os movimentos. Estas aquisições do passado que ninguém ambiciona são difíceis de eliminar. E acabam por constar de um espólio que nem notamos que gostaríamos de perder.

Tentei uma análise à frase que transcreves. Não a consigo apreender. Lamento. Teria de ser alguém que não sou. Temo a solidão, por isso nunca me seria uma escolha viável, só consigo conviver com ela compelido. Daí que teria de estar num grave estado de sofrimento, desalento, confusão mental, para optar por essa via, apriorísticamente não consigo conceber essa escolha. Além disso tive afortunadamente amores fracassados, aprendi com todos e consegui guardá-los nas minhas memórias como recordações ternas. Na altura não os vi assim, causaram-me profundo sofrimento, mas o tempo mostrou-me que claramente se tornaram em fundações sólidas para me afastar da solidão que nunca ambicionei. Muitas vezes os fracassos que registamos não são inocentes. Fui sempre o principal culpado dos meus. Talvez por isso...

Um abraço Gemini!

(As coisas de que te lembras...)

:))

CybeRider disse...

Shark,

Acho que a fulana chegou lá montada numa mota, e ouvi dizer que tinha fugido duma Casa de Alterne...

Se calhar até a viste passar...

(O cor-de-rosa está sempre ligado a um mundo de fantasia onde os andrajosos não cabem...)

:)

CybeRider disse...

Uminuto,

(O facto do Portas ganhar as eleições com 10% dos votos deixa-me sem grandes margens para comentários... Há "pequenos" calcanhares de Aquiles que podem desvirtuar a democracia...)

Porém, o "Outra" não é um blogue político, trata de "introspecções e verosimilhanças"; tendencialmente e de uma forma simples significa que o que não conseguir introspeccionar inventarei, procuro escapar ao comentário dos factos, ao mexerico fácil, às notícias do momento. Fi-lo muito poucas vezes, sempre com maus resultados. E há quem o faça muito bem. Não sou um formador de opiniões. Tenho as minhas convicções e isso chegará para me preocupar. De resto tenho também muitas vezes um sentimento de ser o único com o passo certo na formatura, e isso nunca augura nada de bom. :)

Por outro lado, senti que se abrisse os comentários estaria a pedir às pessoas que se pronunciassem quanto a um tema que, pelo que refiro acima, nunca foi intencional neste sítio, isso poderia causar desconfortos injustificados, que neste momento não pretendo iniciar. Até porque aquilo a que chamamos -reconheço que, desavergonhadamente, também chamei- poema, talvez não passe de mera anedota.

Um beijo!

shark disse...

(Nessa perspectiva eu serei igualmente andrajoso e nas minhas fantasias cabem todas as cores e mais algumas! É um arco-íris pantone...)
:)))

CybeRider disse...

(Quanto mais não vale apropriarmo-nos das cores do que elas -as cores!- apropriarem-se de nós.)´

(Haverão matérias de solução diversa...)


:)))